O grão no âmbito da questão cultural
Ao
mesmo tempo em que ia localizando o milho nas regiões de minas
descobertas pelos paulistas, a historiadora Rafaela Basso observou que
na Vila de São Paulo se comia muito pão de farinha de trigo, vinho,
azeite e aguardente, num padrão de consumo semelhante ao de outras
regiões da América portuguesa. “Isso me levou a problematizar se a
alimentação dos paulistas era tão específica como diziam os autores do
período colonial. Nos inventários – documentação que utilizei para
pesquisar a alimentação dentro das residências da Vila –, o milho quase
não aparecia.”
A explicação
encontrada pela pesquisadora é que, quando pessoas morriam, nos
inventários eram arrolados somente alimentos de importância comercial:
havia muitos registros de roças de trigo e botijas de azeite e de vinho,
todos com alto valor atribuído. “O milho, quando arrolado, estava em
sítios onde se colhia alimentos para os plantéis de escravos indígenas.
Da mesma forma, os inventários não trazem utensílios como o pilão, em
contraposição aos moinhos construídos pelos mais abastados. A ausência
de utensílios de origem europeia significava que o grosso dos moradores
consumia o milho da mesma forma que os índios: pilado na canjica ou
assado.”
Também havia, segundo
Rafaela, uma questão cultural: a necessidade dos portugueses que
chegavam ao novo mundo de se distinguir em todo momento dos nativos e
depois dos africanos. “A comida também servia como fator de
diferenciação e, quando eles podiam, evitavam consumir milho, feijão ou
mandioca. É possível perceber esta faceta também nas atas da Câmara, em
que moradores protestam contra o preço do trigo, que os impede de
consumir o pão branco, restando no mercado apenas o pão de rala (de
trigo misturado a cereais inferiores como mandioca e milho).”
A
historiadora informa que em várias ocasiões, sem a opção do trigo e de
outros alimentos europeus, a elite tinha que comer o mesmo que os
nativos, mas ainda assim de forma diferenciada, como uma canjica mais
fina, adossada, salgada ou temperada. “Os inventários sugerem que a
mandioca era preferida frente ao milho, por conta do beneficiamento mais
elaborado e por ser mais alva. Se tinham que escolher, eles desprezavam
o milho, amarelado e pilado. Isso significa que a ideia da aclimação –
de que os europeus se adaptaram aos alimentos nativos – não foi
devidamente problematizada por Gilberto Freyre. Não foi bem assim, havia
um conflito, uma resistência.”
Um
dos poucos documentos registrando a vida em residências da São Paulo
colonial, de acordo com Rafaela Basso, é de autoria do padre
memorialista Manuel Fonseca, que descreve o dia-a-dia de outro padre,
enaltecendo sua bondade e santidade, além da abstinência: “Era o seu
comer parco e vil, usando muitas vezes o feijão e a canjica, guisado
especial de São Paulo e muito pobre de nutrientes”, lê em voz alta a
pesquisadora. O projeto de doutorado de Rafaela Basso deve versar sobre a
comida dos paulistas no século 19, com a chegada da Corte portuguesa,
dos viajantes estrangeiros e dos livros de culinária.
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Fonte: Professora Rafaela Basso - Jornal da Unicamp - Campinas, 01 de outubro de 2012 a 07 de outubro de 2012 – ANO 2012 – Nº 540 http://migre.me/vfDNl