Capítulo 3
Uma história platina da colonização portuguesa
História da capitania de São Vicente
A ocupação da capitania de São Vicente, na porção meridional da América
portuguesa, foi pautada pela busca de metais preciosos. A esse respeito, Washington
Luís afirma que “D. João III só cuidou em povoar o Brasil para nele firmar a sua
posse, na esperança do ouro e das pedras preciosas”391.
A concessão da capitania a Martim Afonso de Sousa foi seguida do pouco
interesse por parte dos donatários em explorar São Vicente. Washington Luís aponta
que “nada fizeram os donatários, que aliás nada ou pouco possuíam. Nenhum
donatário de S. Vicente veio a sua capitania ver o que ela valia ou que ela precisava
para prosperar. Todos limitaram-se somente a nomear loco-tenentes, que os
substituíssem”392.
Nesse período inicial de conquista e povoamento, Martim Afonso inicia uma
expedição que, de acordo com Washington Luís, tinha quatro grandes objetivos:
1o – expulsar do Brasil os franceses que aí já começavam a se
estabelecer, comerciando com os índios. 2o – descobrir minas de
ouro e prata e mais metais preciosos que se esperava existir, muito
abundante, mais a leste das que os espanhóis se haviam apoderado,
e que então desvairavam o mundo excitando a cobiça geral. 3o –
reconhecer toda a costa e saber o que pertencia a Portugal, nos
termos do Tratado de Tordesilhas. Esperava talvez D. João III que o
seu domínio incluísse o Rio da Prata. 4o – fortalecer civilmente e
fortificar militarmente os diversos pontos na costa do Brasil, dentro
da demarcação portuguesa, para assegurar os senhorios do rei de
Portugal, e nelas estabelecer postos de ocupação, cravando padrões
portugueses de posse393.
Dentro desse contexto de exploração do novo território, Martim Afonso
estabelece, em São Vicente, o primeiro município da América portuguesa em 1532.
Essa criação deu-se por conta das atribuições dos donatários estabelecidas por ocasião
da doação da capitania 394 . Washington Luís relata que, no momento do estabelecimento da vila, “S. Vicente já era um porto conhecido, com lugar marcado
nos rudimentares mapas da época, uma espécie de pequena feitoria portuguesa, de
iniciativa particular, visitada por esquadras para o tráfico de escravos, onde se
forneciam vitualhas necessárias à navegação de longo curso, se construíam bergantins
e contratavam línguas da terra”395.
Logo, como observamos no relato acima, o estabelecimento da vila de São
Vicente por Martim Afonso foi mais uma medida política do que povoamento. Não
cria um povoado visando a fixação de colonos, mas o reconhecimento de um
agrupamento humano pré-estabelecido como poder local, dotando-o de prerrogativas
políticas através da criação de uma câmara.
No planalto, em direção ao sertão, Martim Afonso, em contato com o povoado
de João Ramalho, confere a esse o título de vila de Santo André. Isso porque, para
Washington Luís,
Martim Afonso, quando de S. Vicente subiu ao Planalto,
reconheceu talvez que a povoação de João Ramalho constituíra um
posto avançado de importância no caminho, que por ela passava,
trilhado pelos índios e que ia até o Paraguai, onde se imaginavam
situadas as fabulosas minas que ele procurava, pelo sertão adentro,
desde o Rio de Janeiro e de Cananéia396.
Washington Luís descontrói a ideia de que Santo André fora fundada por João
Ramalho. Afirma que “o lugar, em que morava João Ramalho, era, pois, uma
povoação e não uma vila”397. E, para consolidar a data e os responsáveis pela criação
do município andreense, escreve que “a Câmara de Santo André, criada por Tomé de
Sousa, em 1553, aclamada em 8 de abril desse ano por provisão de Antonio
d’Oliveira, capitão-mor em nome do donatário, e com a presença de Brás Cubas,
provedor da fazenda real, funcionou no lugar, em que a situou o primeiro Governador
Geral do Brasil, até 1650”398.
Até essa data, a vila de Santo André figuraria como ponto de lança na
penetração portuguesa no sertão. Nesse ano, o município é transferido para junto do Colégio jesuítico de São Paulo, fundado em 1554 nos campos de Piratininga.
A vila de São Paulo não foi, portanto, fundada, mas fruto da transferência de
sítio da vila de Santo André para um local mais seguro. Apesar das Atas da Câmara
de Santo André não mencionarem as razões para a mudança. Washington Luís
justifica a mesma pelo fato de que “a capitania de S. Vicente estava entre duas
gerações de gente inimiga de várias qualidades e forças, que em toda a costa do Brasil
há, como são os tamoios e os tupiniquins”399.
José de Anchieta, em carta de 12 de julho de 1561, relata ao padre geral dos
jesuítas, Diogo Laynez, que “uma povoação, que estava três léguas apartadas, se
mudou para Piratininga por mandado do Governador e por insistência dos padres”400.
Independente das conclusões em torno das razões que levaram à mudança, o
fato é que, “em 1560, Mem de Sá, terceiro governador geral, mudou a sede dessa vila
de Santo André para junto dessa casinha”401 que era o colégio jesuítico de São Paulo.
Passa a nova vila a figurar, devido a sua posição estratégica no planalto, como eixo
articulador da conquista e povoamento do sertão.
Assim, a partir da vila de São Paulo e seguindo a rede hidrográfica da bacia do
rio Tietê, foram fundada vários municípios no sertão.
Em 1611 é elevada à vila “Santa das Cruzes de Mogi Mirim, no dia 3 de
setembro”402. Santana de Parnaíba, por sua vez, “foi criada vila por provisão do conde
de Monsanto, então donatário da Capitania de São Vicente, e data de 14 de novembro
de 1625”403
Já Taubaté
deve a sua fundação ao capitão Jacques Félix, que em 1636 com o
propósito desta fundação, para ali passou-se com sua família e
grande número de índios mansos e que concedeu as primeiras
sesmarias. Foi criada vila por provisão de 5 de dezembro de 1650
sendo capitão-mor Dionísio da Costa, loco-tenente do donatário da
Capitania de Itanhaém404.
Azevedo Marques descreve que Jacareí, estabelecida como povoado em 1652,
“foi elevada à vila em 1653 pelo donatário D. Diogo de Faro e Souza”405 e Jundiaí
“foi criada pelo capitão-mor Manuel de Quevedo Vasconcelos, como loco-tenente e
procurador do então donatário da capitania de São Vicente, conde de Monsanto, a 14
de dezembro de 1655”406.
A oeste de São Paulo, Itu “foi elevada à freguesia em 1653 e à vila pelo
capitão-mor Gonçalo Couraça de Mesquita a 18 de abril de 1657”407. E a leste,
Guaratinguetá “foi elevada à vila a 13 de fevereiro de 1657, pelo capitão-mor
Dionísio da Costa, loco-tenente da capitania”408.
A vila de Sorocaba teve origem distinta das demais. Azevedo Marques aponta
que
o governador-geral D. Francisco de Sousa (que faleceu em São
Paulo em 1611) intentou fundar ali uma povoação e que chegou
mesmo a estabelecê-la pelos anos decorridos de 1600 a 1610, com o
fim de dar desenvolvimento à exploração das minas; mas
sobrevindo-lhe a morte, não progrediu a referida povoação, antes
decaiu rapidamente até extinguir-se409.
Em 1654, “o paulista Baltazar Fernandes e seus genros André de Zunega e
Bartolomeu de Zunega (espanhóis) emigraram de Parnaíba, onde residiam, e
estabelecendo-se com suas famílias na distância de três léguas do morro de
Biraçoiaba, fundaram ali uma capela dedicada à Senhora da Ponte”410.
Como havia, formalmente, a vila fundada por D. Francisco de Souza nas
proximidades do novo povoado, a solução apresentada pelo governador Salvador
Corrêa de Sá e Benevides foi a transplantação do pelourinho da vila abandonada para
a nova vila de Sorocaba411.
A vila de Pindamonhangaba, por sua vez, fundada no início do século XVIII,
foi responsável por um conflito envolvendo a câmara de Taubaté, por conta de disputa
do termo. A nova vila avançaria sobre o termo de Taubaté por estar a menos de seis
léguas de distância.
Azevedo Marques relata que “foi elevada à vila ilegalmente pelo
desembargador João Saraiva de Carvalho, mas confirmada dois ou três anos depois
por provisão de 10 de julho de 1705”412.
As vilas fundadas no sertão articulam-se com os movimentos de expansão da
fronteira entre o território desconhecido e a área na qual a colonização estava
consolidada.
Esse processo de expansão, inicialmente motivado pela busca por metais
preciosos, foi seguido pela apreensão de indígenas, escravização e eventual venda
desses como mão de obra.
John Monteiro, em Negros da terra. Índios e bandeirantes nas origens de São
Paulo, insere a mão de obra indígena como ponto central na compreensão da
economia da capitania de São Vicente. Destaca que
ao longo do século XVII, colonos de São Paulo e de outras vilas
circunvizinhas assaltaram centenas de aldeias indígenas em várias
regiões, trazendo milhares de índios de diversas sociedades para
suas fazendas e sítios na condição de ‘serviços obrigatórios’. Estas
frequentes expedições para o interior alimentaram uma crescente
base de mão-de-obra indígena no planalto paulista, que, por sua vez,
possibilitou a produção e o transporte de excedentes agrícolas,
articulando – ainda que de maneira modesta – a região a outras
partes da colônia portuguesa e mesmo ao circuito mercantil do
Atlântico meridional413.
Apesar da pouca inserção no circuito comercial atlântico, o papel periférico da
economia vicentina em relação à economia colonial, focada no comércio açucareiro e
cujo centro situava-se nas capitanias do norte, levou a outras formas de arranjos
econômicos.
John Monteiro, a esse respeito, afirma que “os paulistas deram as costas para o
circuito comercial do Atlântico e, desenvolvendo formas distintas de organização
empresarial, tomaram em suas próprias mãos a tarefa de constituir uma força de
trabalho”414.
Como não se justificava, por razões econômicas, a utilização da mão de obra
escrava africana, tal como ocorreu nas capitanias do norte, coube aos vicentinos a captura de índios nos sertões. A utilização de escravos na agricultura era reforçada
pelo que John Monteiro define como “mentalidade escravista”415 do colono, até mais
do que uma necessidade de necessidade concreta por mão de obra.
O autor apresenta a criação dessa mentalidade em São Paulo como fruto do
embate entre os paulistas e os contrários à escravização indígena. Afirma que, “aos
poucos e de forma meticulosa, os colonos enfrentaram e superaram estes empecilhos,
articulando paulatinamente um elaborado sistema de produção calcado na servidão
indígena”416.
O colono, para John Monteiro,
ainda no século XVI, derrubou o primeiro obstáculo, com a
dizimação da população tupiniquim e o afastamento dos Guaianá e
Guarulhos. Já a segunda muralha cairia na primeira metade do
século XVII, quando os interesses escravistas acabaram
prevalecendo sobre o dos jesuítas, culminando com a tumultuada
expulsão dos padres em 1640. Apenas o terceiro obstáculo nunca
chegou a ser completamente vencido pelos paulistas, uma vez que a
Coroa manteve uma postura de certo modo inconstante na
formulação e execução de sua política indígena417.
A utilização do indígena como mão de obra e sua apreensão nas constantes
entradas nos sertões fundamentaram a economia da porção meridional da América
portuguesa.
Por conta das oposições por parte dos padres jesuítas, que tinham outros
planos para os indígenas, no caso, catequisar e reduzi-los às missões, os paulistas
haviam de justificar o cativeiro indígena.
A solução foi encontrada através da lei de 20 de março de 1570, que regulava,
mas não proibia a escravidão indígena. De acordo com John Monteiro,
o novo estatuto designava os meios considerados legítimos para
adquirir cativos, sendo estes restritos à ‘guerra justa’ devidamente
autorizada pelo rei ou governador e ao resgate dos índios que
enfrentavam a morte nos ritos antropofágicos. Os demais índios,
escravizados por outros meios, foram declarados livres418.
Tão logo surgiu esse dispositivo que autorizava a apreensão de índios, em
1585, “os colonos de São Vicente, Santos e São Paulo redigiram uma petição419 na
qual requerem ao capitão-mor de São Paulo autorização para organizar uma
expedição de guerra contra os Carijós, no interior da capitania”420.
É interessante assinalarmos que o papel marginal da capitania de São Vicente
em relação ao restante da colônia, a utilização de mão de obra indígena como força de
trabalho e as inúmeras entradas ao sertão, inicialmente em busca de riquezas e
posteriormente para captura de índios, aproximam a capitania com a governação do
Paraguai, na América castelhana.
Conforme apresentamos anteriormente, o papel marginal, tanto econômico
quanto político do Paraguai, inibiu a migração de europeus e possibilitou a criação de
uma sociedade mestiça, na combinação do colono castelhano com a mulher guarani.
Na capitania de São Vicente o mesmo processo ocorreu. Afonso Taunay
inclusive exalta essa mistura ao afirmar que
jamais aos nossos cronistas ocorreu ocultar o laivo indiático
transfundido às populações paulistas pela união dos primeiros
povoadores do solo vicentino às mulheres indígenas. Pelo contrário,
exaltam, e com justiça, esse cruzamento de onde haviam surgido tão
numerosos espécimes superiores no tocante à energia e à
resistência, o amor às aventuras e o ânimo empreendedor, fatores da
prodigiosa dilatação do Brasil pela América do Sul adentro e do
recuo castelhano421.
A presença indígena faz-se notar, tal como no Paraguai, através da adoção do
idioma indígena como língua cotidiana. Enquanto que no Paraguai adotou-se o
guarani, na capitania de São Vicente, o tupi tornou-se idioma corrente.
John Monteiro, a esse respeito, destaca que a questão da língua, embora pouco estudada, oferece outra pista
para apurar os complexos processos sociais de São Paulo
seiscentista. Muitos historiadores têm afirmado que o tupi era falado em São Paulo pelo menos até meados do século XVIII, quando
cedeu lugar ao português e, nas áreas rurais, ao dialeto caipira422.
Fonte: UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA ECONÔMICA http://migre.me/vv8qJ pág 108/105