................................................................................................................................................
Sondáveis interesses:
Sondáveis interesses:
Afonso Sardinha, o moço, residia junto ao rio Pinheiros, em São Paulo e
minerava em Jaraguá. Descobriu minas de ferro em Araçoiaba em 1589 e,
com seu parceiro, Clemente Alvares, minas de ouro no Jaraguá, Vuturuna
(Parnaíba) e Jaguamimbaba (nas proximidades da Serra da Mantiqueira).
Sardinha ainda teria construído dois engenhos para fundição de ferro em
Araçoiaba, sendo um deles doado ao governador geral do Brasil, D. Francisco
de Souza, instalado em São Paulo desde 1599.11 O moço faleceu em
1604, em pleno sertão, e fez correr fama de que deixara em testamento
“oitenta mil cruzados de ouro em pó enterrado num botelho de barro” A
afirmação foi ironizada por Afonso Taunay, pois segundo ele, depois da
conversão aproximada desta quantidade em quilos, Sardinha o moço poderia
ser considerado um “Fugger brasileiro”.12 Esta suspeitosa riqueza de
Sardinha pode ser considerado apenas mais um dos episódios nebulosos
que envolvem o tema das minas na São Paulo dos séculos XVI e XVII.
Algumas décadas depois, e após muitas especulações, pedidos e
expectativas, as minas de São Paulo ainda pareciam despertar dúvidas.
Numa carta de Salvador Correia de Sá e Benevides ao rei, datada de
1654, este falava que, em relação às minas da Capitania de São Vicente,
os interessados “as avaliam por mais do que são; e os outros por menos
do que mostram”.13 Fazia questão de pontuar que “depois de todas aquelas
diligencias feitas com Dom Francisco de Sousa por el rey de Castela
e das noticias das particularidades (...) não acabo de persuadir me a que
na realidade aja tais minas”. Por fim, recomendava cautela para não alimentar
muitas ambições e solicitava o envio de alguém com desinteresse
para as demandas minerais, segundo ele, coisa “difícil de conservar entre
ouro e prata em terras tão remotas”, ainda mais com “os ânimos daqueles
moradores sediciosos e turbulentos; porque é a Rochela do sul a capitania
de São Paulo”. Reconhecia que ia contra a opinião de muitos, mas, assim
mesmo, acreditava que valeria a pena o esforço.
E o esforço da família Sá em relação às tais minas de São Paulo não
era novo. Anthony Knivet já havia relatado como participara de uma entrada
liderada pelo pai de Benevides, Martim de Sá, em 1599.14 Ademais, o avô,
Salvador Correia de Sá, era próximo do governador D. Francisco e herdou
as suas mercês após a sua morte, depois de algumas diligências políticas
na corte de Madri.15 Em 1613, Salvador Correia de Sá recebeu as mercês,
repassando-as, primeiro, para um dos filhos, Martim de Sá, e, depois, para
o outro, Gonçalo de Sá. Segundo Carvalho Franco, Benevides viera de
Portugal com o avô e o teria acompanhado a São Paulo, onde ficou parte
de sua adolescência, por cerca de cinco anos, fazendo ensaios de metal
e recolhendo notícias sobre as tais riquezas minerais. Numa carta do avô
de 1616, citada por Carvalho Franco, Salvador Correia alegou que estava
averiguando as minas e que havia muito ouro, que a cada dia se descobria
mais, mas que os ministros reais teriam empenho em esconder as
descobertas, já que atingiam suas jurisdições.16 De fato, Salvador Correia
chegou a encarregar o filho Gonçalo de empreender uma devassa na vila
para apurar a suspeita de que moradores estavam induzindo testemunhas
a relatar que não havia ouro algum.17
As notícias das riquezas sempre se revelaram desencontradas. As
suspeitas variavam entre a ideia de riquezas minerais extremadas, desviadas,
e a de inexistência de metal, tratando-se de um mito alimentado pelos
moradores para arrancar privilégios da Coroa. Seja como for, sobre essa
riqueza mineral, da qual Taunay, concordando com Capistrano de Abreu,
chegou a afirmar que “muito ogó haveria”, sempre recaiu certa suspeita
de traquinagem e malícia por parte dos paulistas, tanto na perspectiva do
desvio quanto na da inexistência. Uma população mancomunada para
ludibriar autoridades e fiscais, como vislumbrou Gonçalo de Sá.18
As eternas suspeitas e boataria em torno das minas esgotaram a paci-
ência até mesmo dos membros do Conselho de Portugal. Em 1630, diante
de uma nova petição sobre as minas, feita por Martim de Sá, seus membros
responderam que D. Francisco de Souza “não fez cousa de consideração
nem de que resultasse utilidade” e Salvador Correia de Sá “também não
fez nada nem apurado com clareza a importância delas”. Portanto, se não
era possível “alcançar a verdade e certeza das minas de ouro do Brasil”,
melhor negar novas mercês e deixar que os particulares buscassem livremente
o ouro, desde que pagassem o quinto. Neste mesmo ano, o tema
parece ter voltado com força, já que o vigário Lourenço de Mendonça, que
viera de Potosí – e segundo seu memorial “persona mais inteligente em
matéria de minas” – também solicitava a mercê para explorar e beneficiar
as minas de São Paulo, tudo sob suas custas. Em sua petição, usou um
argumento técnico para justificar porque D. Francisco de Souza fracassara
e como isso não se repetiria:
Fue pues el dito Dom Francisco a beneficiar las dichas minas y sierras por lavadores
y bateas o artesones por el qual modo solamente se cava el oro graúdo
y que la vista llega a alcançar y se pierde la maior cantidad que es el menudo y
que esta encorporado por la tierra y piedra como es el de las minas de Sarruma
del Peru.
Para superar o problema, dizia o padre que adotaria o sistema de azougue
– uso do mercúrio – utilizado no Peru, e que as minas renderiam mais
que as de Potosí. Prometia ainda remediar a monarquia com muitos bens
e fazer entrar em Lisboa a mesma riqueza que entrava em Castela. Para
seu benefício, pedia somente que pudesse trazer para São Paulo gente de
Potosí que soubesse beneficiar o ouro e gente para construir engenhos. Por
fim, pedia provisões para os capitães e “justicia” de São Paulo, ordenando
que ninguém o impedisse, pois soubera que “algunas veces ho an hecho a
hombres que a esto venieron del Peru”.19 Lourenço deixa transparecer que
existiria uma grande riqueza mineral, não só mal trabalhada, pela explora-
ção na base da faiscagem, como atravancada pelas autoridades, ou seja,
um discurso muito semelhante ao de Salvador Correia de Sá anos antes.
Outro documento célebre é a carta de Manuel Juan Morales ao rei, de
1636. Ele relata sua permanência em São Paulo desde pelo menos 1595,
e sua carta cumpre bem o papel de denunciar uma série de descalabros,
justificando mercês ao próprio missivista, detentor da solução de uma parte
dos problemas. O tema dos metais de São Paulo perpassa seu relato, já que
o autor era especialista em minério de ferro. Em relação ao ouro, alardeia que
quando foi responsável pela arrecadação dos quintos, fez subir de setenta
mil maravedis, em 1603, “hasta el dia de oi, que es de 636, a cantidad de
três mil y seiscentos cruzados”.20 Queixava-se, contudo, que as autoridades
enviadas a São Paulo para coibir abusos, principalmente relacionados ao
apresamento de gentios no sertão e aos ataques às reduções jesuíticas,
eram subornadas com ouro.
Em 1609, o capitão-mor Gonçalo Conqueiro foi destituído do posto e
enviado preso à Bahia pelo governador Diogo de Meneses, sob a suspeita
de que ele havia escondido ouro não quintado em sua casa.21 Autoridades
corrompidas pelo ouro, ciosas de seu poder e abrigadas por uma população
turbulenta e insubmissa que praticava toda sorte de impedimentos,
roubos e boicotes deitaria frutos no tempo. Já no final do século XVII, em
1692, o governador do Rio de Janeiro, Antonio Paes de Sande, dizia que
os paulistas escondiam as verdadeiras informações das minas e teriam sido, inclusive, indiretamente responsáveis pela morte do governador D.
Francisco de Souza, que se deu em São Paulo em 1611, já que este teria
morrido de desgosto depois das notícias do assassinato de um mineiro
que enviara às minas.22
Fossem por iniciativa de alguns indivíduos ou de uma população supostamente
irmanada e unida em torno da proteção e disfarce das ditas
minas, a visão que parece prevalecer neste século XVII é a de que as
riquezas minerais de São Paulo eram reais, mas sempre ludibriadas ou
erroneamente beneficiadas pelos paulistas. Por outro lado, não se pode
deixar de estranhar as recorrentes investidas da poderosa família Sá em
torno das minas e de suas mercês. Além disso, como justificar a longa permanência
do governador geral do Brasil motivada por elas? Estes supostos
empecilhos colocados pelos moradores de São Paulo poderiam ser parte
de uma retórica. O discurso sobre um povo sonegador, que colocava obstáculos
ao acesso mineral, bem poderia servir para manter em suspensão
as possibilidades minerais, valorizar o esforço, e para mais delas se extrair
privilégios. De todo modo, os vínculos entre a riqueza mineral e os privilégios
jurisdicionais nos parecem claros. O quanto um servia para justificar o outro
é uma questão ainda em aberto.
..........................................................................................................................................................
Fonte: José Carlos Vilardaga - Departamento de História - Universidade Estadual de Londrina - Londrina (PR) Brasil, http://www.scielo.br/pdf/vh/v29n51/v29n051a08.pdf..........................................................................................................................................................