quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

(Transcrição) - Do dilúvio universal ao Pai Tomé - Fundamentos teológico-políticos e mensuração do tempo na historiografia brasílica (1724-1759)

Se os índios cantavam a sua história, recordando a grande inundação ou dilúvio que teria atingido o continente em tempos remotos, eles também padeciam do mal do “esquecimento” da herança evangélica semeada pela passagem de São Tomé pelo continente americano. A questão não era banal, uma vez que incidia sobre (ao menos no plano teórico) a legitimidade do instituto da “guerra justa” contra o “gentio bravo” (ou também chamado, pejorativamente, índio tapuia)25. O esquecimento da pregação do apóstolo permitia a transformação do índio “gentio ou pagão” em “infiel”, embora, após a promulgação do Diretório dos Índios em 1755-58 (legislação que procurava promover a aculturação civil do índio), a retórica que justificava a catequese começasse a ser transposta para uma linguagem laica, ou seja formulada em termos de um questionamento sobre as possibilidades civilizatórias dos súditos indígenas
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As primeiras referências à passagem do apóstolo das Índias orientais pela América datam do século XVI. Os cronistas jesuítas teriam sido os grandes difusores da crença nas pegadas americanas de São Tomé. O pregador teria sido o primeiro a semear o evangelho e a ensinar o cultivo da mandioca aos ameríndios em sua marcha do litoral para o interior do continente americano26. Herói civilizador nas Américas lusitana e hispânica, o apóstolo sintetiza um estilo de evangelização praticado pela Companhia de Jesus. São Tomé transformou-se em intérprete ou mediador cultural ao converter-se à cultura do índio para poder realizar a missão salvífica27. No século XVII, o jesuíta Simão de Vasconcellos (1597-1671) identificou as pegadas de São Tomé em cinco lugares, lembrando que suas pegadas eram veneradas pelos índios, os quais ainda conservavam na memória os ensinamentos daquele sábio a quem teriam apelidado de pai Zumé ou Sumé28.
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A exumação dos rastros de Santo Tomé tornou-se um exercício de arqueologia, bem como uma forma de especulação histórico-cronológica sobre as origens do povoamento no continente. Não parece ser mera coincidência o fato de que o santo é popularmente conhecido como o santo que “precisa ver para crer”, um santo que exige provas documentais!!! Por volta de 1729, o cirurgião-mor do Rio de Janeiro, Mateus Saraiva (membro da Academia dos Felizes no Rio de Janeiro e sócio da Academia dos Renascidos), chegou a emitir um parecer sobre as inscrições lavradas nas pedras na serra de Itaguatiara (Rio das Mortes/MG) –, para serem, posteriormente, apresentadas por Martinho de Mendonça de Pina e Proença na Academia Real de História Portuguesa em Lisboa29. As análises do cirurgião-mor confirmavam que as inscrições constituíam provas materiais da passagem de São Tomé pela América
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No entanto, entre os acadêmicos havia também dissonâncias. Frei Gaspar da Madre de Deus, por exemplo, opôs-se às evidências apresentadas pelos seus colegas da Academia dos Renascidos. Em conformidade com a orientação da Academia Real de História Portuguesa, ele não via necessidade de recuar a cronologia até os tempos imemoriais do Dilúvio; seu ponto de partida era a descoberta da América, do Brasil ou da fundação da capitania de São Vicente (São Paulo). No espectro geral da historiografia luso-americana, a posição de Frei Gaspar parece ter sido a menos providencialista, opondo-se a visão joaquimista de Frei Jaboatão, por exemplo. Frei Gaspar da Madre de Deus duvidava da “fé histórica” alimentada pela maioria de seus colegas relativa à passagem de São Tomé pela América.
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Frei Gaspar da Madre de Deus preferia questionar a argumentação corrente, provando que as supostas “pegadas” de São Tomé não passavam de fósseis vegetais: “hão de conhecer que todas se vêem gravadas em certa casta de pedra, a que alguns filósofos chamam vegetativa”30. Da mesma forma, recusava-se a aceitar o argumento sobrenatural: “porque a nenhum filósofo é lícito reputar milagrosos sem razão convincente os fenômenos que cabem a força da natureza”31.
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Tinha certa razão Frei Gaspar da Madre de Deus quando se referiu ao fato de que os analistas costumavam tratar as inscrições como se fossem fósseis ou documentos registrados no “livro da natureza”. O cirurgião-mor do Rio de Janeiro, Mateus Saraiva, por exemplo, inspirava-se nas teorias do jesuíta Athanasius Kircher (1602-80) em Mundus subterraneus (1664), para defender uma perspectiva que conciliasse a análise geológica com as fontes bíblicas. Ou seja, a observação da formação geológica (estratigráfica) permitiria a datação das eras pré e pós-diluvianas. A perspectiva calcada nos relatos bíblicos servia para atestar a antigüidade do continente, e, assim, confirmar a retórica geopolítica da colonização.
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Em seu clássico estudo sobre os fundamentos edênicos da colonização, Sérgio Buarque Holanda escreveu que as cruzes apostólicas arvoradas nas andanças de São Tomé seriam posteriormente reivindicadas como marcos de antiga ocupação européia no Novo Mundo.32 O acadêmico tenente José Miralles comentou em sua história militar: “(...) pois somente esta memória escrita na casca das árvores, e algumas cruzes de pão arvoradas, reconheciam os portugueses que bastavam para posse Real do que descobriam”33.
Fonte: Íris Kantor  http://cultura.revues.org/886

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