sexta-feira, 2 de dezembro de 2016

Traficante Chachá - A incrível trajetória do baiano Francisco Felix de Souza, o maior mercador de escravos do Atlântico. ALBERTO DA COSTA E SILVA (Transcrição)

Por volta de 1800, desembarcou na Costa dos Escravos, no Golfo de Benim, um baiano chamado Francisco Félix de Souza. Tinha 46 anos de idade, se realmente nascera em 1754, em Salvador, de pai branco e mãe ameríndia, cabocla ou cafuza. De seus tempos no Brasil nada se sabe, exceto que estudou o suficiente para tornar-se guarda-livros e escrivão do forte português de S. João Batista de Ajudá, no reino do Daomé, hoje República do Benim. Dizia-se, na época, que talvez fosse foragido da Justiça ou condenado ao desterro. Se, em 1803, já estava no forte em Ajudá, vivera antes em Badagry, na Nigéria, e Popô Pequeno (ou Anexô), no atual Togo, onde se casara com a filha do soberano de Gliji, Comalangã. A moça chamava-se Jijibu e, menina, havia estudado na Bahia. É provável que o sogro o tenha ajudado a iniciar-se como negreiro, entregando-lhe cativos para que os comercializasse. Isso explicaria ter se tornado traficante de gente quem disse ter descido na África sem um centavo, tão pobre que, para pagar o que comer, recolhia os cauris, conchas usadas como moedas, depositados nos altares dos voduns. Tinha um organismo tão forte que resistiu às vibrações e às doenças de uma região insalubre. Em cada dez recém-chegados, seis morriam no primeiro ano, vítimas de doenças tropicais. Francisco Félix manteve-se, porém, com boa saúde até a velhice. O baiano começou a prestar serviços a mercadores europeus e brasileiros e logo lhes ganhou a confiança. No negócio de escravos não faltava lugar para auxiliares, prepostos e parceiros menores. Rapidamente, Francisco foi se firmando como comerciante de escravos. Deve tê-lo favorecido o seu cargo no forte de S. João Batista, sobretudo após 1806, quando, havendo o governo português abandonado a fortaleza, Francisco passou a cuidar dela como se fosse o comandante. Um de seus trunfos seria a facilidade com que aprendia idiomas. Não tardou em tornar-se, por ter aprendido as línguas locais, um excelente intermediário entre os nativos e os capitães dos navios. O outro trunfo foi o de ter se tornado rapidamente apreciado pela “integridade inflexível e indiscutível” com que “conduzia todas as suas operações comerciais” – palavras de um oficial britânico, que tinha tudo para lhe ser hostil. Com a fama de honesto, pôde participar no sistema de crédito que sustentava o tráfico: contra a promessa de futura entrega de cativos, era comum que se adiantassem mercadorias em confiança aos reis e mercadores.” No início, Francisco negociava para os outros, mas, com os ganhos, começou a operar por conta própria. E a guardar os seus escravos em depósitos próximos ao litoral, à espera do melhor momento para vendê-los aos navios. A fim de evitar que as febres e as diarreias causassem estragos nas tripulações, os barcos negreiros paravam o menor tempo possível em cada porto. Quem dispusesse de escravos armazenados tinha condições, por isso, de vendê-los a um melhor preço, determinado pela ânsia do capitão de fechar o carregamento. Francisco Félix não tardou em aprender essa lição. O que não aprendeu foi como lidar com o rei soberano do Daomé, Adandozan. No início da segunda década do século XIX, Francisco já devia ser um comerciante de importância. Tinha sócios e financiadores na Bahia que lhe mandavam as mercadorias com que adquiria escravos. E o seu grande fornecedor de cativos era o rei. A Adandozan Francisco adiantava mercadorias. Quando o rei se descuidou do pagamento, o baiano foi à capital, Abomé, queixar-se. O soberano recebeu-o numa varanda do palácio. Recostado em almofadas, estava de torso nu e de espingarda na mão. Tinha duas centenas de mulheres ao redor a abaná-lo com flabelos ou a lhe espantar as moscas com rabos de cavalo encastoados em prata. Uma delas, de joelhos diante dele, sustentava uma escarradeira de ouro. Guarda-sóis, grandes e coloridos, completavam, a girar, a cena. Ao cobrar o que o rei lhe devia, Francisco mostrou-se desrespeitoso. Irritado, Adandozan mandou prendê-lo. E, a fim de que perdesse a petulância de branco, determinou que periodicamente o mergulhassem num tonel de índigo, para escurecer-lhe a pele. Na prisão, Francisco ajustou com um príncipe daomeano, Gapê, um pacto de sangue que os obrigava a se ajudar mutuamente até a morte. Daí que Gapê não tenha tardado em arranjar a fuga de Francisco da prisão. Da região de Popô Pequeno, onde se refugiou, o baiano passou, por sua vez, a abastecer Gapê de armas de fogo e também de tecidos, tabaco e outros bens, que, distribuídos com largueza, conquistavam aderentes. Pôs-se, assim, em marcha uma conjura, da qual resultou a deposição de Adandozan. Gapê subiu ao poder com o nome de Guezo. E mandou buscar Francisco Félix, a quem fez cabeceira, que tornou-se grande chefe. Concedeu-lhe terras em Ajudá e, mais importante ainda, o tornou seu único agente comercial. Ao nobilitá-lo, Guezo transformou em título a alcunha que o baiano ganhara após a fuga da prisão. Ao atravessar numa piroga, escondido sob esteiras, o rio Mono, os guardas indagaram dos remeiros o que levavam, e esses responderam: chachá, isto é, esteiras. Há quem diga, porém, que o cognome significaria “andar com passos curtos e apressados”, ou seria uma corruptela de “já, já!”, imperativo usado com frequência. Como o Chachá era o agente de Guezo, os demais mercadores só podiam fazer suas transações depois que ele vendesse todos os escravos do rei e os dele próprio. Tornou-se com isso senhor quase absoluto do mercado. Não foi, como se disse, o vice-rei de Ajudá, o “chefe dos brancos” ou yovogan. Mas isso não o impediu de tornar-se, graças à irmandade com o rei, o homem mais poderoso de Ajudá, o mais rico do Daomé e talvez o maior mercador de escravos de seu tempo. À sua condição de agente e amigo de Guezo somava-se a de funcionário informal de D. João VI, pois continuava a cuidar do forte. Não vivia, porém, nele. Construíra um casarão enorme, Singbomey, numa área próxima, o futuro Bairro Brasil. Símbolo de riqueza e poder, Singbomey era a um só tempo fortificação, residência, entreposto, banco, hospedaria e oficina, tendo ao lado o depósito de escravos. Havia lá também um mirante, de onde o Chachá vigiava as manobras do esquadrão britânico que desde 1816 combatia a exportação de escravos por Ajudá. O colar de lagunas, esteiros, furos e rios que corria paralelo ao litoral dificultava a ação britânica. Os traficantes iludiam os poucos navios do esquadrão antitráfico ao transferirem, pelas águas que corriam pelo interior do território, os escravos de um porto para outro. O Chachá tornou-se mestre nesses deslocamentos. Contava, ao longo da costa, não só com informantes que o mantinham a par dos movimentos britânicos, mas também com sócios e agentes. E navios próprios, pois passara também a ser dono de embarcações. Por essa época, já era enorme a prole de Francisco Félix. Casado pelas normas daomeanas com várias mulheres, conhecem-se pelos nomes 63 de seus filhos, mas se diz que seriam mais de cem. O Chachá deles exigia que procedessem na rua como europeus. Não trajavam como daomeanos, mas à brasileira: os homens de branco, de botas e chapéu panamá; as mulheres, de vestidos longos, cintados e sem decotes, calçadas com sapatos fechados. O pai exigia que frequentassem a escola e a igreja que mantinha no forte. Ali aprendiam a ler e escrever em português, rudimentos de matemática e a doutrina cristã. A alguns mandou completar a educação na Bahia e em Portugal. Vinculado pelos matrimônios a muitas outras famílias, Francisco tinha a base de poder ampliada por agregados, escravos domésticos e outros dependentes. E o número dos que a ele se arrimaram cresceu ainda mais devido aos ex-escravos que retornavam do Brasil. O Chachá conseguia de Guezo terras onde assentá-los e os apoiava em tudo. Tornou-se o protetor e o líder deles. E não é impossível que, entre aqueles que ajudou, figurassem alguns que ele próprio, anos antes, vendera. Os ingleses, que tanto o combateram, deixaram dele esta descrição: um homem afável, hospitaleiro e prestativo, “o mais generoso e mais humano das costas da África”, para usar as palavras de um cônsul britânico. Seria assim como os seus iguais, porém duríssimo com os escravos que endereçava à venda. Exercia um ofício fundado na crueldade. A sua casa-grande dividia-se em duas partes: numa, com dependências próprias para cada uma de suas mulheres, vivia com a família; noutra, acolhia os capitães dos navios que aportavam em Ajudá. Não cobrava a hospedagem, mas proveu-se de meios para arrancarlhes dinheiro sem desdourar a hospitalidade que lhe atribuíam, montando uma casa de jogo com belas mulheres, bilhares, roleta e tudo o mais. Sua hospitalidade entendia-se até mesmo, no auge da repressão ao tráfico, aos comandantes dos cruzadores britânicos. Não hesitava em recebê-los para jantar, oferecendo a mesa arrumada com talheres de prata, copos de cristal, pratos de porcelana e toalhas de linho. Quando, em 1843, o príncipe de Joinville ali jantou, serviram-no em baixela de prata, numa sala iluminada por tocheiros e candelabros de igreja, tudo de prata maciça. O brinde aos reis da França foi acompanhado por 21 salvas de canhão. A pompa do jantar ao príncipe disfarçava a decadência. No apogeu de sua carreira, estimou-se a fortuna do Chachá em US$ 120 milhões, uma enormidade à época. No fim ele mal tinha como pagar suas dívidas em Salvador e em Havana, e essas cresciam porque não abandonara seu comportamento perdulário. Avançado nos anos, não mais memorizava os empréstimos e perdera a energia para cobrá-los. Os devedores, entre os quais o próprio Guezo, não lhe pagavam. E os filhos, a quem passara parte dos negócios, não tinham as qualidades dele, nem um pacto de sangue com o rei. O pior de tudo é que os britânicos estavam a somar êxitos na repressão. Não só apresaram numerosos carregamentos pelos quais o Chachá era responsável, mas até mesmo navios de sua propriedade – 34, conforme Joinville. Francisco Félix de Souza faleceu em 8 de maio de 1849, com 94 anos de idade. Correu à época que teria sido envenenado por Guezo, mas a acusação era evidentemente falsa. O rei o estimou até o fim. Não apenas se fez representar por dois de seus filhos e oitenta amazonas nos ritos funerários, como enviou sete pessoas para serem imoladas no túmulo do amigo. Esses e outros sacrifícios humanos teriam sido feitos em honra do Chachá, apesar da oposição de seus filhos. Mas há quem diga que prevaleceram as razões desses últimos. Certo é que as festividades fúnebres duraram alguns meses, com amazonas a dançar na praça de Ajudá e sacerdotes a imolar pombos, bodes e outros animais, e muitos batuques, e muitos tiros. Se havia naquela época um padre em Ajudá, esse certamente encomendou o corpo de Francisco Félix e rezou a missa de sétimo dia. Chachá era católico e devoto de São Francisco de Assis. Não perdia missa, mas patrocinava também um santuário dedicado ao vodum Dagoun, que, dizia-se, trouxera do Brasil. Foi nisso e em tudo o mais um centauro cultural: europeu e africano. Do mesmo modo que, após 1822, ficou sendo brasileiro e português. Nos seus domínios, hasteava a bandeira das quinas ou a verde-amarela, conforme as conveniências do momento. Saía à rua de chapéu, calças, colete e paletó, mas coberto por um grande guarda-sol e acompanhado por tambores, pífanos e amazonas e disparar para o ar as suas espingardas.
Fonte: ibdem pág 35/38  http://migre.me/vDwVG

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