5.3. O assassinato como forma de cotidianização.
Não existem, nem podem existir, dominações, ou governos, plenamente carismáticas,
pois, para tal, seria necessário acabar com a economia, enquanto instituição racional, e com a
família, enquanto instituição tradicional. As dominações de caráter mais acentuadamente carismático
são aquelas que inovam. Essa inovação, contudo, subverte e ameaça tanto a economia
quanto a família, o que torna as dominações mais carismáticas perturbadoras para os setores
da comunidade que não estão diretamente engajados nela. Fazem-se, então, necessárias ações
para restabelecer a normalidade, no processo que Max Weber chama de Veralltäglichung, que
significa rotinização, ou cotidianização, em oposição ao carisma, que é, por definição, uma
qualidade extracotidiana, ein außeralltäglich Qualität.
Logo no início da pesquisa que deu origem ao presente estudo, chamou nossa atenção o
fato de que os quatro mandões com o corpo fechado que nos propusemos a pesquisar foram
assassinados: o padre José Vitório, o subdelegado Afonso Lopes, o bandido Antônio Dó e o coronel
Horácio de Matos. Seria simples coincidência? Seria em função da crença no corpo fechado,
como que para desmascarar esse poder sobrenatural? São argumentos válidos, porém não
explicam o assassinato dos quatro mandões estudados. Outra causa que não pode ser descartada
é a própria violência da política, porém há outros “coronéis” igualmente assassinados, que, se
não foram carismáticos no sentido mágico, foram carismáticos pelo menos no sentido de “inovadores”,
isto é, na medida em que um mandão pode ser inovador. Trata-se de quatro mandões
que fizeram parte do mesmo contexto político estudado e que também foram assassinados: 1) o
Calistinho, que vimos na tragédia do Tamanduá, 2) Rotílio Manduca, que era inimigo de Antô-
nio Dó, 3) Gentil de Castro, que atuou no vale do Jequitinhonha e no sul da Bahia, considerado
o pai do coronelismo por Faoro, e 4) Delmiro Gouveia, no baixo São Francisco.
A violência política certamente explica o assassinato desses oito mandões, senhores do
trabuco e também de votos, porém o que nos parece mais decisivo na motivação da morte desses
“coronéis” é o caráter subversivo da política que eles praticavam, pouco ortodoxa e pouco
racional. O corpo fechado era apenas um dos tantos elementos heterodoxos e irracionais na
política perturbadora desses mandões. As razões alegadas para o assassinato desses oito chefes
são as mais diversas, porém, em cada uma das mortes, a cotidianização, se não foi “o motivo”,
foi certamente um dos frutos colhidos. Vejamos, caso a caso, como se deram as mortes desses
oito mandões, tentando entender, em cada crime, o fator de cotidianização.56
O padre José Vitório escandalizava a população. Nos processos contra ele, uma das queixas
que mais se repetia era com relação ao elevados valores que cobrava para administrar
os vários sacramentos, sobretudo quando tinha que se deslocar ([arquivos:] AFGM, 1856). A
ambição do vigário de São José do Gorutuba não era dissimulada e, em tempo relativamente
curto, ele se tornara proprietário de vastas extensões de terra. Além disso, depois que sofreu
uma emboscada em Tremedal, o padre passou a se fazer acompanhar de “peitos largos”, que
eram seus capangas, e certamente uma parcela do patrimônio que ele amealhou foi obtida por
meio de práticas violentas e fraudulentas. A cobiça desenfreada de José Vitório era ainda menos
aceitável quando comparada com a atuação desinteressada do seu predecessor, o padre
Carlos Rolim. Além de cobiçar bens de capital, José Vitório tinha também ambições de cunho
político, alinhando-se, em 1856, aos conservadores, na tentativa de substituir a hegemonia que
os liberais haviam alcançado na região, mas não foi bem sucedido e passou a ser francamente
hostilizado pela elite local ([arquivos:] AFGM, 1856). Conflito que pode ser considerado como
a principal causa do seu assassinato, pois, embora a causa direta tenha sido o assassinato de
Ursulino, filho de João de Deus Faria, que legitimou a vindita, essa morte não pode ser separada
do conflito político-econômico entre o padre e a elite local.
Não se pode, tampouco, esquecer que José Vitório vivia em companhia da “comadre” Joaquina
Rosa, com quem tinha três filhos, segundo Simeão Pires ([1982], p. 31). A fama de que
tinha o corpo fechado, pelas implicações com a feitiçaria e com o próprio diabo, por meio de
supostos “pactos”, era também fonte de escândalo, tanto mais em um padre, que já era portador
de outros carismas, propriamente sacerdotais. Conforme foi dito, José Vitório foi assassinado
no dia 26 de julho de 1868, por José Faustino de Sá, que aguardava de tocaia, no trajeto entre
a fazenda da Passagem, onde vivia, e a comunidade que pastoreava, ou deveria pastorear. Teria
sido morto com um único tiro, cujo projétil, segundo se acredita, além de ser de ouro, tinha sido
benzido pela própria vítima. Segundo uma tradição local, os mandantes do crime teriam sido
Deus, os Santos e os Anjos, onde Deus era João de Deus Faria, os Anjos estão representados
por Ângelo de Quadros Bittencourt e sua família e os Santos eram certamente outra família que
compunha a elite local (PIRES, [1982], p. 154).
A nordeste dali, na região da Conquista, a família Lopes Moitinho podia ser caracterizada
pelo emprego da truculência com finalidades políticas. Bernardo Lopes Moitinho e seus filhos
Manoel e João foram réus em distintos processos, nos quais quase sempre se unem a violência
e os objetivos políticos, seja a transferência do distrito de São Felipe, de Caetité para o termo
da vila de Vitória, ou a luta pelo resultado das eleições em Poções ou na Verruga, locais onde
dividiam a hegemonia com outros grupos. Também estavam associados à família Ferraz, que
dominava na região de Tremedal, hoje Tremedal dos Ferraz, perto de onde ficava a fazenda
do Tamanduá. Tanto Manoel quanto João Lopes Moitinho tinham esposas da família Ferraz.
Afonso Lopes era filho de João e o nome de solteira de sua mãe era Honorata Ferraz de Araú-
jo. Jovem de futuro, muito valente, fora eleito vereador, casara-se com Maria Hermelina, sua
prima, filha do tio materno Domingos Ferraz, patriarca do Tamanduá, e exercia o cargo de subdelegado.
Sem aceitar uma surra que sofrera, Afonso fora o autor, direto ou indireto, da morte
dos irmãos Sérgio e Gasparino. O caráter de guerra entre famílias da Tragédia do Tamanduá fica
visível no fato de Afonso Lopes não ter sido a única vítima, mas também seu sogro e a maioria
das pessoas que se encontravam na sede da fazenda Tamanduá. Por outro lado, o aspecto político
desse assassinato múltiplo é perceptível pelo envolvimento, na qualidade de mandantes,
de outros mandões locais, ligados ao grupo do coronel Pompílio, que, em seguida, ascendeu ao
poder. Houve mesmo uma acusação veiculada na imprensa local de que esse coronel teria sido
o verdadeiro mandante da chacina, em texto de um outro genro do coronel Domingos Ferraz
(IVO, 2004, p. 137-219; LETTIÈRE, 2011, p. 57-135).
O aspecto carismático, contudo, não pode ser desdenhado, primeiramente na teodiceia,
ou seja, em uma suposta justiça divina, que, compensando um privilegiamento negativo, teria
legitimado a chacina do Tamanduá. Esse privilegiamento negativo que exigia a intervenção de
forças extraordinárias, fica evidente na morte dos dois filhos diante dos olhos da própria mãe, a
viúva Lourença, que teria ainda sido destratada. A narrativa da viúva Lourença levando os cadáveres em lombo de burro até a vila de Conquista e deixando-os insepultos às portas do cemitério
é muito significativa, já que ressalta esse aspecto do privilegiamento negativo, que exige
uma intenvenção da justiça “divina”, ou teodiceia. Assim, a vindita, enquanto agente de uma
lei consuetudinária, supostamente respaldada pela suprema divindade, serviu de pretexto para
uma ação armada politicamente motivada e bem-sucedida. A valentia de Afonso Lopes também
se tornou legendária. Conta-se que, depois de ter recebido tiros e facadas que não lhe causaram
dano algum, explicou aos seus agressores o procedimento mágico para que fosse morto: colocar
sua cabeça sobre um pilão e cortá-la com uma foice, ou esmagá-la com uma mão de pilão
(VIANA, [1985-1986], v. 1, p. 131-132). Outra tradição esclarece que um dos chefes mocós,
Tomás Tomba Morro, recebia esse apelido por sua ligação com o Exu Tomba Morro. Tomás
fora procurado nos jarés, como são chamados os candomblés da Chapada, para neutralizar a
invulnerabilidade do subdelegado ([filmografia:] NERI, 2011).
O Calistinho, Calisto de Almeira Freire, articulador da chacina do Tamanduá, também
tinha poderes extraordinários, não apenas pelo fato de ser chefe familiar, cargo que implicava
certo carisma, similar ao do chefe tribal, mas sobretudo por ter arregimentado o numeroso e
aguerrido “exército” dos mocós, ou mocozeiros. Sendo o principal instigador da chacina, Calistinho
era particularmente odiado, tendo sido assassinado, segundo Israel Orrico, a mando de
João Nunes Ferraz, primo ou sobrinho do coronel Domingos. O “serviço” foi realizado pelo
pistoleiro Antônio Vieira dos Santos, o “Liro”. Sabendo que o Calistinho se encontrava no povoado
do Gissaras, hoje pertencente ao município de Pedra Azul, Liro se postou a mais de cem
metros da praça central da localidade, escondido entre a ramagem, de onde disparou um único
tiro, particularmente mortífero, porque o projétil tinha sido envenenado (ORRICO, 1982, p.
148).
O assassinato do coronel Gentil José de Castro também pode ser inserido nessa lista dos
homicídios que foram cometidos em prol do regresso à rotina, um retorno ao velho e bom cotidiano.
Sua área de atuação política era a mesma que estudamos. Por meio do seu empenho
pessoal, o jovem Afonso Celso foi eleito deputado geral repetidas vezes pelo distrito eleitoral de
Grão Mogol, que começava nas vizinhanças de Montes Claros mas chegava ao distante povoado
do Salto Grande, hoje Salto da Divisa, situado na extremidade leste das Minas Gerais (1998,
p. 13-25). A área de maior influência do coronel Gentil ficava às margens do rio Jequitinhonha.
O médio Jequitinhonha, naquele tempo, era ainda pouco habitado, pertencendo ao município
de Araçuaí, onde o coronel residiu algum tempo. Entre as suas atividades comerciais, há notícia
de uma frota de canoas, dirigida pelo irmão, major Licínio José de Castro; as canoas haviam se transformado, naquele tempo, no principal meio de transporte da região, primazia que durou
até a década de 1930 (SANTIAGO, 2004b, p. 12-13). Gentil também conseguira, em 1881,
uma concessão para a construção de uma ferrovia ao longo do rio, inclusive com subvenção da
ordem de nove contos (9:000$000), conforme se vê nas Efemérides mineiras (VEIGA, 1998, v.
2, p. 868), mas que, por um ou outro motivo, não chegou a ser construída. Por volta de 1880,
mudou-se para Canavieiras, cidade situada no litoral baiano, mas tipicamente sertaneja, para
explorar os diamantes recentemente descobertos no Salobo. A recepção não foi das mais calorosas,
e o jornal que ele montou, o primeiro a ser editado no lugar, foi empastelado, tendo seu
maquinário lançado nas águas do rio Pardo. Os motivos foram políticos, o jornal chamava-se
justamente O Liberal, demonstrando as inclinações políticas do coronel (COSTA, 1963, p. 24-
25; DURVAL, [1981], p. 39-40).
Em 1883, Gentil de Castro se estabeleceu em Ilhéus, onde se envolveu em confusões ainda
maiores, inclusive no assassinato de um outro líder político, o tenente coronel João Carlos
Hohlenweger, e de dois jagunços que o acompanhavam, ocorrida no dia nove de setembro de
1885. Em 1886, foi preso no Rio de Janeiro, de onde o levaram para Ilhéus, para ser julgado.
O julgamento desse crime foi um dos mais afamados que aconteceram no fórum local. Para
a defesa de Gentil, veio da Corte o jovem bacharel e político Afonso Celso, acompanhado
de outros três advogados que estavam entre os melhores da nação. Contra eles, bateu-se o
promotor local, Ciridião Durval, que fez uma acusação memorável, segundo Silva Campos,
mas o réu foi absolvido. Depois de sofrer dois atentados, em 1888, Gentil de Castro aumentou
consideravelmente seu contingente e seu armamento. Conseguiu a transferência para Ilhéus de
uma tropa do exército regular, pois o visconde de Ouro Preto, pai de Afonso Celso, patrono de
Gentil, presidia o ministério e potanto governava toda a nação. Nessa época, seus desmandos se
tornaram ainda mais frequentes, e sua jagunçada, acompanhada da polícia estadual e até de tropas
imperiais, realizou repetidas sebaças nos sertões que faziam parte do município de Ilhéus.
Porém, com a proclamação da República, seus inimigos passaram a atacar as suas fazendas e
as de seus correligionários, e Gentil mudou-se para o Rio de Janeiro, onde passou a se dedicar
a uma propriedade que adquirira e à direção de dois jornais de orientação monarquista (CAMPOS,
1981, p. 266, 272-275). Em 1896, foi novamente preso, sob a suspeita de estar envolvido
na revolução da Armada, e levado para os calabouços da ilha das Cobras, onde ficou durante
semanas (CELSO, 1929, p. 215-216).
Conforme Silva Campos, foi Gentil de Castro o introdutor da “nociva noção da capangagem”
na região de Ilhéus (1981, p. 266). Em outras palavras, teria sido, segundo esse autor, o
introdutor das práticas de violência política que, em seu conjunto, temos denominado “política
jagunça”. Quando Raymundo Faoro, em Os donos do poder, diz que Gentil de Castro foi o “pai
do futuro coronelismo”, não se refere diretamente ao uso da violência política, mas à efetivação
de uma “influência local”, que, a partir de então, ganharia espaço no teatro político, ainda que
sempre subordinada a uma “influência geral” (2008, p. 442). Em todo caso, o coronel Gentil era
sempre, para o bem ou para o mal, um inovador, pertubardor do status quo e da rotina vigentes,
relembrando que a inovação é uma das características das dominações carismáticas weberianas
(WEBER, 1991, p. 161, 167).
Apesar de todas essas proezas, Gentil de Castro entrou definitivamente para a história
brasileira com seu assassinato, sintomaticamente omitido em Os sertões, trabalho históricoliterário-jornalístico
do militante republicano Euclides da Cunha. Seu assassinato está inserido
em uma série de acontecimentos da história pátria, ocorridos no início de março de 1897,
quando a notícia da morte de Moreira César, em Canudos, causou fortes reações populares.
A racionalidade republicana não podia conceber que míseros jagunços tivessem derrotado a
terceira expedição, enviada pelo governo Prudente de Morais, contra o populoso povoado de
Antônio Conselheiro. Tanto mais porque essa terceira expedição tinha à frente o competente
coronel Moreira César, o “Corta Cabeças” da repressão à revolução Federalista, morto logo no
primeiro combate contra os jagunços sertanejos da “Troia de taipa”. Parecia inexplicável para
a população urbana brasileira, a não ser que os “fanáticos” do sertão baiano estivessem recebendo
armamento e treinamento de personagens poderosos. O próprio presidente da república,
Prudente de Morais, foi acusado de favorecer os conselheiristas, assim também o governador
da Bahia, Luís Viana. Mas os culpados mais evidentes eram os monarquistas.
No início de março de 97, jornais monarquistas foram empastelados em diferentes partes
do país, entre eles os dois de propriedade de Gentil de Castro. Esses empastelamentos faziam
parte da reação à morte de Moreira César, que, de degolador de prisioneiros, passava à condição
de mártir, rebatizando a rua do Ouvidor, principal ponto de encontro da elite brasileira, que,
ainda naquele ano, recebeu seu nome. As capitais do país foram tomadas pelo “terror republicano”,
espécie de mazorca, que percorria as ruas atrás de monarquistas a serem linchados (JANOTTI,
1986, p. 134-140). O coronel Gentil de Castro, além de ser parceiro e sócio de um dos
principais líderes monarquistas, Afonso Celso, era notório conhecedor dos sertões e senhor de
jagunços e, portanto, o mais provável elemento de junção entre a elite monarquista e o exército
rústico que defendia Canudos. A casa de Gentil de Castro fora invadida e depredada, na noite
anterior ao seu assassinato, mas ele não estava presente. Os assassinos do coronel se sentiam tão justificados que realizaram o crime em uma estação ferroviária, a de São Francisco Xavier,
que estava cheia de gente, bem diante de numerosas testemunhas, entre as quais o conde Afonso
Celso e seu pai, o visconde de Ouro Preto, que, apesar de serem monarquistas mais renomados
que Gentil, foram poupados, embora houvesse no grupo quem os quisesse matar (CELSO,
1929, p. 162-169). O coronel recebeu numerosos tiros, mas os criminosos, que eram na maioria
militares, foram todos absolvidos. Afonso Celso, percebendo que a situação era bastante
adversa, logo embarcou para a Europa, mas, ao chegar à França, registrou o que vira em um
livreto, intitulado justamente O assassinato do coronel Gentil de Castro, publicado ainda em
1897, em Paris. Gentil de Castro, de valentão sertanejo que era, também se tornou uma espécie
mártir, pois, segundo Maria de Lourdes Janotti, “passou a personificar o heroísmo da resistência
monarquista” (1986, p. 147).57
O coronel Delmiro Augusto da Cruz Gouveia, embora pertença ao quadro político-partidário
que estudamos, está um pouco fora dos sertões abordados, pois atuou nas margens alagoanas
do São Francisco, na localidade de Pedra, elevada de povoado a sede de município, graças
ao seu trabalho. Antes, residira em Recife, mas nascera e passara a primeira infância em Ipu, no
sertão cearense. Também tem a particularidade de ter sofrido, mais que cometido, violências.
Outra característica que diferencia Delmiro Gouveia dos mandões que estudamos, com seus
corpos fechados e outros carismas, é a sua racionalidade. Delmiro Gouveia era um coronel
industrial, que montou, nos primeiros anos do século XX, uma grande tecelagem movida pela
energia elétrica gerada por uma queda d’água do São Francisco. Antes disso, nos últimos anos
do século anterior, se dedicara a outro empreendimento visionário, o mercado do Derby, em
Recife, que era uma espécie de shopping center, com restaurante, diversões e funcionando também
à noite. Desentendimentos políticos fizeram com que fosse perseguido em Recife, onde vá-
rios processos foram abertos contra ele, e o Derby foi criminosamente incendiado, forçando sua
mudança para o estado de Alagoas. Enquanto os mandões sertanejos eram objeto de crendices
ligadas à guerra, Delmiro estava diretamente ligado ao grande mercado, inclusive internacional,
pois ficou rico agenciando a exportação de peles de carneiro e de cabra, através do porto de
Recife (QUEIROZ, 1976, p. 195-197; MAGALHÃES MARTINS, 1979, p. 11-67).
Nem por isso Delmiro estava destituído de carisma. O caráter inovador das suas ações e
do seu comportamento, na medida em que fugia ao cotidiano, continha o elemento extracotidiano, que é específico da dominação carismática weberiana, ainda que não seja propriamente
mágico. Mário de Andrade, que também tem o mérito de reunir o tradicional e o moderno de
maneira inesperada, percebeu o caráter inovador da dominação política e econômica de Delmiro.
O escritor modernista faz uma série de considerações acerca do coronel industrial, que,
para ele, era “um Antônio Conselheiro do trabalho”. Constava, segundo Mário afirma com certa
ressalva, que não mandara matar ninguém, mas, em compensação, “mandou sovar gente sem
conta”. Relata ainda, entre outros detalhes inusitados, que “Delmiro Gouveia coronelava tudo”,
inclusive os alunos que estivessem faltando às aulas para fazer algum “servicinho” (aqui no
sentido de trabalho na agricultura) para os pais, e houve quem chegasse a ser demitido por esse
motivo; “tinha birra de mulher fumante” e seguia “a religião da higiene”. Referindo-se ao tempo
em que Delmiro Gouveia trabalhara na função de faroleiro de ferrovias, antes de enriquecer,
faz uma comparação, onde expressa o mesmo ponto que estamos defendendo:
Pelo menos Delmiro Gouveia conservou no espelho dos atos a imagem do
faroleiro rapaz. Foi um dramático movimentador de luzes, luzes verdes, luzes vermelhas
dentro do caráter noturno do Brasil. Por isso teve o fim que merecia: assassinaram-no
(1983a, p. 211).
Longe de se enquadrar no nosso modelo de mandões violentos, afeitos à guerra, Delmiro Gouveia
serve antes de contraponto, inclusive pelo distanciamento com relação à política propriamente
partidária. Embora tentasse se afastar dela, a política da violência chegou ao coronel da
Pedra, que foi assassinado na noite de 11 de outubro de 1917, pelos pistoleiros José Inácio Pia,
alcunhado de “Jacaré”, e Róseo Morais. Os dois cumpriram pena pelo crime, ao contrário dos
supostos mandantes, o deputado estadual José Rodrigues de Lima, que se defendeu atrás da
imunidade parlamentar, e José Gomes de Sá, antigo “amigo” da vítima, que fugiu sem que se
soubesse do seu paradeiro. O povoado da Pedra, que Delmiro encontrara com cinco casebres,
tinha, 14 anos depois da sua chegada, seis mil habitantes e hoje é a cidade de Delmiro Gouveia
(MAGALHÃES MARTINS, 1979, p. 175-186). Nesse aspecto do desenvolvimento urbano, seu
trabalho político pode ser comparado ao do padre Cícero Romão e ao de Antônio Conselheiro,
embora haja, ainda aqui, uma contraposição entre a racionalidade e a irracionalidade.
As características carismáticas de Antônio Dó são bastante notórias, a começar pelo corpo
fechado. A motivação política da sua carreira de fora da lei, seu envolvimento em lutas políticas
em Minas, na Bahia e em Goiás, além do fato de ser criminoso e chefe de bandidos, eram motivos
mais que suficientes para que houvesse muita gente disposta a pagar por sua morte, visando a restauração da lei e da ordem. Essa perseguição por todos os meios de um fora-da-lei, culminando
com sua morte depois de várias tentativas, pode ser também percebida no assassinato do
capoeirista Besouro, na morte de Lampião, em uma ação policial, e na morte dos mandões que
estamos estudando. Não se pode esquecer que, ao lado do elemento de traição, já que foi perpetrado
por comparsas que contavam com a cumplicidade da sua companheira, o assassinato de
Antônio Dó foi cercado de procedimentos mágicos. O crime aconteceu no dia 14 de novembro
de 1929 e foi saudado pela imprensa da capital mineira, que afirmava: “Podem, agora, repousar
tranquilas as inúmeras localidades que ele aterrorizou por tanto tempo, notadamente a cidade de
São Francisco, o alvo predileto de sua cobiça vandálica” (apud MARTINS, 1997, p. 109).
O coronel Rotílio de Souza Manduca era outro comandante militar que, apesar da crueldade,
era notável em muitos aspectos, tanto assim que teria inspirado o personagem Zé Bebelo,
do Grande sertão, conforme afirmam, apresentando muitas evidências, Levínio da Cunha
Castilho ([1985]) e Saul Martins (1997, p. 82). Rotílio foi também descrito em texto de Manoel
Bandeira, que confirma a descrição com que é apresentado no romance rosiano (BANDEIRA,
1977, p. 513). Zé Bebelo é, sem sombra de dúvida, o personagem que tem mais nuances no
romance, e Rotílio, em quem seria baseado, é o único dos personagens históricos nomeados no
Grande sertão cuja aparência é descrita (ROSA, 2006, p. 458-459). Além de ser valente, desde
os tempos de menino, Rotílio Manduca dominava, entre outras, a arte do disfarce, e também
não deixava de ser inovador trazer uma mulher uniformizada em sua campanha contra a Coluna
Prestes. Seu assassinato tem certa conotação mundana, quase rasteira, distinta da morte
dos mandões mais propriamente carismáticos. O crime aconteceu a bordo do vapor Wenceslau
Braz, que se encontrava ancorado na cidade da Barra, no dia 30 de maio de 1930, quando Rotilio
estava completando 45 anos e foi apunhalado em seu próprio camarote por um homem
apelidado “Mesquinheza”, que, anos antes, ele mandara castrar (MARTINS, 1997, 79-83).
Cerca de um ano mais tarde, no dia 15 de maio de 1931, o coronel Horácio de Matos, cujas
características carismáticas e inovadoras são inegáveis, era assassinado no largo do Acioli, em
pleno centro de Salvador. Sua morte não estava diretamente relacionada à sua atuação política,
mas o crime fora encomendado por Manoel Dias Machado, tio da viúva do major Mota Coelho,
que morrera em combate no cerco de Lençóis, seis anos antes, e que, conforme muitos acreditavam,
tinha sido morto com um tiro desferido por Horácio. Porém não se pode esquecer que
o coronel da Chapada tinha sido desarmado, preso e, depois de ser posto em liberdade, forçado
a permanecer em Salvador, onde foi um alvo fácil para os três tiros disparados às suas costas,
quase à queima-roupa, por Vicente Dias dos Santos. O governo revolucionário, instalado havia sete meses, ficou livre de um temível inimigo e pôde implantar sua política centralizadora na
região das Lavras Diamantinas, sem maiores contratempos.
Fonte: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MONTES CLAROS - UNIMONTES
Montes Claros, maio de 2013 Créditos de Luís Carlos Mendes Santiagohttp://migre.me/vhQWL pág 164/173