sábado, 16 de abril de 2016

A GUERRA LUSO-CASTELHANA E O RECRUTAMENTODE PARDOS E PRETOS: UMA ANÁLISE COMPARATIVA (MINAS GERAIS, SÃO PAULO E PERNAMBUCO, 1775-1777) (Transcrição)

 Introdução
Esta comunicação tem por objetivo comparar as  maneiras pelas quais diferentes capitanias –  Minas Gerais, São Paulo e Pernambuco – lidaram com a necessidade de prover o Estado do Brasil  com gente armada ao longo da guerra luso-castelhana travada nas partes meridionais da América  portuguesa entre 1774 e 1777. Contudo, pretendemos  aqui examinar apenas o recrutamento de  pardos e Henriques – as milícias negras, de segunda linha, da América portuguesa. Pardos e pretos  estavam reunidos em terços desde as guerras luso-holandesas travadas entre 1645 e 1654 em  Pernambuco1 . O terço do negro livre Henrique Dias era  a matriz dos que foram estabelecidos pelas  diversas capitanias ao longo do século2, como aliás reconheciam os contemporâneos. Cabe, pois,  num primeiro momento, examinar a questão das  relações entre Portugal e Castela no que diz  respeito às fronteiras meridionais, para, a seguir, discutir as medidas tomadas pela Coroa lusa desde  a década de 1760 para reformar a estrutura, a com posição e o tamanho de seus corpos militares.  Depois disso, procuramos analisar a maneira pela qual cada uma das capitanias antes indicada  procurou lidar com o recrutamento de pardos e pretos, e como estes e as sociedades locais reagiram  às demandas do Estado do Brasil em torno de gente armada. Finalmente, à guisa de conclusão,  sugerimos algumas linhas gerais que contemplem  a diversidade de situações observadas ao nível  local.
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Minas Gerais
O decreto régio de 1766, como vimos, tinha o intuito de formar as tropas de auxiliares para a defesa do Brasil. O governador da capitania de Minas Gerais no ano de seu lançamento, Luís Diogo Lobo da Silva – o qual anteriormente havia sido governador de Pernambuco –, logo que soube da ordem real, buscou colocá-la em prática, expedindo aos capitães-mores uma carta circular. Nela ordena que estes formassem tropas de auxiliar es, alistando todos homens aptos. Mandou, também, que se formassem terços de pardos e pretos libertos, e estipulou que estes deveriam ter seus próprios oficiais e suboficiais. Ou seja, até aqui, vemos que o governador tentava cumprir à risca o que foi ordenado pela carta régia de 1766. Porém, um a particularidade de Luís Diogo Lobo da Silva visando cumprir a dita ordem se deu quando determinou que os capitães-mores fizessem a contagem de todos os escravos da capitania, para que da quinta parte destes fossem separados alguns para comporem terços. Portanto, para o governador, o quinto dos escravos de Minas também deveria dar a sua contribuição para a defesa da América portuguesa.47 Essa separação do quinto dos escravos em corpos militares não era uma novidade para o governador, pois tal expediente já havia sido empregado por Luís Diogo Lobo da Silva na capitania de Pernambuco em 1762.48 Ademais, o governador ordenou na mesma carta circular que os senhores dessem armas de fogo aos seus escravos. Seguindo a tradição pernambucana, ele ainda fazia uma longa descrição de como se preparar lanças de paus tostados, caso os senhores não possuísse m armas de fogo. Após essa descrição, o governador promete: o escravo que se destacasse no emprego das armas conseguiria como prêmio a liberdade. É óbvio que, após a distribuição dessa carta circular do governador às câmaras e aos capitães-mores de Minas Gerais, houve resistências em relação às ordens nela existentes. A câmara da vila do Caeté, por exemplo, bem como a de Mariana, enviaram cartas afirmando que todos se negavam a Armar os escravos, uma vez que estes eram “inimigos domésticos dos brancos”, uns “bárbaros infiéis” que poderiam executar “o que por muitas vezes têm intentado49. Porém, em 1775, nova ordem régia foi expedida. Nesse tempo, o governador de Minas  Gerais era Dom Antônio de Noronha, um militar de renome em Portugal e amigo pessoal do vice-rei do Estado do Brasil, marquês de Lavradio. Exigia-se do governador a reforma de todos os corpos de auxiliares da capitania , a criação de regimentos de cavalaria auxiliar e regular, além de uma reforma dos terços de pretos e pardos, os quais se encontravam, em 1775, bastante desmobilizados.50 Quando a reestruturação militar de 1775 teve efeito, os terços de pretos e pardos estavam conectados a duas comarcas principais: a de Vila Rica e a de Rio das Mortes. O terço da comarca de Vila Rica era comandado pelo mestre de campo Francisco Alexandrino, um homem de cor. Este terço era composto por 17 companhias da própria Vila Rica e mais 13 companhias da cidade de Mariana, constituindo, assim, 4 esquadras. Por sua vez, o mestre de campo Joaquim  Pereira da Silva liderava o terço da comarca do Rio das Mortes, composto pelas esquadras de São  João del Rei e a da vila de São José. Constituíam 22 companhias de 60 praças. Ao todo, Francisco  Alexandrino comandava 1.800 homens, e Joaquim Pereira da Silva 1.320 praças.51 Como vimos, algumas câmaras não aceitavam o fato de se formarem terços com a quinta parte dos escravos. Outras câmaras, como a de São João del Rei, até aceitavam a existência de terços de pretos e pardos, porém , reclamavam pelo motivo de essas tropas terem na sua frente47 Cf: Carta de Luís Diogo Lobo da Silva, governador das Minas, para Francisco Xavier de Mendonça Furtado, sobre a  reação das Câmaras e de alguns comandantes das tropas da s ordenanças auxiliares às ordens da Carta Régia de 22.03.1766, respeitante ao abastecimento de um corpo de tropas de milícias para expedição quando necessário. AHU –  Minas Gerais, cx. 88, doc. 36. Vila Rica, 4 de outubro de 1766.48 Cf: Mapa de toda Infantaria, Artilharia paga e Auxiliares de pé e cavalo, Pardos, Henriques, e Ordenanças de pé,  Índios e Quinto de Negros Cativos que constituem as forças e defesa da Capitania de Pernambuco. Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Divisão de Manuscritos. Mapas Estatísticos da Capitania de Pernambuco. 3, 1, 38, fl. 03.49 Cf: Carta de Luís Diogo Lobo da Silva, governador das Minas, para Francisco Xavier de Mendonça Furtado, sobre a reação das Câmaras e de alguns comandantes das tropas da s ordenanças auxiliares às ordens da Carta Régia de 22.03.1766, respeitante ao abastecimento de um corpo de tropas de milícias para expedição quando necessário. AHU – Minas Gerais, cx. 88, doc. 36. Vila Rica, 4 de outubro de 176650 Cotta, Francis Albert. No rastro dos Dragões: universo militar luso-brasileiro e as políticas de ordem nas Minas  setecentistas. Belo Horizonte: UFMG, 2005 (Tese de Doutorado em História), p. 193-198. 51Cf: Carta de D. Antonio de Noronha, governador de Minas, informando Martinho de Melo e Castro sobre a sua  chegada a Vila Rica, assim como sobre as medidas que tem tomado no sentido de reorganizar os corpos militares da  referida capitania. AHU – Minas Gerais, cx. 108, doc. 32. Minas, 14 de junho de 1775. Cotta, Francis Albert. Os Terços de Homens Pardos e Pretos Libertos: mobilidade social via postos militares nas Minas do século XVIII. In: MNEME – Revista de Humanidades. UFRN – CERES, 2003. homens de cor como oficiais.52  Contudo, a guerra nas partes meridionais da América portuguesa se encontrava num momento crítico, e o palco da guerra estava muito próximo. Era preciso contornar as resistências. Enfim, era preciso recrutas para o sul e tropas para defenderem o vice-reino. Em 1775, Noronha envia para a região de conflito no sul 4.085 homens. Entretanto, somente 757 destes carregavam armas de fogo, o resto utilizava as lanças de paus tostados. Esses homens, em sua maioria negros, se encontravam, como no caso  de Pernambuco “inteiramente nus, sem mais que umas ceroulas e camisas, com muitas poucas ar mas particulares, e estas desconcertadas53 ”. Isso foi um espanto para o experiente governador e capitão general Saldanha Para defenderem o Rio de Janeiro, em 1776, deve riam ser enviados terços de pretos e pardos comandados pelos mestres de campo Francisco Alexandrino e Joaquim Pereira da Silva. Em carta de 7 de novembro de 1776, Noronha admitiu ter expedido ordem aos oficiais das mesmas companhias para que estes escolhessem “o maior número que for possível dos homens mais capazes e mais bem armados, e fazê-los pôr em marcha com toda a brevidade”. Isso não foi feito sem reclamações por parte do dito governador e sem a pressão do vice-rei. Nas cartas, Noronha afirmou que Minas estava em ruína devido a guerra. Também argumenta acerca dos prejuízos causados pela movimentação militar e pelo recrutamento. Lavradio , por sua vez, fez críticas a respeito da qualidade das tropas que chegavam ao Rio de Janeiro e da condição dos recrutas que foram para a região de conflito.54 Diante dessas dificuldades, Lavradio propõe algo que não era muito novo, nem menos polêmico para a capitania de Minas Gerais: volta à tona a idéia de se formar corpos militares compostos por escravos. Aos oficiais de cada companhia pediu para que “alistem os negros escravos dos seus distritos, que para estes tenha cada um dos senhores aquelas armas que eles  escolherem, já seja: chuço, espingarda, flechas, ou qualquer outra qualidade de armas ofensivas, segundo o cômodo e possibilidade de cada um; que a gente de cada uma destas companhias seja dividida em duas outras companhias, conforme o número que houver de gente, nomeando daqueles  mesmos pretos para capitães, alferes e oficiais inferiores os que se acharem de mais propósito”.55 Na parte final deste documento vemos a astúcia de Lavradio: Isto que agora te comunico ainda não o tenho principiado a praticar. A declaração do prêmio não determino  fazer, senão no caso de ser preciso juntá-los para a ação. Faço primeiro alistá-los, isto feito, determino fazer-lhes alguns rebates falsos, para os fazer sacudir aos seus postos, e todo o mais tempo ficam eles servindo a seus senhores nos diferentes serviços em que cada um deles os costuma a empregar. Se isto se puder praticar em Minas, poderás ter uns corpos formidáveis com que me socorras. Porém, como a distância é muito grande, são precisas tomar em si logo algumas medidas, para que a  demora deste socorro não venha a fazer inútil o nosso  trabalho.56 Aqui Lavradio demonstra ser, além de um bom estrategista, também um grande otimista. Enfim, os terços de pretos e pardos das comarcas de Vila Rica e Rio das Mortes, foram formados por Dom Antônio de Noronha, em 1775, de vido às ordens diretas  da coroa de Portugal e  por demanda do vice-rei Lavradio. Este as poderia utilizar tanto na defesa do Rio de Janeiro quanto,  se fosse preciso, nos confrontos com os castelhanos no Sul. Contudo, havia muitos entraves com  relação ao destacamento e utilização de tropas de auxiliares fora da capitania. Devido a esses fatores, tudo leva a crer que os terços não foram despachados para fora da capitania de Minas  Gerais. Entretanto, sabemos que o mesmo governador enviou, em 1775, uma soma considerável de  recrutas para a região de conflito, sendo a maioria dos integrantes dessas tropas homens de cor.  Estes, segundo Lavradio, não estavam preparados para enfrentar uma guerra e foram, aos poucos, sendo dispensados pelo vice-rei. Mesmo assim, havia o temor de um ataque maciço da Espanha contra várias capitanias da América portuguesa , mormente as do sul. Com tantos problemas  relativos a utilização de tropas provenientes das Minas, Lavradio propôs a Dom Antônio de  Noronha um último recurso, caso houvesse um ataque na capital: a utilização de escravos para a sua  defesa. Isso, porém, não foi preciso, pois a guerra ch egava, em 1776, ao seu final, para o alívio de boa parte dos senhores de escravos da capitania de Minas Gerais. A liberdade como prêmio aos  escravos ficou para uma próxima oportunidade. 
 Conclusões A presente comunicação procurou, a par de um único evento – o recrutamento de pardos e pretos para a guerra luso-castelhana de 1774-1777 – examinar como diferentes capitanias empreenderam esta prática. Como se viu, nelas  diferentes reações foram notadas, e diferentes práticas foram levadas a efeito por seus respectivos governadores no sentido de prover o Estado do Brasil de pessoas egressas dessas camadas sociais na condição de soldados.Tais reações e práticas decorreram, por um lado, da configuração social de cada capitania em particular, notadamente no que diz respeito à sua relação com a escravidão e o tráfico de  cativos. São Paulo iniciava, muito lentamente, a introduzir cativos africanos em seu seio, e poucos eram os homens de cor livres ali existentes por e ssa época. Em Minas Gerais residia uma numerosa camada social  formada por negros uma vez que também ali se fixara desde meados do século XVIII o maior número de cativos da América portuguesa. Paradoxalmente, tratava-se de capitania cuja história era recente. Em Pernambuco, capitania antiga, a escravidão perdera força desde meados do século XVIII, e os homens de cor livres já constituíam, na década de 1760, cerca de 40% da população da capitania. Os escravos representavam apenas um terço desta. Isso se refletiu nos temores expressados por autoridades e senhores em face das medidas adotadas e na própria  configuração das medidas. Não se falou num possível recrutamento de cativos em Pernambuco, por exemplo, porque a camada de homens de cor livre era por demais numerosa ali; estes, assim, constituíam o alvo preferencial do recrutamento. Tampouco se falou sobre isso em São Paulo, porque os cativos eram escassos. Em Minas, capitania em que os escravos abundavam, pensou-se seriamente em empregar tais “inimigos internos” na defesa militar. Por outro lado, institucionalmente, os terços de pretos e pardos eram mais estáveis em Pernambuco, onde eles haviam surgido. Seus soldados e oficiais vinculavam-se às armas mais na imaginação do passado da restauração, que nas agruras do presente da guerra luso-castelhana. Não era ali que a coroa portuguesa deveria buscar seus pretos e pardos livres para combate. Minas e São Paulo, por vias tortas, por vezes não institucionais, ou por vias institucionais marcadas pela  improvisação e pela precariedade, atenderam mel hor essas demandas, refletindo o estado de suas populações de cor no século XVIII e sua posição na geografia da América portuguesa. As tropas de Pernambuco, por seu turno, já pareciam mais estabelecidas, menos outsiders , a despeito da posição inferior e subordinada na estrutura social de seus membros. Fica, pois, a lição conforme a qual a comparação de aspecto particular e a história institucional podem representar método importante para revelar particularidades e distintas trajetórias de diferentes partes da América portuguesa, torna ndo-a mais compreensível em seu conjunto. 

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