CAPÍTULO 2
D. FRANCISCO DE SOUZA E O IMPÉRIO NA VILA DE SÃO PAULO
As questões postas pelo almirante Diego Flores de Valdés sobre a capitania de São Vicente, de certa, forma deram o tom das ações de Madri em relação àquela parte do império. Não que os informes de Valdés tenham inspirado ou interferido diretamente nos procedimentos da Coroa, mas, sem dúvida, revelam a percepção aguçada do almirante quanto à pauta que tornava a região relevante na órbita do império filipino. O papel da capitania na defesa das Índias; a importância de empreender o povoamento conjugado entre castelhanos e portugueses; as possibilidades de integração regional com o interior da América e a existência de prováveis, e desejáveis, riquezas minerais foram – ao lado do assédio das entradas de apresamento na região do Guairá a partir da década de 1620 - os assuntos vicentinos mais tratados ao longo do período da união das coroas ibéricas, tanto em Madri, no Conselho de Estado e no Conselho de Portugal, quanto em Lisboa, pelo vice-rei e suas juntas. Neste capítulo, pretendemos analisar apenas um destes aspectos o das supostas riquezas minerais da capitania e apresentar uma das figuras de maior importância nos empreendimentos a ele atrelados, o sétimo governador-geral do Brasil D. Francisco de Souza. Personagem que também foi fundamental na integração regional, tema que só será desenvolvido posteriormente, no capítulo 3. De todo modo, para compreender os motivos que levaram à presença do governador - geral nos rincões da colônia, não poderíamos nos furtar a uma breve apresentação da vila de São Paulo na década de 1590. Uma vila em pé de guerra e suas fantásticas minas de ouro. A década de 1590 começou, para a vila de São Paulo, com uma ameaça. Um levante indígena, iniciado no aldeamento de Pinheiros e que levou à destruição da igrejinha local dedicada a Nossa Senhora do Rosário, alastrou-se rapidamente, tornando-se uma rebelião generalizada. Nesta atmosfera, colonos se deslocavam de suas roças e propriedades rurais para o interior protegido e murado da vila e se preparavam para a guerra. De fato, segundo John Monteiro, desde a década de 1580 que a vila vivia um tempo de conflitividade geral, disseminada entre índios e colonos, ou mesmo entre ndios recém-descidos às aldeias e índios já assentados. Rebelados contra a situação de escravidão e violência a que eram submetidos, os indígenas fizeram com que pontuassem, nas Atas da Câmara de São Paulo do ano de 1590, as mortes de João Valenzuela e um índio seu escravo, a de Isaac Dias, perpetrada pelo próprio cacique Cunhambebe, e a de um Luis Grou. Os ataques na região do Jaraguá , por sua vez, levaram os camaristas a decidir por fortalecer ainda mais o forte do Embuaçava, que guardava o rio Geribatiba (Pinheiros). De São Paulo os oficiais emitiram, na direção de São Vicente, os clamores ao capitão-mor Jerônimo Leitão para empreender uma nova entrada na região do Tietê a fim de punir os índios levantados, entrada esta que se concretizou em agosto. Contudo, os conflitos continuaram ainda pelos anos de 1590 e 1591, quando, então, o capitão empreendeu mais uma entrada em outubro. No fim de 1591, o longevo capitão Jerônimo Leitão foi substituído por Jorge Correa que, impossibilitado de prestar socorro, passou provisão a um dos moradores mais antigos da vila, Afonso Sardinha, para que assumisse o posto de capitão da gente de guerra da vila de São Paulo, além de incumbi-lo da obrigação de fintar os moradores em “farinha de guerra” a ser enviada ao governador-geral em Pernambuco. Começava, então, um processo de tensão entre a vila de São Paulo e o novo capitão-mor. Os oficiais da Câmara inicialmente se opuseram à nomeação de Sardinha, pois alegavam não ser prática comum na vila possuir um capitão, mas, após algumas deliberações, aceitaram-na diante da condição excepcional de guerra. Quanto à farinha, decidiram não enviar, afinal precisariam dela para a própria guerra travada no planalto! Por desejo de retaliação ou mera ingenuidade, Correa decidiu fazer provisão que entregava a administração das aldeias dos índios aos padres da Companhia de Jesus. A reação foi imediatae, no dia 22 de setembro, os oficias da Câmara expressaram sua contrariedade afirmando que tal ato só poderia ser fruto da inexperiência do capitão, visto que Jerônimo Leitão, durante os vinte anos que permaneceu no cargo, sempre tratou de evitá-lo. Para complicar a situação de Correa, o corsário inglês Thomas Cavendish invadiu São Vicente e Santos, no natal de 1591. Os ingleses destruíram casas, igrejas e engenhos, obrigando o capitão a pedir socorro junto aos moradores da vila de São Paulo, que, simplesmente, se recusaram a prestá-lo. Entre os conflitos do mar e do sertão, optaram pelo do sertão, que lhes dizia respeito. Embora, no planalto, Sardinha tivesse organizado, nos meses de setembro e outubro de 1592, entradas punitivas e estabelecido um sistema de revezamento na vigilância do forte, exemplos de pedidos como os do castelhano João de Santa Anna, que solicitava à Câmara um “chão” no rocio da vila em 1592 por “ ser muito necessário recolherem-se os moradores à vila e nela terem casas por respeito de estarmos em guerra” ,davam mostra de que a situação estava mesmo longe de apaziguar. De fato, apesar de os conflitos serem empurrados para áreas cada vez mais distantes, ainda em 1593 a pressão indígena se fazia sentir, só que agora na área de Mogi, onde atacaram gente de Antonio Macedo e Domingos Luis Grou. Numa única emboscada no rio Jaguari, segundo as Atas, teriam morrido o francês Guilherme Navarro, Francisco Correa, Diogo Dias, Manuel Francisco e Gabriel Pena. Os depoimentos dos sobreviventes assustavam a todos, que, em uníssono, exigiam do capitão Jorge Correa, estante em São Paulo, talvez para acalmar os ânimos, que não voltasse a Santos sem antes dar uma lição nos índios de Bogi. Pressionado pelas ameaças dos corsários no litoral e com o apoio da Companhia de Jesus, Correa se recusou a aceitar a intimação e ainda proibiu a guerra intencionada pelos moradores de São Paulo. Os oficiais, então, escreveram para o Rio de Janeiro, solicitando ajuda ao governador-geral e ao próprio rei. Fatos que talvez expliquem a primeira intervenção do governador-geral, D. Francisco de Souza, em São Paulo, quando mandou que se remetesse Correa preso à Bahia e que fosse designado como novo capitão-mor da capitania João Pereira de Souza Botafogo, enquanto o donatário não nomeasse um substituto. Correa acabou absolvido das acusações e retomou o posto na capitania, mas suas relações com os habitantes de São Paulo continuaram azedadas. Em 1597, os moradores reunidos praticamente intimaram o capitão a comparecer à vila para ver in loco a situação e, assim, parar de governar somente por cartas enviadas da costa vicentina ou, ainda pior, de querer proibir as entradas ao sertão.3 Em dezembro do ano seguinte, os moradores voltavam a queixar se de que “não entende o capitão nesta vila”, pontuando que ele, agora, inventara de exigir licenças para que se fizesse resgate com os índios - “nossos amigos”, segundo os camaristas -, o que tirava “as liberdades dos moradores”. De certa maneira, os conflitos de 1590 -1593 pareceram encerrar o quadro de ameaças diretas da população indígena das proximidades do planalto ao núcleo da vila. As guerras e entradas passaram a abarcar regiões cada vez mais distantes e limítrofes, representando, por outro lado, a “pacificação” do planalto. Neste processo, uma das figuras de projeção, conforme já destacamos, foi Afonso Sardinha. Sardinha era, ao que tudo indica, tanoeiro de origem. Não se sabe quando poderia ter chegado ao Brasil, nem mesmo se aqui havia nascido, mas casou-se em Santos em 1550, com Maria Gonçalves, filha de Domingos Gonçalves. Transladou-se para a vila de São Paulo em 1565, mas continuou atrelado à vila de Santos, onde tinha casas de aluguel e negócios. Morreu em São Paulo em 1616, portanto bastante idoso. Ao longo de sua trajetória na vila de São Paulo, revelou-se um homem de impressionantes conexões e ilações comerciais. De fato, seu testamento de 1592, produzido às vésperas de sua partida para a guerra, mostra que possuía navios aprestados para Angola, encomendas em Buenos Aires e negócios e dívidas no Rio de Janeiro e Bahia. Negociava escravos da Guiné, tecidos, marmelada e gentios. Foi de sua propriedade um dos primeiros trapiches de açúcar no planalto. Entre seus devedores, estavam tanto o antigo capitão-mor quanto o recém-chegado. Por isso, há de se desconfiar quando ele alegava não comparecer a uma sessão da Câmara, como vereador que era, em pleno natal de 1576, pois não tinha botas! Na vila, foi almotacel, em 1575, vereador, em 1572, 1576 e 1582 e juiz ordinário, em 1587. Portanto, em 1592, quando foi nomeado capitão da gente de guerra da vila, já apresentava uma longa ficha de préstimos à governança local. O que, essencialmente, desconcerta em seu testamento é o grau de conexões possíveis a partir do que sempre foi considerada uma vila isolada, na contramão das relações e dos fluxos comerciais. As ausências constantes de Sardinha de São Paulo, sempre “no mar”, denotam que, da vila litorânea de Santos, ele geria seu comércio e suas encomendas, enquanto, do planalto, ele gerava suas rendas através do plantio de marmelada, criação de gado e também do gentio apresado em entradas cada vez mais constantes. Sardinha já havia participado de uma incursão de Leitão aos Patos, em 1585, e liderado entradas punitivas, entre 1592 e 1593. Todavia, entre 1594 e 1599, sua presença foi atestada em entradas no sertão juntamente com seu filho mameluco, homônimo. Em 1606, oficiais da Câmara ainda reclamavam que Afonso Sardinha, o pai, abrigara certos índios carijós que teriam ido buscar “paz e vassalagem” junto ao donatário da capitania, e que os teria mantido em sua casa, em Carapicuíba, se recusando a remetê-los à Câmara, onde deveriam fazer as tratativas para os préstimos de obediência. Na mesma sessão, buscava se proibir que Sardinha, nesta altura provavelmente beirando os oitenta anos, empreendesse mais uma entrada ao sertão, como se ouvira dizer na vila. Neste sentido, fica claro que Afonso geria uma ampla mão de obra indígena, grande parte concentrada em sua própria aldeia, de Carapicuíba, mais tarde transferida aos padres da Companhia de Jesus através de seu testamento de 1616. As empreitadas dos Sardinha pelo sertão e pelas redondezas da vila de São Paulo renderam também outros frutos, o que acrescentaria ainda mais funções ao múltiplo Afonso, pai, como as de minerador e fundidor de metais. Não se sabe ao certo a data exata de suas descobertas, mas foram as minas dos Sardinha que despertariam a atenção do governador-geral do Brasil, D. Francisco de Souza. O filho Afonso Sardinha, o moço, era nascido em São Paulo, residia em Emboaçava, junto do rio Pinheiros, e minerava em Jaraguá. Descobriu minas de ferro em Araçoiaba em 1589, segundo Azevedo Marques, e com seu parceiro, Clemente Alvares, minas de ouro no Jaraguá, Vuturuna (Parnaíba) e Jaguamimbaba (nas proximidades da Serra da Mantiqueira). Sardinha, o moço, ainda teria construído dois engenhos para fundição de ferro em Araçoiaba, sendo um deles doado ao próprio governador em 1600. O moço faleceu em 1604 , em pleno sertão, e fez correr fama de que deixara em testamento “oitenta mil cruzados de ouro em pó enterrado num botelho de barro...” Afirmação que foi ironizada por Afonso Taunay, pois segundo ele, depois da conversão aproximada desta quantidade em quilos, Sardinha o moço poderia ser considerado um “Fugger brasileiro”. O estabelecimento de mineração no Jaraguá era 118 perto das minas localizadas no córrego Santa Fé, já os fornos de fundição de Araçoiaba, que teriam sido criados em 1591, ficavam nas margens do rio Ipanema. A informação corrente entre os historiadores é que o governador Francisco de Souza fora, efetivamente, atraído a São Paulo em função de certas notícias do ouro descoberto pelos Sardinha. Entretanto, Carvalho Franco sugere que o verdadeiro imã teria surgido de algumas amostras levadas por um mameluco que, desdobrado de uma entrada liderada pelo capitão-mor João Pereira Botafogo, chegara até a Bahia. Versão também difundida por Piso e Marcgrave, quando divulgaram os relatos de Willem Von Glimmer, mineiro flamengo inserido na bandeira de Botafogo. Seja como for, as notícias de riquezas minerais em torno da capitania de São Vicente não deveriam ser novidade para o governador, pois já eram bastante recorrentes na colônia; as amostras, contudo, podem, sim, ter despertado a cobiça, ou a curiosidade, de tão ilustre personagem. A crença de que o Brasil em especial o interior da capitania de São Vicente encerrasse, em suas entranhas, múltiplas e abundantes riquezas minerais era, de fato, bem antiga. Nesse sentido, os relatos do almirante Diego Flores de Valdés, que asseguravam a Felipe II a existência de metais de prata (mais ricos que de Potosí), cobre e ouro em São Paulo, solicitando o envio de mineiros para “labrar las minas (...) que ali ha y estan descubiertas”, deveriam soar mais como uma espécie de confirmação do que novidade. E as notícias não pararam por aí. Em seu livro direcionado ao rei Felipe II, Gabriel Soares de Souza também alertava sobre a capitania de São Vicente: Não há dúvida se não que há nestas capitanias outra fruta melhor que é a prata, o que se não acaba de descobrir, por não ir a terra quem a saiba tirar das minas e fundir.37 De acordo com Carvalho Franco, uma das primeiras notícias sobre a existência destas riquezas se deu através de uma carta do bispo Pedro Fernandes Sardinha ao rei, em 1552, comunicando a chegada de um navio que, vindo de São Vicente, trazia a nova de que “era muito ouro achado pela terra dentro”.
D. FRANCISCO DE SOUZA E O IMPÉRIO NA VILA DE SÃO PAULO
As questões postas pelo almirante Diego Flores de Valdés sobre a capitania de São Vicente, de certa, forma deram o tom das ações de Madri em relação àquela parte do império. Não que os informes de Valdés tenham inspirado ou interferido diretamente nos procedimentos da Coroa, mas, sem dúvida, revelam a percepção aguçada do almirante quanto à pauta que tornava a região relevante na órbita do império filipino. O papel da capitania na defesa das Índias; a importância de empreender o povoamento conjugado entre castelhanos e portugueses; as possibilidades de integração regional com o interior da América e a existência de prováveis, e desejáveis, riquezas minerais foram – ao lado do assédio das entradas de apresamento na região do Guairá a partir da década de 1620 - os assuntos vicentinos mais tratados ao longo do período da união das coroas ibéricas, tanto em Madri, no Conselho de Estado e no Conselho de Portugal, quanto em Lisboa, pelo vice-rei e suas juntas. Neste capítulo, pretendemos analisar apenas um destes aspectos o das supostas riquezas minerais da capitania e apresentar uma das figuras de maior importância nos empreendimentos a ele atrelados, o sétimo governador-geral do Brasil D. Francisco de Souza. Personagem que também foi fundamental na integração regional, tema que só será desenvolvido posteriormente, no capítulo 3. De todo modo, para compreender os motivos que levaram à presença do governador - geral nos rincões da colônia, não poderíamos nos furtar a uma breve apresentação da vila de São Paulo na década de 1590. Uma vila em pé de guerra e suas fantásticas minas de ouro. A década de 1590 começou, para a vila de São Paulo, com uma ameaça. Um levante indígena, iniciado no aldeamento de Pinheiros e que levou à destruição da igrejinha local dedicada a Nossa Senhora do Rosário, alastrou-se rapidamente, tornando-se uma rebelião generalizada. Nesta atmosfera, colonos se deslocavam de suas roças e propriedades rurais para o interior protegido e murado da vila e se preparavam para a guerra. De fato, segundo John Monteiro, desde a década de 1580 que a vila vivia um tempo de conflitividade geral, disseminada entre índios e colonos, ou mesmo entre ndios recém-descidos às aldeias e índios já assentados. Rebelados contra a situação de escravidão e violência a que eram submetidos, os indígenas fizeram com que pontuassem, nas Atas da Câmara de São Paulo do ano de 1590, as mortes de João Valenzuela e um índio seu escravo, a de Isaac Dias, perpetrada pelo próprio cacique Cunhambebe, e a de um Luis Grou. Os ataques na região do Jaraguá , por sua vez, levaram os camaristas a decidir por fortalecer ainda mais o forte do Embuaçava, que guardava o rio Geribatiba (Pinheiros). De São Paulo os oficiais emitiram, na direção de São Vicente, os clamores ao capitão-mor Jerônimo Leitão para empreender uma nova entrada na região do Tietê a fim de punir os índios levantados, entrada esta que se concretizou em agosto. Contudo, os conflitos continuaram ainda pelos anos de 1590 e 1591, quando, então, o capitão empreendeu mais uma entrada em outubro. No fim de 1591, o longevo capitão Jerônimo Leitão foi substituído por Jorge Correa que, impossibilitado de prestar socorro, passou provisão a um dos moradores mais antigos da vila, Afonso Sardinha, para que assumisse o posto de capitão da gente de guerra da vila de São Paulo, além de incumbi-lo da obrigação de fintar os moradores em “farinha de guerra” a ser enviada ao governador-geral em Pernambuco. Começava, então, um processo de tensão entre a vila de São Paulo e o novo capitão-mor. Os oficiais da Câmara inicialmente se opuseram à nomeação de Sardinha, pois alegavam não ser prática comum na vila possuir um capitão, mas, após algumas deliberações, aceitaram-na diante da condição excepcional de guerra. Quanto à farinha, decidiram não enviar, afinal precisariam dela para a própria guerra travada no planalto! Por desejo de retaliação ou mera ingenuidade, Correa decidiu fazer provisão que entregava a administração das aldeias dos índios aos padres da Companhia de Jesus. A reação foi imediatae, no dia 22 de setembro, os oficias da Câmara expressaram sua contrariedade afirmando que tal ato só poderia ser fruto da inexperiência do capitão, visto que Jerônimo Leitão, durante os vinte anos que permaneceu no cargo, sempre tratou de evitá-lo. Para complicar a situação de Correa, o corsário inglês Thomas Cavendish invadiu São Vicente e Santos, no natal de 1591. Os ingleses destruíram casas, igrejas e engenhos, obrigando o capitão a pedir socorro junto aos moradores da vila de São Paulo, que, simplesmente, se recusaram a prestá-lo. Entre os conflitos do mar e do sertão, optaram pelo do sertão, que lhes dizia respeito. Embora, no planalto, Sardinha tivesse organizado, nos meses de setembro e outubro de 1592, entradas punitivas e estabelecido um sistema de revezamento na vigilância do forte, exemplos de pedidos como os do castelhano João de Santa Anna, que solicitava à Câmara um “chão” no rocio da vila em 1592 por “ ser muito necessário recolherem-se os moradores à vila e nela terem casas por respeito de estarmos em guerra” ,davam mostra de que a situação estava mesmo longe de apaziguar. De fato, apesar de os conflitos serem empurrados para áreas cada vez mais distantes, ainda em 1593 a pressão indígena se fazia sentir, só que agora na área de Mogi, onde atacaram gente de Antonio Macedo e Domingos Luis Grou. Numa única emboscada no rio Jaguari, segundo as Atas, teriam morrido o francês Guilherme Navarro, Francisco Correa, Diogo Dias, Manuel Francisco e Gabriel Pena. Os depoimentos dos sobreviventes assustavam a todos, que, em uníssono, exigiam do capitão Jorge Correa, estante em São Paulo, talvez para acalmar os ânimos, que não voltasse a Santos sem antes dar uma lição nos índios de Bogi. Pressionado pelas ameaças dos corsários no litoral e com o apoio da Companhia de Jesus, Correa se recusou a aceitar a intimação e ainda proibiu a guerra intencionada pelos moradores de São Paulo. Os oficiais, então, escreveram para o Rio de Janeiro, solicitando ajuda ao governador-geral e ao próprio rei. Fatos que talvez expliquem a primeira intervenção do governador-geral, D. Francisco de Souza, em São Paulo, quando mandou que se remetesse Correa preso à Bahia e que fosse designado como novo capitão-mor da capitania João Pereira de Souza Botafogo, enquanto o donatário não nomeasse um substituto. Correa acabou absolvido das acusações e retomou o posto na capitania, mas suas relações com os habitantes de São Paulo continuaram azedadas. Em 1597, os moradores reunidos praticamente intimaram o capitão a comparecer à vila para ver in loco a situação e, assim, parar de governar somente por cartas enviadas da costa vicentina ou, ainda pior, de querer proibir as entradas ao sertão.3 Em dezembro do ano seguinte, os moradores voltavam a queixar se de que “não entende o capitão nesta vila”, pontuando que ele, agora, inventara de exigir licenças para que se fizesse resgate com os índios - “nossos amigos”, segundo os camaristas -, o que tirava “as liberdades dos moradores”. De certa maneira, os conflitos de 1590 -1593 pareceram encerrar o quadro de ameaças diretas da população indígena das proximidades do planalto ao núcleo da vila. As guerras e entradas passaram a abarcar regiões cada vez mais distantes e limítrofes, representando, por outro lado, a “pacificação” do planalto. Neste processo, uma das figuras de projeção, conforme já destacamos, foi Afonso Sardinha. Sardinha era, ao que tudo indica, tanoeiro de origem. Não se sabe quando poderia ter chegado ao Brasil, nem mesmo se aqui havia nascido, mas casou-se em Santos em 1550, com Maria Gonçalves, filha de Domingos Gonçalves. Transladou-se para a vila de São Paulo em 1565, mas continuou atrelado à vila de Santos, onde tinha casas de aluguel e negócios. Morreu em São Paulo em 1616, portanto bastante idoso. Ao longo de sua trajetória na vila de São Paulo, revelou-se um homem de impressionantes conexões e ilações comerciais. De fato, seu testamento de 1592, produzido às vésperas de sua partida para a guerra, mostra que possuía navios aprestados para Angola, encomendas em Buenos Aires e negócios e dívidas no Rio de Janeiro e Bahia. Negociava escravos da Guiné, tecidos, marmelada e gentios. Foi de sua propriedade um dos primeiros trapiches de açúcar no planalto. Entre seus devedores, estavam tanto o antigo capitão-mor quanto o recém-chegado. Por isso, há de se desconfiar quando ele alegava não comparecer a uma sessão da Câmara, como vereador que era, em pleno natal de 1576, pois não tinha botas! Na vila, foi almotacel, em 1575, vereador, em 1572, 1576 e 1582 e juiz ordinário, em 1587. Portanto, em 1592, quando foi nomeado capitão da gente de guerra da vila, já apresentava uma longa ficha de préstimos à governança local. O que, essencialmente, desconcerta em seu testamento é o grau de conexões possíveis a partir do que sempre foi considerada uma vila isolada, na contramão das relações e dos fluxos comerciais. As ausências constantes de Sardinha de São Paulo, sempre “no mar”, denotam que, da vila litorânea de Santos, ele geria seu comércio e suas encomendas, enquanto, do planalto, ele gerava suas rendas através do plantio de marmelada, criação de gado e também do gentio apresado em entradas cada vez mais constantes. Sardinha já havia participado de uma incursão de Leitão aos Patos, em 1585, e liderado entradas punitivas, entre 1592 e 1593. Todavia, entre 1594 e 1599, sua presença foi atestada em entradas no sertão juntamente com seu filho mameluco, homônimo. Em 1606, oficiais da Câmara ainda reclamavam que Afonso Sardinha, o pai, abrigara certos índios carijós que teriam ido buscar “paz e vassalagem” junto ao donatário da capitania, e que os teria mantido em sua casa, em Carapicuíba, se recusando a remetê-los à Câmara, onde deveriam fazer as tratativas para os préstimos de obediência. Na mesma sessão, buscava se proibir que Sardinha, nesta altura provavelmente beirando os oitenta anos, empreendesse mais uma entrada ao sertão, como se ouvira dizer na vila. Neste sentido, fica claro que Afonso geria uma ampla mão de obra indígena, grande parte concentrada em sua própria aldeia, de Carapicuíba, mais tarde transferida aos padres da Companhia de Jesus através de seu testamento de 1616. As empreitadas dos Sardinha pelo sertão e pelas redondezas da vila de São Paulo renderam também outros frutos, o que acrescentaria ainda mais funções ao múltiplo Afonso, pai, como as de minerador e fundidor de metais. Não se sabe ao certo a data exata de suas descobertas, mas foram as minas dos Sardinha que despertariam a atenção do governador-geral do Brasil, D. Francisco de Souza. O filho Afonso Sardinha, o moço, era nascido em São Paulo, residia em Emboaçava, junto do rio Pinheiros, e minerava em Jaraguá. Descobriu minas de ferro em Araçoiaba em 1589, segundo Azevedo Marques, e com seu parceiro, Clemente Alvares, minas de ouro no Jaraguá, Vuturuna (Parnaíba) e Jaguamimbaba (nas proximidades da Serra da Mantiqueira). Sardinha, o moço, ainda teria construído dois engenhos para fundição de ferro em Araçoiaba, sendo um deles doado ao próprio governador em 1600. O moço faleceu em 1604 , em pleno sertão, e fez correr fama de que deixara em testamento “oitenta mil cruzados de ouro em pó enterrado num botelho de barro...” Afirmação que foi ironizada por Afonso Taunay, pois segundo ele, depois da conversão aproximada desta quantidade em quilos, Sardinha o moço poderia ser considerado um “Fugger brasileiro”. O estabelecimento de mineração no Jaraguá era 118 perto das minas localizadas no córrego Santa Fé, já os fornos de fundição de Araçoiaba, que teriam sido criados em 1591, ficavam nas margens do rio Ipanema. A informação corrente entre os historiadores é que o governador Francisco de Souza fora, efetivamente, atraído a São Paulo em função de certas notícias do ouro descoberto pelos Sardinha. Entretanto, Carvalho Franco sugere que o verdadeiro imã teria surgido de algumas amostras levadas por um mameluco que, desdobrado de uma entrada liderada pelo capitão-mor João Pereira Botafogo, chegara até a Bahia. Versão também difundida por Piso e Marcgrave, quando divulgaram os relatos de Willem Von Glimmer, mineiro flamengo inserido na bandeira de Botafogo. Seja como for, as notícias de riquezas minerais em torno da capitania de São Vicente não deveriam ser novidade para o governador, pois já eram bastante recorrentes na colônia; as amostras, contudo, podem, sim, ter despertado a cobiça, ou a curiosidade, de tão ilustre personagem. A crença de que o Brasil em especial o interior da capitania de São Vicente encerrasse, em suas entranhas, múltiplas e abundantes riquezas minerais era, de fato, bem antiga. Nesse sentido, os relatos do almirante Diego Flores de Valdés, que asseguravam a Felipe II a existência de metais de prata (mais ricos que de Potosí), cobre e ouro em São Paulo, solicitando o envio de mineiros para “labrar las minas (...) que ali ha y estan descubiertas”, deveriam soar mais como uma espécie de confirmação do que novidade. E as notícias não pararam por aí. Em seu livro direcionado ao rei Felipe II, Gabriel Soares de Souza também alertava sobre a capitania de São Vicente: Não há dúvida se não que há nestas capitanias outra fruta melhor que é a prata, o que se não acaba de descobrir, por não ir a terra quem a saiba tirar das minas e fundir.37 De acordo com Carvalho Franco, uma das primeiras notícias sobre a existência destas riquezas se deu através de uma carta do bispo Pedro Fernandes Sardinha ao rei, em 1552, comunicando a chegada de um navio que, vindo de São Vicente, trazia a nova de que “era muito ouro achado pela terra dentro”.
Fonte: pág http://migre.me/vlss9