(Transcrição) Frei Francisco chegou ao Pindamonhangaba e dali atingiu o
Guaratinguetá. Mais dois dias caminhando até o pôr-do-sol, e ultrapassou o
porto de Guaipacaré, onde ficavam as roças de Bento Rodriguez. Três jornadas
depois avistou o Paraíba correndo no meio de um vale. A viagem transcorria com
lentidão quando frei Francisco, feliz, ouviu um sino ecoando. A estrada
melhorou, tornou-se mais larga, pavimentada de pedras grandes. Avistou ao longe
Mariana e seu cortejo. Às margens do Paraíba, um rio caudaloso cercado de
rochedos, havia um povoado com cabanas e uma pequena igreja sobre uma colina
coberta de plantações de bananeiras. Atrás de uma das casas, pastavam cavalos
que serviam de muda à escolta do ouro. A travessia do rio, avolumado pelas
chuvas dos últimos dias, estava extremamente perigosa. As águas corriam com
força. Uma balsa frágil transportou as salvaguardas e os cavalos para o outro
lado. Os animais, com olhos vendados, relinchavam. Mariana, Valentim e Aurora
fizeram a travessia numa canoa. Mariana estava pálida e Aurora vomitou tudo o
que tinha no estômago. No rancho, viajantes divertiam-se com mulheres; mulas comiam milho
num coche; recoveiros empilhavam rolos de couro recheados de tabaco. A dormida
naquele rancho não era paga, mas os preços que se cobravam na venda eram
suficientes para compensar a hospedagem gratuita. A venda, uma casinhola de
barro onde se ofereciam farinha em sacos, forragem, aguardente, vitualhas,
ficava um pouco distante das casas. No povoado, escravos retiravam baús do
lombo de animais. À beira do rio limpavam as alabardas, molhavam as correias;
verificavam as ferraduras dos cavalos, as peças dos carros; faziam consertos.
Moradores conversavam, agachados; espreitavam os viajantes com desconfiança.
Mariana pediu a Valentim que alugasse uma das casas para pousarem. Quando ele voltou, disse que conseguira uma cabana abandonada.
Mariana e Aurora foram acomodar-se na casinhola que cheirava como um estábulo.
Havia barris de pólvora, vazios; sacos de milho seco rasgados pelos ratos,
selas roídas, uma gaveta de ferro enferrujada, um banco quebrado, estrume no
chão. Improvisaram colchões usando peles sobre palhas. O vento entrava pelas
frestas da casa. Durante um longo tempo Mariana conversou com Aurora sobre o
catecismo, enquanto penteava seus cabelos. Aurora perguntou se uma mulher podia
conceber sem um homem, como a Virgem Maria. De noite, Valentim e as
salvaguardas conversavam perto dali, quando chegaram algumas cortesãs. Uma
delas achegou-se a Valentim. Que bela
noite, senhor , ela olhou o céu. Sim,
que bela noite. Posso ficar convosco?
Ele mandou que a mulher se sentasse.
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Já entramos no Sertão das Minas? , perguntou Mariana, ao atingirem o sopé de uma montanha. Sim, disse Valentim, abaixando-se e recolhendo um punhado de terra vermelha. Aqui começa o Embaú. Embaú quer dizer garganta, vale. Estais vendo aqueles morros? Valentim apontou uma massa verdejante de matas. São a Mantiqueira , ele disse. Muros altos, para que nas Minas não cheguem os fracos. Valentim lavou a cara e as mãos numa fonte, examinou os cavalos e as mulas, saltou no dorso de seu animal e ordenou a partida. Viajou adiante, sempre a algumJá não fazia mais calor, a região das caligens era fresca mesmo com sol alto. Os nomes dos lugares se referiam a um detalhe da paisagem, a um fato ocorrido na região: Passa Vinte, Passa Trinta, riachos que se cruzavam vinte, trinta vezes; Pinheirinhos, onde floresciam bosques de pinheiros, lugar de roças de milho, abóbora, feijão, feitas pelos descobridores paulistas; Rio Verde, uma corrente de águas esverdeadas, com plantações às margens; Boa Vista, uma paisagem de campo regado por ribeirões; Rio Grande, cujas águas causavam medo pela violência com que corriam; Rio das Mortes, onde muitos haviam morrido ao atravessarem a correnteza ou em refregas de pelouradas. Mariana divertia-se olhando os papagaios, as corujas, os tucanos, as antas. Ria das vacas magras soltas nas campinas. Respirava com força o ar úmido que vinha das matas. Bebia água das fontes, molhava os pés nos regatos gelados, comia palmitos e mel. As alturas lhe davam uma sensação de bem-estar.a distância das mulheres, junto com o condutor, às vezes sumindo numa curva. O negro que os guiava sorria como um sagüi e falava baixo, escondendo a boca com a mão. Valentim conversava com ele, saltava do cavalo para observar a trilha, afastava a vegetação, previa os perigos, decidia a direção a ser tomada.
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Já entramos no Sertão das Minas? , perguntou Mariana, ao atingirem o sopé de uma montanha. Sim, disse Valentim, abaixando-se e recolhendo um punhado de terra vermelha. Aqui começa o Embaú. Embaú quer dizer garganta, vale. Estais vendo aqueles morros? Valentim apontou uma massa verdejante de matas. São a Mantiqueira , ele disse. Muros altos, para que nas Minas não cheguem os fracos. Valentim lavou a cara e as mãos numa fonte, examinou os cavalos e as mulas, saltou no dorso de seu animal e ordenou a partida. Viajou adiante, sempre a algumJá não fazia mais calor, a região das caligens era fresca mesmo com sol alto. Os nomes dos lugares se referiam a um detalhe da paisagem, a um fato ocorrido na região: Passa Vinte, Passa Trinta, riachos que se cruzavam vinte, trinta vezes; Pinheirinhos, onde floresciam bosques de pinheiros, lugar de roças de milho, abóbora, feijão, feitas pelos descobridores paulistas; Rio Verde, uma corrente de águas esverdeadas, com plantações às margens; Boa Vista, uma paisagem de campo regado por ribeirões; Rio Grande, cujas águas causavam medo pela violência com que corriam; Rio das Mortes, onde muitos haviam morrido ao atravessarem a correnteza ou em refregas de pelouradas. Mariana divertia-se olhando os papagaios, as corujas, os tucanos, as antas. Ria das vacas magras soltas nas campinas. Respirava com força o ar úmido que vinha das matas. Bebia água das fontes, molhava os pés nos regatos gelados, comia palmitos e mel. As alturas lhe davam uma sensação de bem-estar.a distância das mulheres, junto com o condutor, às vezes sumindo numa curva. O negro que os guiava sorria como um sagüi e falava baixo, escondendo a boca com a mão. Valentim conversava com ele, saltava do cavalo para observar a trilha, afastava a vegetação, previa os perigos, decidia a direção a ser tomada.
Fonte: Miranda, Ana, 1951- O retrato do rei / Ana Miranda. — São Paulo : Companhia das Letras, 1991. pág. 109/117 http://migre.me/9uN79