A série Arturos explora o jogo excessivo dos contrastes, assim como abusa também do efeito do trompe-l’oiel,
ou seja, da possibilidade de causar a ilusão de ótica, conduzindo o
apreciador a uma espécie de delírio, vertigem e desequilíbrio, quase
violentando a noção de realidade, como sugere Ferreira Gullar[20],
ao elencar as características principais do estilo. Percebemos nas
imagens de Eustáquio Neves que “a metalingüística barroca promove,
portanto, a multiplicação de camadas metafóricas a partir da primeira
instância de codificação poética do signo, instância que já não
contempla, evidentemente, o caráter referencial”[21].
Nas próximas fotografias criadas por Neves a representação
simbólica dos altares em Arturos evidencia seu estilo pessoal na
construção das fotomontagens. Dentro de suas principais características o
limite determinado pela moldura construída pelo fotógrafo combina, na
mesma cena, negativos de registros diversos que, sobrepostos no
laboratório, produzem uma narrativa não-linear exigindo do espectador
uma participação ativa para a sua interpretação.
Nesse primeiro enquadramento ,
percebe-se um conjunto de elementos relacionados à festa que na
tradição aparecem em ambientes abertos, mas nesse caso específico estão
“deslocados” desses espaços e “recolocados” na imagem, a partir de um
discurso que nos parece ser intencional. Portanto, estamos diante de uma
fotografia que recorta em um único fotograma os principais elementos
que compõem a festa do Rosário, na Comunidade de Arturos. Podemos
visualizar, nessa primeira representação do altar, a reverência tanto
aos santos negros, quanto ao típico representante da Guarda de
Moçambique, identificado pelos tambores sagrados e pelas gungas
amarradas aos tornozelos, nos remetendo à força do “guardião dos
mistérios” e “gerenciador do contínuum africano”[22].
O tambor, instrumento simbólico de afirmação étnica, indica a
ligação do negro com a África ao convocar pelo canto e pela dança os
rituais sagrados, evocando a memória dos ancestrais, fazendo soar pelos
toques os cantos guerreiros dos negros pelo tempo de escravidão, exílio e
lutas pela libertação colonial. Essa imagem nebulosa, que mais parece
dois quadros superpostos associa-se a outra que destaco logo em seguida.
Nessa fotografia ressalto
a singularidade dos elementos do altar, que é enfeitado para Nossa
Senhora do Rosário, indicados nos fragmentos em que aparecem os vasos de
flores e os venerados santos negros. Diante dessa representação, a
sombra do homem em oração mescla-se com a santa do Rosário e às outras
imagens, sugerindo uma demonstração do elevado grau de devoção e fé ao
ritual sagrado.
É sabido que o português que migrou para o Brasil, em especial
para Minas Gerais, foi proveniente do norte principalmente das regiões
do Minho e Douro, onde eram fortes o culto aos santos católicos e as
festas de cunho religioso[23].
Os santos negros cultuados pelas Irmandades foram, principalmente, São
Benedito, Santa Efigência, São Elesbão e Santo Antônio de Catalagerona.
Suas imagens ocupavam os altares laterais, para no centro exaltar a
imagem de Nossa Senhora do Rosário. A fé aos santos negros praticada
pelos escravos foi de extrema importância na conversão desses indivíduos
ao catolicismo, que encontraram nos santos, como Benedito, um laço de
familiaridade por se tratar, também, de um filho de escravo.
Simbolicamente, pode-se dizer que dentro do contexto colonial, os
santos negros exerceram um duplo papel pois, supostamente, ao
converterem religiosamente o escravo, favoreceram maior controle social
por parte dos senhores. Os escravos africanos em contato com a cultura
européia apropriaram-se da simbologia hegemônica do culto aos santos.
Todavia, não se tratou de uma aceitação passiva. Como acentua Martins,
“a devoção aos santos reveste-se de instigantes significados, pois as
divindades cristãs tornam-se transmissoras da religiosidade africana,
barrada pelo sistema escravista e pela interdição aos deuses africanos”[24]:
A última imagem
extraída da série Arturos apresenta uma oferenda onde parece clara a
alusão à confluência entre culturas distintas que se imbricaram ao longo
do tempo, dando origem a novas formações culturais. Na direção do que
afirma Stuart Hall, as culturas “não são e nunca serão unificadas no
velho sentido porque elas são, irrevogavelmente, o produto de várias
histórias e culturas interconectadas”[25].
Assim, sucessivamente, nosso olhar é novamente atraído por um
recorte que desempenha o papel de uma moldura cuja tonalidade escura se
deve à baixa luz e que, em conjunto com as montagens e colagens dos
negativos, ganha uma textura repleta de nuances e formas ondulares. Esse
contorno nos leva a uma observação acurada da imagem a qual nos faz
separar o que deve compor a cena, tendo em vista que, não deixando
espaço de ruído entre as margens, a nossa imaginação não é requisitada
para o que está fora do enquadramento. A atenção do espectador é
despertada para o seu recorte.
O desequilíbrio fornecido pelas áreas escuras e claras ressalta
uma descentralização. As granulações diferenciadas e às vezes até
exacerbadas de cinza, em contrapondo com uma zona altamente iluminada,
conferem para essa imagem uma competição entre os centros, exigindo
participação ativa do espectador durante a sua fruição.
Sem dúvida, é o que entendemos que Eustáquio Neves consegue pois,
logo num primeiro olhar, somos atraídos pelo excesso de luz que emana do
centro da figura. Esse espaço iluminado que desperta no nosso
imaginário a idéia de uma celebração traz, também, os elementos para o
entendimento do que vimos estudando e afirmando no curso deste texto, ou
seja, o fato de que as culturas estão em permanente contato, em
constante movimento. Nesse sentido, poderíamos afirmar que o altar ou a
oferenda, na fotomontagem de Neves, são construídos como um símbolo
contemporâneo, pois atualizam os elementos combinados a partir das
“tramas da relação”.
Compondo esta trama velas entram como signos que indicam devoção à
Nossa Senhora do Rosário e nos remetem à cultura africana, ao mesmo
tempo em que, dividem espaço com signos que representam outras culturas e
outros contextos culturais. Assim, duas garrafas de coca-cola, cada uma
ocupando a sua função, servem tanto de suporte para a vela quanto para a
rosa. Neves ainda mistura embalagens de cigarros, com embalagens
Mac’Donalds, além de recortes de rótulos de bebidas compartilhadas no
mesmo lócus, representando, pelo que se lê sobre o tema, o
cruzamento entre memórias africanas diversas e outros códigos culturais
com elas confrontadas, visto que “as culturas negras [nas Américas]
constituíram-se como lugares de encruzilhadas[26],
inscrições e disjunções, fusões e transformações, confluências e
desvios, rupturas e relações, divergências, multiplicidades, origens e
disseminações”[27].
Portanto, a fotografia de Eustáquio Neves nos conduz diretamente
ao argumento posto por Glissant para quem “o pensamento rastro/resíduo
desemboca nestes tempos difratados que as humanidades de hoje
multiplicam entre si, em choques e maravilhas”[28].
O choque, diz Glissant, também pode ser compreendido pela idéia do
caos–mundo, ou seja, a idéia de que constantemente e continuamente estão
acontecendo “o entrelaçamento, as repulsões, as atrações, as
conivências, as oposições, os conflitos entre as culturas dos povos na
totalidade-mundo contemporânea”[29]. Isso implica dizer que:
[...] as influências ou as repercussões das culturas
umas sobre as outras são imediatamente sentidas como tal. E ao mesmo
tempo em que existe esse imediatismo da repercussão das relações
culturais, das culturas umas sobre as outras, há algo que não podemos
deixar de observar: as humanidades que se influenciam dessa forma,
negativa ou positivamente, vivem vários tempos diferentes. (GLISSANT,
2005, p. 99 e 100) Fonte: http://migre.me/vi66P