Por: Naime Mansur Marcial
A Monarquia Portuguesa, até o final do século
XVIII mantinha uma política que primava pela convivência “pacifica”
entre os colonos e os indígenas. No inicio do século XIX, no entanto
através de uma legislação especifica, passou a persegui-los de forma
enfática o que levou a sua quase total destruição. A nação botocuda [1],
objeto central deste estudo foi praticamente dizimada e o remanescente
perdeu por completo sua identidade passando a condição de mendigo nas
pequenas cidades do Leste Mineiro.
O Processo se estabelece ao início do caminho para emancipação do Brasil como Estado, sede da Coroa Portuguesa: as Cartas Régias permitem e oficializam o extermínio dos índios Botocudos da Capitania de Minas Gerais, visando a posse de suas terras para a colonização. Para tanto, D. João VI justifica a Guerra como a única forma de “civilizar” o feroz índio Botocudo:
O Processo se estabelece ao início do caminho para emancipação do Brasil como Estado, sede da Coroa Portuguesa: as Cartas Régias permitem e oficializam o extermínio dos índios Botocudos da Capitania de Minas Gerais, visando a posse de suas terras para a colonização. Para tanto, D. João VI justifica a Guerra como a única forma de “civilizar” o feroz índio Botocudo:
...............................................................................................................................Pedro Maria Xavier de Ataide e Mello, do meu Conselho, Governador e Capitão General da Capitania de Minas Geraes. Amigo. Eu o Principe Regente vos envio muito saudar. Sendo-me presente as graves queixas que da Capitania de Minas Geraes tèm subido á minha real presença, sobre as invasões que diariamente estão praticando os índios Botocudos, antropophagos, em diversas e muito distantes partes da mesma Capitania, particularmente sobre as margens do Rio Doce e rios que no mesmo deságuam e onde não só devastam todas as fazendas sitas naquellas visinhanças e tem até forçado muitos proprietários a abandonal-as com grave prejuizo seu e da minha Real Coroa, mas passam a praticar as mais horriveis e atrozes scenas da mais barbara antropophagia, ora assassinando os Portuguezes e os Indios mansos por meio de feridas, de que sorvem depois o sangue, ora dilacerando os corpos e comendo os seus tristes restos; tendo-se verificado na minha real presença a inutilidade de todos os meios humanos, pelos quaes tenho mandado que se tente a sua civilisação e o reduzil-os a aldear-se e a gozarem dos bens permanentes de uma sociedade pacifica e doce, debaixo das justas e humanas Leis que regem os meus povos; e até havendo-se demonstrado, quão pouco util era o systema de guerra defensivo que contra elles tenho mandado seguir, visto que os pontos de defeza em uma tão grande e extensa linha não podiam bastar a cobrir o paiz.. [2]
1.2 A carta Régia de 13 de maio de 1808 e a nova diretriz política do Estado para com os indígenas. A nova diretriz política da metrópole portuguesa de incluir as populações nativas no processo colonizador foi acompanhada de um conjunto de dispositivos editados ao longo do século XIX. Inicialmente, como reza as Cartas Régias, foi proibida a escravização dos índios, a exceção daqueles aprisionados em guerra justa. [20] Nesse sentido, com relação aos habitantes indígenas da região ressalta John Manoel Monteiro:
Que sejam considerados como prisioneiros de guerra todos os Indios Botocudos que se tomarem com as armas na mão em qualquer ataque; e que sejam entregues para o serviço do respectivo Commandante por dez annos, e todo o mais tempo em que durar sua ferocidade, podendo elle empregal-os em seu serviço particular durante esse tempo e conserval-os com a devida segurança, mesmo em ferros, emquanto não derem provas do abandono de sua atrocidade e antropophagia. [21]
Observa-se aqui que, por essa época, a sorte dos
indígenas da região estava condicionada a sua docilidade ou não com
relação à nova orientação política do Estado Português: a aproximação do
homem branco.
No entanto na legislação indigenista [22] do séc. (XIX), por mais
desrespeitadas e burladas que fossem as leis editadas representam o
pensamento do Estado em relação aos indígenas no séc. XIX. Se
compararmos a legislação indigenista, a realidade indígena no séc. XIX e
as diretrizes dessa política do Estado para o Sertão do Rio Doce,
observaremos que muito do que expressam essas leis na realidade não
ocorreu. As leis não impediram o surgimento de atritos e preconceitos em
relação aos povos nativos por parte dos colonos.
Na Capitania de Minas Gerais no decorrer dos séculos XVIII e XIX foram
constantes os ataques realizados por índios Botocudos e Puris aos
colonos que se assentavam no Sertão do Rio Doce. Trata-se de uma extensa
área com 83.400 Km², que cobria grande parte dos Estados de Minas
Gerais e Espírito Santo. Esta área banhada pelo Rio Doce e seus
principais afluentes (os rios Piracicaba, Santo Antonio, Suaçui Grande,
Caratinga e Manhuaçu no território de Minas Gerais, e os rios Guandu,
Pancas, São José no território do Espírito Santo), recoberta por densa
floresta pluvial tropical, com predomínio de relevo acidentado,
caracterizado pelos “mares de morro” [23], que eram entremeadas por
estreitas planícies aluviais. Fora da calha do Rio Doce o relevo
apresenta diversas formações; pontões, áreas de relevos acidentados e
vales profundos, com os rios formando uma sucessão de cachoeiras. [24] A
altitude entre a foz e a cidade mineira de Aimorés é de 83 metros, e
dessa a Ipatinga, região do médio rio Doce, a altitude é de 137 metros.
Afastando-se da calha do rio a altitude sobe rapidamente chegando a mais
de 700 metros tornando-se muito oscilante. A extensão territorial, a
diversidade de seus ambientes físicos e biótipos ali existentes nos dão à
idéia da complexidade da exploração dessa área, que após algum tempo
fechada à “civilização” passa a partir do séc. XIX a despertar a cobiça
da Coroa e dos colonizadores. Uma região, entretanto, originalmente
habitada por índios “Bravios”, [25] termo usado para denominar os Índios
Botocudos habitantes da terra que não se submetiam aos colonizadores.
Bacia do Rio Doce:
Principais Rios no Território Mineiro
Ilustração 3: Bacia do Rio Doce – Principais afluentes e subafluentes,
cachoeiras e locais que serviam de referencia, no inicio da Colonização.
Séc. XIX. Fonte: ESPINDOLA. Haruf Salmen. Sertão do Rio Doce. São
Paulo: ed. Edusc 2005.
Dessa forma, a crença de que existiam grandes riquezas minerais
abundantes no interior daquele sertão foi o principal motivo para o
avanço da Coroa portuguesa em direção ao interior do continente.
Falava-se na existência da Grande Lagoa Dourada, na Serra das Esmeraldas
que reforçadas pela presença de uma mata exuberante e fechada ajudava a
construir e confirmar esse mito. Mas, como veremos, paralelamente a
esse mito, um outro igualmente se afirmava, ou seja, o da ferocidade dos
resultantes habitantes da região, os temidos Botocudos, em outras
palavras, lugar dos selvagens inimigos da civilização.
Atrás dessa riqueza e movidas pelos interesses da Coroa, organizaram-se
as primeiras expedições que entrariam no dito território em busca de
confirmação do propalado mito da abundancia de riquezas. Um movimento
territorial que, em tempos anteriores, sobretudo no auge da mineração,
então impedido por força da própria Coroa. Por força desse impedimento
poucas eram as noticias de viajantes sobre essa localidade, a exemplo
dos relatos de Sebastião Fernandes Tourinho, [26] que em 1572 teve a
oportunidade de explorar o rio Doce, o Coraceci e o Manhuaçu. No
entanto, nos séculos seguintes à descoberta do ouro, a exploração desses
rios foram proibidas por atos Régios, que prescrevia punições severas a
quem se estabelecesse na região ou se aventurasse a fazer a navegação.
Somente através das chamadas entradas [27] que vinham das Capitanias de
São Vicente, Porto seguro e Espírito Santo, que se deu o primeiro passo
com vista a colonização da região.
Relatos como o do pesquisador Willian John Steains, nos informa sobre os
resultados decorrentes do contato entre indígenas e colonizadores na
região. O explorador que esteve presente entre os Botocudos, mostra a
relação conflituosa que se estabeleceu entre índios e colonizador
durante o século XIX:
Um dia os índios vieram à colônia e, na presença de Avelino, mataram o seu cão, deliberadamente, a tiros. Diante disso, dois ou três amigos de Avelino aconselharam-no com veemência a deixar a colônia mas o jovem não lhes deu ouvido e permaneceu corajosamente em seu posto. Passaram-se algumas semanas e os mesmos índios apareceram novamente na colônia. Desta vez, não havendo outros cães para matar, assassinaram o próprio Avelino, golpeando-lhe a nuca com um machado no momento em que fazia calmamente a refeição. Em seguida os índios puseram fogo às poucas choças, cobertas com folhas de palmeiras, que compunham a colônia, e, dividindo o corpo do pobre Avelino em postas, assaram-no e, depois de descansar um pouco para facilitar a digestão, partiram novamente para seus redutos. [28]
A essas demonstrações de insubordinação dos Botocudos
ao processo civilizador respondia o Estado Português com duras medidas.
Para impedir esses atos, os governadores da Capitania mantinham a
guerra defensiva, por meio de presídios militares colocados em locais
estratégicos a partir dos quais mandavam expedições armadas em
represália a esses ataques. Nesse sentido, até aqui, foi interesse das
autoridades portuguesas em prevenir um conflito aberto entre colonos
mineradores locais e indígenas habitantes da região. Entretanto, os
mineiros não estavam satisfeitos com as restrições legais e com o
princípio defensivo que continuava limitando as investidas contra o
Sertão, e com o tempo, quando do enfraquecimento da economia mineradora,
essa insatisfação foi objeto de preocupação por parte da Coroa
Portuguesa.
Nessa perspectiva, com o declínio da mineração no inicio do século XIX, a
política da coroa Portuguesa em relação ao Sertão do Rio Doce começa a
mudar de rumo. Aos poucos caem por terra às restrições à colonização e
exploração do Sertão.
Em 1800 quando Antonio Pires da Silva Pontes assume o cargo de
governador da Capitania do Espírito Santo, leva consigo ordens de
promover à abertura do Rio Doce a navegação e de proceder a demarcação
das divisas entre as Capitanias de Minas Gerais e Espírito Santo, como
observamos na correspondência trocada entre governadores da região:
OFÍCIO do Governador da Capitania do Espírito Santo, Antônio Pires da Silva Pontes Pais Leme e Camargo, ao Governador da Capitania de Minas Gerais, Bernardo José da Silveira e Lorena, a informar da franquia e abertura à navegação por águas até Minas Gerais, para assegurar o registro de ouro na Cachoeira das Escadinhas, no rio Doce. [29]
Observa-se que ao enfraquecimento das atividades auríferas na região foi
conseqüente a liberação de uma mão-de-obra local, a partir de então
ociosa e sem destino. Para o Estado Português, uma massa perigosa e a
espera de incentivos governamentais para sua ocupação.
Não é de se estranhar que, nos anos posteriores a 1800, o interesse pela
penetração em sítios ainda não explorados e que permaneciam virgens
somente abrigando as tradicionais e seculares atividades indígenas, não
fosse despertado pela iniciativa da Coroa Portuguesa. Dessa forma, após a
diligencia política do novo Governador da região, comentada pouca
acima, diversas expedições penetraram na região aproveitando-se do
grande caminho aberto pelo Rio Doce sendo assim a melhor via de acesso
ao Sertão e um novo caminho rumo ao sonho de riqueza em curto prazo, um
programa que progressivamente mostra a mudança da política oficial para a
região.
Assim, na própria Carta Régia que seria editada em 13 de maio de 1808 o
Príncipe Regente D.João VI deixa claro as novas diretrizes políticas que
passariam a serem adotadas pela Coroa com relação aos índios Botocudos e
a interiorização do interesse da Metrópole. Os incentivos da Coroa
Portuguesa na nova empreitada territorial, traduz-se assim no programa
de se implementar a navegação do Rio Doce e a colonização da sua bacia, o
que significa a abertura de um novo caminho, por terra e pela água que,
ao mesmo tempo, garantisse a exploração da região, que desse ocupação à
mão-de-obra ociosa da região, e, finalmente, que levasse os produtos
mineiros aos portos com destino à outras partes, como o Rio de Janeiro e
o mercado europeu. Nesse sentido, a carta regia de 13 de meio de 1808
enfatiza:
...Propondo-me igualmente por motivo destas saudáveis providencias contra os Indios Botocudos, preparar os meios convenientes para se estabelecer para o futuro a navegação do Rio Doce, que faça a felicidade dessa Capitania, e desejando igualmente procurar, com a maior economia da minha Real Fazenda, meios para tão saudável empreza; assim como favorecer os que quizerem ir povoar aquelles preciosos terrenos auriferos, abandonados hoje pelo susto que causam os Indios Botocudos. [30]
Por essa decisão entende-se que a questão indígena
torna-se um problema de Estado, fato paradoxal a toda legislação
portuguesa com relação aos indígenas brasileiro até o presente. E que o
programa de interiorização e de abertura de cursos navegáveis
condiciona, naquele momento, o problema da ocupação da terra, o
movimento e a concentração populacional na região mineira, aspectos
importantes para um Estado em crise, como o Português no início dos
oitocentos.
A partir desses avanços sobre o Sertão do Rio Doce os conflitos entre
indígenas e portugueses pela posse da terra passaram a ser freqüentes,
surgindo a necessidade da intervenção lusitana, no sentido de criar
normas que promovessem efetivamente a ordem, levando a repensar o Alvará
de 1º de abril de 1680, confirmado pela Lei de junho de 1755, firmando o
principio de que nas terras outorgadas a particulares, seria sempre
reservado o direito dos índios, primários e naturais senhores delas.
Sendo, portanto tal dispositivo a gênese da velha e tradicional
instituição jurídica luso-brasileira do indigenato.
Nessa perspectiva, observa-se que ao final do século XVIII e no inicio
do XIX ocorre uma transformação radical na forma como os índios eram
encarados e tratados pela Coroa Portuguesa, e relativamente à forma de
entender a questão da terra entre colonos e indígenas, essa nova maneira
de entender tais questões equivalendo ao estabelecimento de uma nova
legislação. Aventuramo-nos assim a adiantar como hipótese que esta
situação resulta em uma nova maneira de compreender a questão então
adormecida entre as diferenças concernentes ao conceito de propriedade e
de direitos naturais com relação à ocupação da terra. É claro que, além
das questões territoriais, econômicas e populacionais que o presente
propunha à Coroa Portuguesa, devemos acrescentar a situação difícil de
Portugal na Europa, diante das ameaças da expansão do Império de
Napoleônico. [31]
Assim, em meados do século XVIII chega ao fim a legislação que ficaria
conhecida como pombalina (1798). E durante os próximos 10 anos ficaria
latente a situação dos indígenas na colônia portuguesa e a questão em
torno da redefinição de propriedade e direito natural, que até então não
se colocava ao reino.
A família real estava ciente da pressão que sofreria por parte dos
colonos, interessados em apossar-se das terras indígenas, e da
necessidade de meios drásticos para privá-los de um bem que encerra em
si a sua própria razão de existir. Daí porque, a nosso ver, um período
tão curto separa a chegada da Família Real Portuguesa (janeiro de 1808) e
a edição de normas jurídicas (maio de 1808), que culminariam com a
total destruição do Botocudo no Vale do Rio Doce.
Os fatos que determinaram a edição do decreto Régio de maio de1808 já
eram previsíveis em Portugal quando D. João VI e toda a sua corte deixou
Lisboa, no inicio do século XIX rumo à colônia que, a partir de então,
passaria a sede do governo português e, posteriormente, elevada à
condição de Reino Unido a Portugal e Algarves. Fato sem duvida marcante
para a história do Brasil, pois o reino de Portugal continuava
existindo, mas a sua sede não era mais Lisboa e sim o Rio de Janeiro,
que se torna à única sede de um governo europeu na América.
Com a família real chega grande parte do funcionalismo português. Seis
dias após desembarcar em terras brasileiras D. João VI, ainda em
Salvador, emite uma carta régia abrindo os portos da colônia para todas
as nações amigas, começando ai as medidas de “modernização” da nova sede
do trono Português.
No dia 13 de maio de 1808, edita-se a carta régia, que mudaria o tom da
diretriz política da Coroa Portuguesa para com os nativos da colônia. As
novas ordens refletem, claramente, o desespero de uma monarquia cercada
pelo poderio militar francês e nas mãos de D. Maria I, “a louca” [32],
representada por seu filho o Príncipe Rgente D. João VI que declara
veementemente guerra contra os índios Botocudos:
Que desde o momento, em que receberdes esta minha Carta Regia, deveis considerar como principiada contra estes Indios antropophagos uma guerra offensiva que continuareis sempre em todos os annos nas estações seccas e que não terá fim, senão quando tiverdes a felicidade de vos senhorear de suas habitações e de os capacitar da superioridade das minhas reaes armas de maneira tal que movidos do justo terror em sociedade, possam vir a ser vassallos uteis, como já o são as immensas variedades de Indios que nestes meus vastos Estados do Brazil se acham aldeados e gozam da felicidade que é conseqüência necessária do estado social. [33]
Contudo, observa-se a partir do início do XIX mudanças nas determinações
da Corte Portuguesa. Ocorrendo então, inversões nas políticas que
diziam respeito à comunicação entre as capitanias, às doações de
sesmarias e outros assuntos que envolvem a questão agrária e, por
conseguinte, a questão indígena. Segundo Maria Odila Leite da Silva Dias
a Corte teria se preocupado em abrir estradas e, fato quase inédito, em
melhorar as comunicações entre as Capitanias, em favorecer o povoamento
e a doação de sesmarias. Tinham como fé obsessiva aproveitar as
riquezas.
Fonte: http://migre.me/vji74