sábado, 15 de outubro de 2016

Compadrio e rede familiar entre forras de Vila Rica, 1713-1804 * (Transcrição)

Nos últimos anos, multiplicaram-se os estudos a respeito da vida familiar das populações coloniais. Um traço comum a essas pesquisas é o de mostrar que o núcleo familiar não era apenas uma unidade de vida social, mas também de produção material e organização política. Dentre as relações familiares existentes, o compadrio desempenhava um papel de singular importância. Ao  contrário do parentesco consanguíneo, o “espiritual” é fruto de uma escolha. Trata-se, portanto, de um vínculo muito especial, que abre caminho para que, mesmo os grupos  mais empobrecidos da população, por assim dizer, "elejam" parentes pertencentes a grupos superiores da sociedade.  Ao contrário do matrimônio, que também cria um parentesco através da escolha, o compadrio não estava subordinado a uma legislação que regulamentava a partilha de bens. Portanto, enquanto o parentesco “ por aliança” punha em risco o patrimônio familiar, a escolha de compadres abria caminho para que relações entre grupos sociais distintos fossem estabelecidas, sem que houvesse ameaça ao patrimônio familiar O presente trabalho tem por  objetivo inventariar as relações de compadrio entre as escravas que conseguiam a alforria. Teriam  as forras mantido alianças com grupos livres ou teriam reforçado as relações com o mundo  da senzala? No intuito de responder a essa pergunta, analisamos, a partir da metodologia da Demografia Histórica e da noção de∗ “rede familiar”, os registros paroquiais de batismo da igreja de  Nossa Senhora do Pilar de Vila Rica , para alguns períodos compreendidos entre os séculos XVIII e XIX.Nessa investigação, utilizamos sugestões metodológicas de Sérgio Odilon Nadalin1 .  Procuramos revelar que, ao longo do "ciclo de  vida" familiar, o compadrio não segmentava os laços sociais, mas sim criava uma "rede". Dessa maneira, a escolha de padrinhos oriundos de grupos sociais inferiores, paradoxalmente, podia implicar - tendo em vista a "rede" em que estavam inseridos  compadres ou comadres selecionados - em uma aliança com grupos sociais da elite. 
Compadrio e historiografia.
 A quase totalidade dos estudos a respeito do compadrio no passado colonial dizem aos escravos. Há mais de uma década, uma  importante pesquisa, realizada por Stephen Gudeman e Stuart Schwartz, mostrou a dimensão que a instituição atingia na sociedade  escravocrata2 . Os autores levantaram os registros de batismo de paróquias do recôncavo baiano, revelando que os senhores nunca apadrinhavam os próprios escravos. Acreditava-se que o compadrio e a escravidão eram instituições incompatíveis. Os proprietários, embora não enfrentassem impedimentos legais, evitavam a todo custo aceitar essa incumbência, porque, se assim fizessem, sugeririam  inclinação a revogar algo de seu próprio poder. O compadrio criava laços de respeito e proteção superiores aos preceitos escravistas. Conforme Henry Koster observou,  o senhor que aceitasse  tal vínculo estaria socialmente condenado a não mais ordenar que o escravo fosse castigado. Em casos extremos, como em Minas do início do século XVIII, o compadrio foi alvo de política metropolitana. O governador da Capitania lançou ordem proibindo que os forros fossem padrinhos de outros escravos. Ele temia que  o respeito e deferência devido aos senhores fossem desviados para os padrinhos ... os quais , em contrapartida, poderiam se sentir moralmente obrigados a ajudar os afilhados a escapar ou a se rebelar3. Por reconhecerem a importância social do parentesco espiritual, os senhores agiam com cautela. Tanto no recôncavo baiano, quanto em São Paulo do século XVIII 4 ou na localidade mineira de Montes Claros do século XIX 5, a presença de senhores compadres dos próprios escravos variou entre 0 e 2%. Quem eram, então, os escolhidos? Nesse ponto, os estudos citados apresentam pontos em comum. Em alguns períodos do século XIX, na cidade de Montes Claros, 80% dos compadres de cativos eram indivíduos livres (sem incluir os forros); indivíduos, vale repetir,  não pertencentes ao grupo familiar senhorial; na Bahia, tal cifra era de 70%; enquanto o índice registrado, entre  os paulistanos coloniais, era de 73%. Os dados sugerem que os cativos procuravam criar vínculos de parentesco com homens livres. Dessa maneira, eles conseguiam um eventual intermediário para negociarsituações de conflito junto ao senhor, assim como possíveis alia dos que os auxiliavam materialmente a sobreviver no cativeiro e, bem mais raramente, a comprar a alforria. O surgimento de novas pesquisas acabou por comprometer tal interpretação. O levantamento das atas batismais de Taubaté , de fins do século XVII, revelou que, nos grandes plantéis, cerca de 50% dos padrinhos de escravos também eram escravos 6 . Na área canavieira de Campos, Rio de Janeiro, confirmou-se a forte incidência do compadrio entre cativos: tais alianças, em meados do século XVIII, eram mais freqüentes do que as registradas envolvendo homens livres 7, constatação que pode ser  estendida ao século XIX. De acordo com a pesquisa de José Roberto Góes, referente à freguesia de Inhaúma, Rio de  Janeiro - localizada em área de  plantation - , durante o período compreendido entre 1817 e 1842, a escolha de padrinhos escravos, por  parte de cativos, foi da ordem de 67,7%8. Esses dados levaram a uma revisão da interpretação proposta  por Stephen Gudemane Stuart Schwartz – a do padrinho como um intermediário entre a senzala e a casa grande. Um dos caminhos seguidos foi o de adaptar o  modelo de vida familiar escrava, proposto por Manolo Florentino e José Roberto Góes, ao caso especifico do compadrio9 . De forma simplificada, é possível afirmar que, para tais historiadores, o tráfico gerava uma forte tensão política no mundo das senzalas. Em outra s palavras, na época de chegada intensa de cativos, a rivalidade inter-étnica aumentava, colocando em risco a sobrevivência de grupos crioulos e africanos rivais. Uma resposta a essa situação de crise consistia na intensificação de alianças entre os cativos10 . Dessa forma, os dados baianos, paulista s e mineiros, inicialmente mencionados, retratariam áreas periféricas ao sistema  escravista, ou então que estavam recebendo poucos escravos africanos. No primeiro caso, teríamos a empobrecida cidade de São Paulo setecentista e, no segundo, as áreas canavieiras baianas e o núcleo mineiro voltado para o abastecimento interno. As regiões de compadrio intenso entre escravos seriam aquelas de tráfico também intenso e que,  por isso mesmo, estariam vivendo um período de expansão econômica. No sentido de reforçar essa explicação, cabe lembrar que as áreas mais dinâmicas tinham uma hierarquia social mais pronunciada, assim como maiores plantéis, o que propiciava a multiplicação de compadres no interior de uma mesma fazenda. Conforme veremos a seguir,  o estudo das redes de compadrio revelam graves problemas metodológicos implícitos nesse tipo de análise. 
 As forras e o compadrio. 
Vila Rica colonial era formada por duas paróquias. Em nosso levantamento, selecionamos os dados dos registros batismais da igreja de  Nossa Senhora do Pilar . Como é sabido, a paróquia de Antonio Dias foi alvo de minucioso estudo elaborado por Iraci del Nero da Costa. Dessa forma, contamos, para Vila Rica, com informações detalhadas a respeito do conjunto da evolução demográfica  local. Os registros paroquiais dessa última igreja indicam um intenso crescimento da população forra. Para se ter idéia disso, basta  mencionarmos que, entre 1719 e 1723, a matriz de Antonio Dias registrou apenas 3 óbitos de forros, em um total de 387 mortes; cinquenta anos mais tarde, foram registrados 142 óbitos de libertos, em um montante de 953 mortes; e, entre 1804 e 1808, esse número aumentou para 180 óbitos de forros, em  um contexto de 797 mortes. Portanto, se considerarmos o número de óbitos como  um indicador da evolução demográfica ouropretana, concluiremos que, no início do século XVIII, os forros representavam 0,7% da população; ao passo que, entre 1769 e 1773, essa  presença havia aumentado para 14,9% e, no início do século XX, ela atingia a casa dos 22,5%. Um fantástico crescimento de 3.200%! Conforme podemos observar na Tabela I,  a soma do número de batismo de forros confirma a noção de intenso crescimento desse segmento: em Vila Rica, entre 1713 e 1717, são registados apenas 13 batismo de filhos de forras; entre 1760 e 1764, esse número cresce para 101; e, finalmente, entre 1800 e 1804, são registrados 137 batizados de filhos de ex-escravas.
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Fonte:  Renato Pinto Venancio DEHIS/UFOPPesquisador do CNPq http://migre.me/vfBQQ

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