Os primeiros caminhos do Litoral ao Planalto Paulista
Um rol de dúvidas, confusões, enigmas e mitos
Antonio Joaquim Andrietta (*)
1 - Apresentação
O objetivo principal deste breve ensaio é realçar a importância dos primeiros caminhos de ligação do litoral ao planalto paulista, nos primórdios da colonização portuguesa no território paulista, ainda na primeira metade do século XVI. Tornou-se necessário um repasse nos relatos históricos sobre o tema e sobre os fatos adjacentes [2], com o auxílio de diversas fontes e o cruzamento de muitas delas, para proporcionar uma ordem cronológica, tanto no sentido temporal quanto racional.
Resguardado o respeito tributado ao esforço de pesquisa e divulgação, e à liberdade de pensamento e expressão de muitos autores, alguns anônimos, as abundantes fontes em meio eletrônico (Internet) que tratam do tema [3], lamentavelmente, em grande parte deslizam para imprecisões e incoerências, quando não se limitam à pura e simples cópia, às vezes sem reconhecer a autoria original. De tal forma, avolumam-se as dúvidas e confusões sobre aspectos já controversos do tema, ainda entremeado de enigmas e mitos.
Não se pretende aqui ter atingido a verdade histórica absoluta e cabal, porque se esta houvesse cessaria toda a necessidade de produção de novos conhecimentos. A contribuição pretendida é, a partir dos relatos narrados, apresentar outros aspectos e sugerir novas interpretações. Nada é definitivo, e muito ainda se pode pesquisar e acrescentar ao conhecimento de uma parte tão importante da história e do desenvolvimento paulista e brasileiro.
Com a intenção de produzir um texto de leitura mais palatável e corrida, omitiram-se nele as recorrentes referências bibliográficas, as mais relevantes apostas em notas ao final do texto, minimizaram-se as citações de autores e substituíram-se notas de rodapé por breves observações entre parênteses no próprio parágrafo. Acredita-se que tais reparos, que se fariam a um texto estritamente acadêmico, possam ser relevados em prol de um formato de cunho mais prático e, talvez, mais útil.
De todos os eventuais leitores, historiadores ou leigos interessados nos temas aqui tratados esperam-se e acolhem-se as contraposições, críticas, sugestões e contribuições adicionais que se dispuserem fornecer.
2 - A trilha dos tupiniquins
Em inúmeros relatos históricos do período inicial da colonização do território paulista pelos portugueses, encontram-se marcantes referências a um caminho que, partindo do litoral de São Vicente, transpunha os 800 metros da escarpada serra, além da qual se iniciava o planalto de Piratininga.
É inegável que a portentosa serra - um paredão, ou a muralha que mais tarde inspirou um excelente romance histórico com o mesmo título [4] -, tão próxima ao litoral sudeste do território, exercesse forte atração à curiosidade dos colonizadores. O espírito aventureiro, a ânsia de encontrar as tão decantadas riquezas minerais, ausentes nas terras litorâneas, impeliam-nos a desbravar novos espaços. Afeitos ao mar, os recém chegados não teriam se arriscado terra a dentro se não tivessem como guias os indígenas.
Os europeus aportados em São Vicente, e que estabeleceram boa relação com os habitantes locais, logo perceberam que estes se movimentavam constantemente por aquela serra.
Não foi difícil segui-los. No sopé da serra, ao qual chegavam navegando em canoas por um sinuoso rio, encontrava-se um caminho demarcado, com largura de 1,80 metros (8 palmos), limpo e rebaixado cerca de 40 centímetros (2 palmos) em relação ao nível do terreno em volta. Subindo em planos suaves, contornando os contrafortes dos morros, o caminho chegava ao topo da serra após percorrer uma distância aproximada de 40 quilômetros (6 a 7 léguas). Ali chegados os viajantes ouviam os índios falando Paranapiacaba e, instigados por eles, viravam-se entendendo o significado da palavra - "lugar de onde se avista o mar" - deslumbrados com a imponente visão da orla banhada pelo Oceano Atlântico.
No planalto, logo adiante o caminho era interrompido pela confluência de dois rios, que os índios denominavam Guarapiranga ao que vinha do Oeste e Jurubatuba (ou Jeribatiba) ao que fluía do Leste, ali se juntando e correndo para o Norte.
A viagem por esse caminho não demandava mais que dois dias e, na descida apenas um, como mais tarde, com surpresa constatou Martim Afonso de Souza que, já no dia seguinte à sua chegada à ilha de São Vicente, ao desembarcar foi recepcionado por João Ramalho, acompanhado por grande comitiva, vindos do planalto de Piratininga onde viviam.
3 - A vivenda dos guainás no Planalto
Como pudera o degredado português saber, tão prontamente, da chegada do importante emissário do rei de Portugal? As atividades exercidas por Ramalho e sua localização no planalto explicam o que não seria coincidência ou premonição. Ramalho vivia na taba dos Guaianás, chefiada pelo cacique Tibiriçá, cuja filha Potira (ou Bartira) tomara como esposa e da qual já possuía vários filhos e filhas. Tibiriçá dominava a região de Piratininga junto com seus irmãos Caiubi e Piquerobi, estes estrategicamente localizados o primeiro na região sul, próximo à confluência dos rios Guarapiranga e Jurubatuba (região denominada de Ibirapuera e depois Santo Amaro) e o segundo na região leste, às margens do rio Anhembi, ou Tietê (local chamado Uraraí e depois São Miguel Paulista).
A taba de Tibiriçá situava-se próxima à nascente do rio Tamanduateí, num local denominado Guapituba (em terras do atual município de Mauá). A uma distância de menos de duas léguas dali Ramalho instalara um posto de observação permanente de toda a orla de São Vicente (a atual Vila de Paranapiacaba, outro "local de onde se avista o mar"). O interesse era acompanhar a entrada de navios na baía e no porto. Se fossem invasores, descia com sua tropa de portugueses, índios e mamelucos para lhes dar combate (como o fez em outras ocasiões). Ou, então, seriam parceiros com os quais poderia traficar índios inimigos, aprisionados em combates.
Ramalho, e outros degredados que o rodeavam, viviam em boa paz com os índios amigos, cujos costumes que lhes apraziam logo absorveram, sem tentar lhes impingir os seus. Entretanto, o ritual de devorar os prisioneiros inimigos era abominado por eles. De modo matreiro, acenando com os utensílios, ferramentas, armas e munições que podiam obter no escambo com os mercadores que aportavam em São Vicente, foi fácil convencê-los de que era melhor vender os escravos do que comê-los apenas ritualmente, posto que aos próprios índios deveria apetecer mais a carne da caça e da pesca, sua alimentação mais constante. A ausência de referências históricas de que, à época da catequese dos jesuítas, estes duros padres tivessem que combater a antropofagia dos indígenas, pode ser indicativo de que aquele costume ritual já se acabara.
O caminho da Serra de Paranapiacaba, trilhado por Ramalho, era continuado por este após descer o Rio Jurubatuba em canoas de troncos de árvores (as pirogas indígenas). O Jurubatuba têm suas nascentes nas imediações de Paranapiacaba, e recebendo outros afluentes menores, entre os quais o Bororé, fornecia caudal necessário à navegação fluvial tão primitiva.
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Fonte Histórias e Lendas de Santos - Estradas - http://migre.me/8fwXe