O Descobrimento das Minas de Ouro e a “Invenção” dos Caminhos Reais do
Ouro.
Nos dois primeiros séculos de ocupação (XVI e XVII), a ausência de uma rede de
caminhos e rotas de circulação no interior da América Portuguesa “não era apresentada
ante o colonizador, como um problema realmente grave” (QUEIROZ, 2000, p.116). Tal
fato não significa que os portugueses apenas “arranhavam” as costas da Serra do Mar ou
pouco se aventuravam para o interior. Holanda (1975, 1986 e 2003), Abreu (1963), Leite
(1963), Barreiros (1979), Martins Filho (1965), entre tantos outros historiadores, apresentam rica e extensa lista de incursões que a partir da primeira metade do século XVI
deixaram a “comodidade” do litoral em direção ao interior ou sertões desconhecidos.
Em todas estas “entradas”, o homem colonial não deixou de fazer uso das inúmeras trilhas indígenas que cortavam praticamente todo o território luso-americano. No entanto,
como bem salientou Prado Jr. (2000, p.247), esses caminhos foram apenas percorridos
ou ainda, não passavam de “sistemas autônomos de circulação”, não criando as condições necessárias para a fixação, ocupação e interiorização colonial, configurando o
interior ou os sertões como um espaço de trânsito e também de exploração em trânsito
(MORAES, 2002), a exemplo das expedições de preamento indígena.
Com as descobertas do ouro no final do século XVII e seu rápido e intenso processo
de ocupação e exploração, os caminhos terrestres passaram a ocupar papel de destaque
dentre as políticas metropolitanas, principalmente àqueles que eram utilizados inicialmente para se chegar ao interior aurífero, localizado nas cabeceiras do rio São Francisco, dentre os quais se destacaram o Caminho Geral do Sertão4
, o Caminho Velho de Paraty5
e o
Caminho da Bahia6
. De caminhos originalmente traçados sobre antigas trilhas indígenas
ou pela tradição bandeirante, tornaram-se Caminhos ou Estradas Reais, ou seja, caminhos
sob a égide do poder metropolitano em que se cobrava “Reais” direitos ou tributos sobre
circulação de pessoas, mercadorias e animais (corte ou transporte), já previstos desde o
século XV nas Ordenações Afonsinas.7
Logo nos primeiros anos do Setecentos (1702) o
governo metropolitano proibiu a circulação de pessoas, mercadorias em geral e ouro pelo
Caminho da Bahia objetivando evitar os descaminhos do imposto que recaía sobre a produção aurífera (1/5), o contrabando de mercadorias e entrada desenfreada de pessoas que
partiam de Salvador para as minas e consequente esvaziamento dos núcleos açucareiros8
.
Ficava permitida a circulação apenas pelo Caminho Geral do Sertão e Caminho Velho de
Paraty, fazendo surgir, assim, os Caminhos Reais do Ouro ou, simplesmente, Caminhos do
Ouro, cujo objetivo central era evitar o descaminho, num processo de controle territorial a
partir da lógica fisco-normativa9
.
Mesmo com a definição dos primeiros Caminhos Reais do Ouro, a busca por um
caminho novo, que ligasse diretamente o interior aurífero ao porto do Rio de Janeiro, já era intentada nos últimos anos do Seiscentos, conforme pode ser constatado na carta do
Governador do Rio de Janeiro, Artur de Sá e Meneses, endereçada ao Rei, em 24 de maio
de 1698, em que demonstra preocupação com “o extravio do ouro por caminhos outros,
com as dificuldades que se acham os mineiros de todas as vilas e os do Rio de Janeiro de
[lá] chegarem”, pois tanto por um quanto por outro a viagem poderia durar de dois a três
meses, como fica expresso no trecho seguinte:
[...] como as[minas] dos Cataguases são tão ricas pareceu-me preciso facilitar aquele caminho de sorte que convidasse a facilidade dele aos mineiros
de todas as vilas e aos do Rio de Janeiro a irem minerar, e poder ser as minas
providas de mantimentos o que tudo redundará em grande utilidade da
Fazenda de Vossa majestade 10.
O governador deixa claro na carta sua orientação política: ligar diretamente o Rio
de Janeiro às Minas Gerais, contrariando os interesses dos paulistas que tiravam grandes vantagens com o Caminho Geral do Sertão e Caminho Velho de Parati. Todavia, os
compromissos assumidos pela Coroa para com os paulistas impediam que o governador
resolvesse os conflitos e os descaminhos diplomaticamente, pois, os paulistas utilizavam
suas cartas de sesmarias, bem como as suas vantagens e privilégios concedidos pelo próprio
Rei por terem feito os descobertos auríferos para tirarem proveito próprio no jogo do poder
instalado nas minas. A forma encontrada pelo Governador do Rio de Janeiro para impor sua
orientação política e, fundamentalmente, diminuir o espectro de poder dos paulistas foi fazer
uso de um novo caminho fixado em um novo espaço, preferencialmente que não estivesse
localizado num território sob o controle dos paulistas e nem dos emboabas já instalados nas
minas. Dito de outra forma, o sertão começava a ganhar seu status de território, uma vez
que passava a ser incorporado como condição fundamental para definir e delimitar [novas]
relações de poder, e, por fim, maior controle territorial por parte da Coroa.
Nas condições de apropriação e de escassez encontradas nas minas, os interesses
do governador do Rio de Janeiro não poderiam ser impostos unilateralmente sobre o
território que começava a ser engendrado. Pelo contrário, era preciso acondicioná-los às
lógicas locais, recriando-os segundo os interesses políticos ali presentes. Assim, continua
em sua carta ao Rei: [...] o que tudo redundará em grande utilidade da fazendo de Vossa
Majestade, o que obrigou [-me] a fazer diligência em São Paulo por pessoa, que abrisse
o caminho do Rio de Janeiro para as Minas.
Ao mesmo tempo em que a busca por um paulista para a realização da “dita obra”
poderia pôr em risco o redirecionamento político que começava a ser forjado na América
Portuguesa, para os paulistas um novo caminho também poderia pôr em risco todos os
seus investimentos nas minas e ao longo do primeiro caminho de acesso às minas – o
Caminho Geral do Sertão. Mas, na lógica de um território que começava a se formar,
cujo poder ainda se apresentava difuso e pouco coeso, a convergência de interesses entre
ambos poderia ser acatada naquele momento e retrabalhada em seguida. Naqueles idos,
a ameaça maior para os paulistas não vinha de um caminho novo para o Rio de Janeiro,
mas sim do Caminho da Bahia, que se apresentava tão mais favorável para a circulação de
toda e qualquer tipo de mercadoria e dos seus reais inimigos – os emboabas -, tanto que
imediatamente se prontificaram a realizar a empreitada Real da abertura do caminho novo. Fonte: Autor Rafael Strafonii - Universidade Estadual de Campinas Brasil -file:///C:/Users/Samsung%20PC/Documents/INVENS%C3%83O%20DOS%20CAMIHOS%20REAIS/INVENS%C3%95ES%20DOS%20CAMINHOS%20REAIS.pdf