Sistema de circulação e o controle do território
Como expressa a historiografia, a
mineração de metais preciosos tornou-se a atividade central da política
exploratória da América Portuguesa no Setecentos, logo, o seu destino deveria
ser, indubitavelmente, os portos da Colônia. O porto de Santos foi o primeiro a
ter função de escoar o ouro para a metrópole, dada a proximidade com as minas, a
rede de clientelismo que favorecia os “paulistas poderosos" (ANDRADE, 2002) no
recebimento dos lotes minerais, bem como na proximidade e acesso que essa praça
portuária tinha à vila de São Paulo, que, na ocasião, constituía-se como o
principal ponto de entroncamento de vários caminhos e rotas de penetração
(ABREU, 1963), resultado da tradição bandeirista. Desses, o caminho do vale do
Paraíba que conduzia à Serra da Mantiqueira, após seguir o vale, tornou-se a
principal rota de entrada de migrantes, da saída do ouro e do próprio
abastecimento das minas nos seus primeiros anos. Era o chamado Caminho Geral do
Sertão. Prado Jr. (2000) e Santos (2001), dentre outros autores, utilizaram os
relatos de Padre Antonil [16] para descrever a rota paulista que partindo da vila de
São Paulo, passava pela Penha, Itaquaquecetuba, Mogi das Cruzes, Laranjeiras,
Jacareí, Taubaté, Pindamonhangaba, Guaratinguetá e Lorena. Transpunha-se a serra
da Mantiqueira pela garganta do Embau e, vencida a “cordilheira” o caminho
bifurcava-se, indo um dos ramos para as minas de Ribeirão do Carmo e Ouro Preto
e o outro para as minas do Rio das Velhas. A esse caminho, juntou-se uma
variante que partia do Rio de Janeiro por terra até Sepetiba, seguia por mar até
Paraty e daí, subia a Serra do Mar atingindo o planalto nas proximidades da vila
bandeirante de Guaratinguetá, seguindo desse ponto em diante pelo mesmo Caminho
Geral. Esse caminho do Rio de Janeiro às Minas Gerais, passando por Paraty
passou a ser chamado no século XVIII de Caminho Velho.
O rápido crescimento populacional da
região aurífera e sua necessidade de abastecimento, bem como o escoamento rápido
e seguro do ouro demandavam um sistema de circulação com qualidades não
encontradas nem no Caminho Velho, muito menos no Caminho Geral, dadas as suas
dimensões espaço-temporal alargadas. Faltava, desta forma, dotar os sertões das
Minas Gerais dos Cataguás, como assim era chamada a região aurífera, de um
sistema de circulação mais rápido e seguro com o objetivo de garantir maior
fluidez na circulação do ouro, mercadorias, alimentos, pessoas e informações,
logo, maior controle sobre a arrecadação dos impostos, como o quinto real e o
dízimo. Em outras palavras, podemos dizer que a exploração das minas de ouro
deu-se num ritmo veloz, enquanto a circulação continuava viscosa em virtude das
inúmeras dificuldades encontradas nos primeiros caminhos. A intenção da abertura de um caminho
que ligasse diretamente a cidade do Rio de Janeiro às Minas Gerais já aparecia
em cartas escritas pelo então Governador do Rio de Janeiro – Artur de Sá e
Meneses – ao Rei de Portugal, como na de 24 de maio de 1698. Nela, o Governador
demonstra preocupação com “o extravio do ouro por caminhos outros, com as
dificuldades que se acham os mineiros de todas as vilas e os do Rio de Janeiro
de chegarem” e, por fim, com o próprio abastecimento de gêneros alimentícios
para justificar sua ida a São Paulo com o objetivo de “encontrar alguém para a
abertura de um caminho que viesse pôr fim a tais inconvenientes à Fazenda do
Rei”
[17]
Na própria carta, o Governador
informa que um certo Amador Bueno havia se oferecido para a abertura do caminho,
porém, “eram tão grandes os interesses que me pedia, que o excusei sobre a dita
diligência”. Como esse era um negócio de grandes possibilidades lucrativas, o
paulista Garcia Rodrigues – o descobridor das chamadas esmeraldas - se
prontificou em abrir tal caminho em menos tempo. Antes de nos revelar uma
simples negação a um e a autorização a outro, a carta nos revela os conflitos
existentes entre os paulistas para o controle do futuro Caminho Novo.
[18]
O debate travado sobre o ponto de
partida e a data do início da abertura do Caminho Novo nos revela que, sob
qualquer um dos pontos de vista, havia, de fato, um enorme interesse em
controlar o mais rápido possível o caminho do ouro. A rapidez em que iniciou as
obras e a concessão, já em 1700, por ordem do Governador do Rio de Janeiro, do
direito exclusivo de fazer ou manter negócio no Caminho Novo [19] , mesmo
que se limitando a uma picada para pedestres, evidencia que Garcia Rodrigues não
só sabia utilizar muito bem a memória de seu pai [20] para garantir mercês junto à Corte e de
seus representantes na Colônia (poder de crédito), como sabiamente previu que o
controle do caminho do ouro lhe garantiria poder político e econômico por
décadas, ou ainda, como bem mostrou RODRIGUES (2002), por séculos! [21] . Seu
itinerário
[22] era o seguinte:
“Descendo da Borda do Campo (atual
Barbacena) pelo vale do Paraibuna, abandonava-o pouco abaixo de Simão Pereira,
e, cruzando o rio, ia ter diretamente ao Paraíba em Paraíba do Sul. Das margens
do Paraíba tomava o caminho rumo geral de SSW e, passando por Pau Grande (perto
da estação de Avelar) e pelo atual Pati do Alferes, alcançava a serra do Couto
que permitia a passagem relativamente fácil da bacia do Paraíba para a dos altos
formadores do Santana, chegando-se, então, à frente escarpada voltada para a
Baixada e drenada pelos afluentes do Iguaçu. Do sítio do Couto, alcançava a
baixada pelo vale do Pilar, afluente do Iguaçu, acompanhando-o até a sede da
freguesia do Pilar. Daí dois rumos poderiam ser tomados: descer pelo rio até a
Guanabara e o Rio de Janeiro, ou chegar a esta cidade por terra, atravessando o
rio Iguaçu e em dois dias alcançar Irajá” (Bernardes, 1961, p.60).
Nos dez primeiros anos de sua
existência, o Caminho do Couto não passava de uma picada aberta na mata com
inúmeros problemas e limitações para os viandantes e comerciantes, a saber: a
estrada era tão estreita que permitia a passagem somente de pedestres,
obrigando, dessa forma, o transporte de toda sorte de mercadorias ser realizado
nas costas de escravos negros e índios, o que o tornava extremamente oneroso;
ausência de pousos e estalagens em extensos trechos do caminho, impondo aos
viandantes o pernoite “no mato”; e, talvez o maior dos problemas, a
irregularidade ao longo do ano no abastecimento de alimentos pelas poucas roças
existentes.
[23]
De qualquer forma, nesses primeiros
anos, a possibilidade de fazer o percurso das Minas de Ouro ao Rio de Janeiro em
dez dias era uma vantagem imensurável se comparada aos caminhos Geral e Velho,
tanto para o erário Real, que passava a ter maiores condições de controle da
produção e circulação do ouro, quanto para os comerciantes que abasteciam as
minas e, sobretudo, aos migrantes que mais rápido chegavam à região aurífera. [24] Todavia,
a vantagem temporal do Caminho Novo de Garcia Rodrigues, ou Caminho do Couto
como também era conhecido, não foi capaz de proporcionar a fluidez que a
mineração passou a demandar a partir da segunda década do Setecentos, resultado
do próprio crescimento da população e da produção aurífera, bem como da
necessidade cada vez maior de fornecimento de gêneros da terra e mercadorias em
geral.
Em requerimento de 1723, encaminhado
ao Rei [25] ,
moradores do rio Inhomirim explicitam os problemas do Caminho do Couto e pediam
autorização para abertura de uma outra variante mais rápida e segura, dada “as
muitas inconveniências, moléstias, perdas e riscos de vida que continuamente
experimentam os viandantes deste atual Caminho”. Nas palavras dos próprios
moradores, “o lucro que tiram dele [transporte pelo Caminho Novo], nêle o tornam
a deixar, gastando mais de oito dias até o Paraíba.” Explicitando que já
conheciam uma outra variante de trajeto para o caminho – talvez já previamente
utilizado como rota alternativa para o não pagamento dos tributos reais – os
mesmos moradores elencam suas vantagens que:
“fazendo-se o caminho pelo rio
Inhomirim que desde a barra é povoado de moradores, com estalagem à beira
d’água, cômodos pastos para as bestas até o pôrto e que as dito acomodar, porque
de qualquer pôrto poderão carregar bestas e marchar até o Paraíba sem tirar
cargas, nem sentirem inconveniência de subir serra nem alugarem canoas por não
ser necessário e sobretudo ser o caminho muito breve que em três dias se poderá
ir à Paraí
[26]
No mesmo ano, o Governador do Rio de
Janeiro, Aires de Saldanha, ordena ao sargento-mor Bernardo Soares de Proença
que “vá aquele sertão fazer o referido exame” para comprovar as “ditas”
vantagens anunciadas pelos moradores do Inhomirim.
Tão logo comprovada a vantagem desta
variante, o sargento Bernardo de Proença colocou-se efetivamente na tarefa de
torná-la em condições de circulação, levando aproximadamente quatro meses e meio
nessa tarefa.
[27] Este passou a ser chamado de Caminho de Proença ou Caminho de
Inhomirim. Segundo Bernardes (1961, p.62):
“abandonando este [Caminho do Couto]
ao sul do Paraíba (atual Encruzilhada), seguia para sudeste na direção do vale
do Fagundes e de seu afluente Secretário, que acompanhava antes de ganhar o
Piabanha, cujo curso seguia até o alto da serra. Daí descia à Baixada pelo vale
do Inhomirim ou Estrela até o porto de mesmo nome, por onde se alcançava por
água o Rio de Janeiro”.
O interesse e a necessidade em tornar
a circulação entre as Minas Gerais e o porto do Rio de Janeiro mais rápida era
tão evidente que o processo de abertura dessa variante do Caminho Novo foi
também extremamente rápido, pois, da petição dos moradores do Inhomirim ao
comunicado por parte do Governador do Rio de Janeiro do término das obras
(06/10/1725)
[28] não se passaram mais que dois anos.
Esse fato nos prova o quanto a Coroa
Portuguesa estava empenhada em fincar seu poder e controle sobre as Minas
Gerais. Das primeiras expedições de descobrimento no século XVII até a abertura
dos Caminhos do Couto e de Inhomirim, o chamado “sertão das minas” já passara
por inúmeras transformações socioespaciais, tais como o surgimento de outros
caminhos e rotas menores de circulação interna, crescimento demográfico,
surgimento de inúmeras vilas, degradação ambiental dos rios e riachos, dizimação
da população indígena, entre outras. No entanto, a Coroa ainda não conseguira
instalar-se efetivamente com seu cetro de poder nessa área, objetivando maior
controle e arrecadação de impostos sobre a produção aurífera. Faltava a esse
novo território um sistema de circulação capaz de garantir maior fluidez para o
escoamento do ouro, às mercadorias vindas do litoral e aos gêneros da terra de
abastecimento, bem como maior fluidez do controle régio, que chegava nas minas
muito lentamente.
Os Caminhos do Ouro proporcionaram a
dinamização, normatização e. conseqüentemente, maior controle dos processos
socioespaciais já instalados nas Minas Gerais em anos anteriores. Em outras
palavras, podemos dizer que foi a partir da abertura destes que novos sistemas
de objetos e sistemas de ações representativos das forças metropolitanas e
locais se densificaram, garantindo e viabilizando a transformação da
configuração territorial brasileira. Fonte: http://migre.me/fuCGf
Caminho Velho - via Registro (Piquete-SP), Conceição do Embaú (Cruzeiro-SP)