Entrar para a Irmandade teria sido o sonho de muitos
negros. Agruparem-se para cantar e dançar era uma forma de reconstruir a
sociabilidade e um resgate de sua soberania sobre seu corpo, gestos e
voz, expressão de uma precária liberdade. (BORGES, 2005).
A vivência do sagrado representou para a história dos negros em
diáspora um forte indicativo de resistência e sobrevivência cultural.
Tecido pelas contas e fios das miçangas africanas, o relacionamento
identitário entre negros de etnias diversas foi vivenciado no Brasil,
mesmo quando o sistema colonial ensinava que as mesmas contas
prestavam-se à devoção católica. Os negros desafiaram os laços cristãos,
rompendo-os nos espaços abertos pelo sistema colonial para, assim,
tecerem as suas histórias de lutas, preservando seus vínculos
identitários.
Foi por meio do jogo, possibilitado pelo culto religioso prestado
às divindades das duas tradições religiosas, que o negro pôde reviver
seu ethos africano, evocando suas memórias, incluindo rituais
como a coroação de reis e rainhas, e usando seus instrumentos de
percussão na execução de suas músicas e danças. É por esse viés que
podemos falar de um processo de resistência vivido pelos negros ligados
as irmandades que, na tessitura da religião oficial, trançou a sua
religiosidade a partir de uma cosmovisão africana.
A reflexão sobre a cultura negra no Brasil e nos Estados Unidos
testemunha que essa cultura se configurou “por meio de uma persistente
teatralidade, dramatizando, em variadas formas e atividades, a
experiência do negro nas Américas”[2].
Falar dessa teatralidade é, de certo modo, falar do corpo negro
inscrito como o próprio meio ou recurso em si disponível para
(re)escrever a sua história e (re)atualizar as suas memórias, pois, como
enfatizou Stuart Hall, “as culturas negras têm usado o corpo como se
ele fosse, e muitas vezes foi, o único capital cultural que tínhamos”[3].
O corpo, enquanto tela de representação, tomando a expressão de Hall, é
performático e vem, por meio da história, expressando nas diversas
formas e significados dessa cultura, seus ritos e mitos, seus códigos e
signos, enfim, a marca que constitui a sua diferença.
Se a exclusão da escrita representou para o Ocidente a “selvageria
africana”, ao negro coube reinscrever a sua história na sociedade
global, a partir das diversas formas de teatralidade e jogos de
socialização, favorecendo a (re)construção de discursos identitários
positivos para esse sujeito. É dessa forma que essa reflexão se inclui
como marco identidário do discurso de representação étnica (re)elaborado
pelos afro-brasileiros que compuseram e, ainda hoje, compõem a
Comunidade Negra de Arturos.
A história da comunidade dos Arturos em Contagem, Minas Gerais,
está relacionada ao período colonial, responsável pelos anos de
escravidão no Brasil, como também, está vinculada à crença no sentimento
de pertença que permanece na comunidade. Esse sentimento garantiu ao
negro, quando oprimido e humilhado no passado, resistir culturalmente à
exploração estrangeira, mantendo viva sua simbologia, seu ritual
religioso e sua ligação com a África. Conhecer a Comunidade Negra de
Arturos é, de certo modo, percorrer a memória imaginária da rota
realizada por esse migrante forçado, que recompôs “uma língua e
manifestações artísticas, que poderíamos dizer válidas para todos[4]”.
Os Arturos têm sua origem ligada ao filho de escravos, Arthur Camilo Silvério[5]
(1885 – 1956) cujo nome representa a filiação ancestral dada aos seus
descendentes: “filhos, netos e bisnetos de Arthur são hoje Arturos,
família mantida e alimentada pela raiz inicial” e a fé em Nossa Senhora
do Rosário. Essa comunidade, remanescente de quilombo, constitui-se num
dos mais importantes símbolos de resistência negra.
A expressão religiosa do Reinado de Nossa Senhora ou Congado, como
também é conhecida, se estabeleceu como já foi dito, no interior do
sistema escravista brasileiro, a partir dos contatos culturais impostos
pelos povos dominadores às culturas africanas em movimento.
Historicamente, pode-se dizer que “o catolicismo de Portugal forneceu os
elementos europeus da devoção à Senhora do Rosário, a Igreja no Brasil
reforçou essa crença, enquanto os negros, de posse desses ingredientes,
deram forma ao culto e à festa”[6].
Foi, ainda, durante o processo de catequização e cristianização, no
século XVIII, que a Igreja propagou o culto aos santos negros como São
Benedito, Santa Efigênia e São Elesbão. Dessa forma, “a festa incorporou
elementos [culturais] em uma nova formação [...], na qual símbolos
[ocidentais] ganharam novos sentidos”[7].
Nesse período, a organização social da Capitania de Minas Gerais
era dividida em diversos grupos étnicos e de classe, todos intimamente
relacionados a Irmandades específicas de onde se originavam as
comunidades. A de Nossa Senhora do Rosário, por exemplo, congregou
especialmente os escravos e forros, seguidores fiéis dos santos negros. A
essas Irmandades era permitida a inclusão de rituais africanos, dentre
eles a coroação de reis e rainhas. Essa “generosidade” era, então, usada
como meio de submissão do africano e de controle da ordem nas senzalas.
Contraditoriamente, a manutenção da ordem por meio dos cultos
possibilitou que os escravos pudessem manter vivos certos elementos dos
seus rituais.
Os rituais do congado vêm reelaborando e reatualizando saberes
africanos ao longo do tempo, a partir da religiosidade presente no culto
aos antepassados, com suas especificidades e modos particulares de
devoção que têm nas músicas e nas danças seus meios de expressar uma fé,
que também é católica.
A festa abre seus rosários em março e encerra seu ciclo em
outubro, quando a cerimônia é celebrada. Esses festejos, explica Leda
Martins, representam o momento onde são reatualizados “todo um saber
filosófico banto, para quem a força vital se recria no movimento que
mantêm ligados o presente e o passado, o descendente e seus
antepassados, num gesto sagrado que funda a existência da comunidade”[8].
As festas para Nossa Senhora do Rosário ficaram conhecidas em todo
o Brasil. Embora cada local tenha contribuído com o ritual de forma
particular, a simbologia e o sentido dados pelos congadeiros têm origem
na “lenda” produzida e reproduzida, de geração em geração, sobre o
aparecimento da imagem de Nossa Senhora na beira da água e cultuada pelo
escravo. É “nas águas que ela surge e é das águas que os pretos do
Rosário vão resgatá-la, entronizando-a nos seus candombes, seus tambores
sagrados”[9].
Nas memórias que habitam as narrativas dos congadeiros, conta a
fábula, a primeira tentativa para a retirada da Santa das águas foi
realizada pela guarda do Congo, que chegando à beira d’água tocou e
dançou para Nossa Senhora, embalados pelo ritmo saltitante, a
coreografia ligeira, as cores e os ornamentos. Foi, contudo, a guarda
de Moçambique formada pelos negros mais velhos e pobres, de pés
descalços, com seus cantos graves e de posse dos três tambores sagrados
que conseguiram retirar a imagem do local. Glaura Lucas nos fala que
essa “lenda”
(...) fundamenta e estrutura os rituais do Congado,
sendo contada e recontada através dos muitos cantos em que se vê
desdobrada. Cantam a devoção a Nossa Senhora, sua aparição e resgate, o
sofrimento pela escravidão, a origem e a história dos antepassados, as
características das guardas. [...] Os congadeiros buscam no texto mítico
[...] as causas, o princípio, a base de formação e estruturação da
festa, da natureza da fé, do sentimento e atitude diante dos objetos
sagrados, da música, do canto e da dança. (LUCAS, 2002, pp. 59 e 60)
Essas cerimônias que envolvem as festas para Nossa Senhora do
Rosário, em toda a sua diversidade, representam a tessitura simbólica
que traduz na fé religiosa a cosmovisão africana. Esta, apesar de
"desterritorializada" e "assujeitada" aos saberes e códigos europeus,
por conversão do ser[10] rasurou esse sistema, imprimindo com a sua cultura o tecido simbólico brasileiro.
Nesse contexto, a leitura das imagens visuais da série intitulada Arturos
(1994), do fotógrafo Eustáquio Neves, permitirá interpretar as
(re)elaborações sobre esses encontros e as implicações que envolveram
essas culturas, a partir da experiência da diáspora. A construção
expansiva de Neves marca, também, sua importante contribuição para a
existência de uma contra-narrativa visual africana posta como referência
para fortalecer a construção de uma identidade afro-brasileira em Minas
Gerais, e que se concretiza por meio do ritual mitopoético que envolve o
imaginário da Irmandade da Nossa Senhora do Rosário em Contagem.
Fonte: http://migre.me/vi66P