O século XVII é particularmente importante na dinâmica da escravidão indígena
e, por conseguinte, da língua. Em seus meados é que ocorre o refluxo do apresamento
bandeirista, devido sobretudo à resistência jesuítica dos inacianos no Paraguai e o
distanciamento progressivo das fontes de abastecimento. Esse refluxo, claro, diz respeito ao
apresamento sistemático e reiterado, embora muitas dessas expedições vão prosseguir até o
final do século, destacando-se delas a de Raposo Tavares, à qual Jaime Cortesão dedica
toda uma obra (1958) para provar que sua finalidade, embora tenha levado a efeito o
apresamento de índio, tenha sido de caráter geopolítico e, portanto, expansionista. Em seu
estudo recentemente publicado, aqui tantas vezes citado, John Manuel Monteiro (2005)
discorda desse caráter. Entretanto, sua tese não fica provada do texto produzido, até porque
ele mesmo se encarrega de demonstrar que os apresamentos rarearam depois de meados dos
Seiscentos porque os habitats dos índios ficaram distantes demais e, por isso,
antieconômicos. Se se considerar que a bandeira expansionista de Raposo Tavares partiu
“num dos últimos meses do ano de 1947” (CORTESÃO, 1958:354), quando, portanto, já
estavam em franco declínio essas expedições pela convicção generalizada de sua
contraproducência, tem-se como improvável o fito de mera preação. Eis o texto de
Monteiro (2005:81):
Jaime Cortesão – entre outros – caracterizou esta expedição como ‘a
maior bandeira do maior bandeirante’, insistindo nos fundamentos
geopolíticos que teriam motivado a exploração portuguesa do interior do
continente. Na verdade, Raposo Tavares e seus companheiros, na maioria
residentes em Santana de Parnaíba, procuravam, desta vez, investigando
a possibilidade de assaltar as missões do Itatim, ao longo do rio Paraguai,
reproduzir o êxito obtido nas invasões do Guairá.
Curioso notar que a obra poética de cunho epopéico de maior projeção universal,
Os Lusíadas, não era desconhecida dos rudes paulistas dos Seiscentos, como o demonstra
Alcântara Machado (1980:104-5) no minucioso levantamento que fez dos inventários
processados de 1578 a 1700 no primeiro cartório de órfãos da capital:
Há todavia um belo testemunho do quanto é conhecido o poema da raça.
Aqui está o inventário de Pero de Araújo, processado em dezembro de
1616, no sertão de Paraupava, a mando do Capitão Antônio Pedroso de
Alvarenga. A carência do material de escrita leva o escrivão do arraial
Francisco Rodrigues da Guerra a aproveitar o primeiro retalho do papel
que se lhe depara. Por uma dessas coincidências esplêndidas em que o
destino se compraz, a última folha dos autos tem numa das faces os
termos finais do inventário e na outra a cópia manuscrita de algumas
estrofes camoneanas. São aquelas, precisamente, em que, depois de terem
passado por calmas, tormentas e opressões, e transposto o limite aonde
chega o Sol, se aprestam os portugueses a investir o cabo Tormentório.
Villalta (2002:375), empolgado com essa descoberta, chega a arriscar a seguinte
indagação: “Teria o épico camoniano embalado a expansão bandeirante?”. Exageros à
parte, vale notar que, dos poucos espólios em que encontrou livros, Alcântara Machado
(1980:238) registra que Manuel Preto, o violento bandeirante, “é o único a levar consigo,
para distrair-se, um naipe e dois livros velhos”.
A corrida às jazidas auríferas descobertas em Minas Gerais (por volta da última
década de 1690), as de maior expressão, seguidas pelas de Mato Grosso e Goiás, na
segunda década do século XVIII, dará nova configuração populacional (ou depopulacional)
a São Paulo. Esse novo ciclo econômico responderá pelo deslocamento em massa dos
paulistas, e seus plantéis de índios, rumo à nova “Terra da Promissão”. A capitania sofreu
um sério despovoamento. John Manuel Monteiro (2005:210) descreve o cenário dessas
migrações coletivas:
A corrida para as minas
aprofundou a crise da escravidão indígena em diversos sentidos. Muitos
paulistas, sobretudo aqueles que tinham poucos escravos, migraram para
as Gerais, redundando num êxodo considerável de mão-de-obra local, o
que se tornou assunto tanto nas reuniões das câmaras municipais quanto
na correspondência de funcionários da Coroa. De fato, o que se percebe na documentação local, sobretudo nos inventários de bens, é um declínio
vertiginoso na concentração de mão-de-obra indígena na região.
Nazzari (2001:96) também se deteve na pesquisa documental sobre o assunto:
As expedições do século XVIII
em busca do ouro afetaram a economia de São Paulo de maneira muito
diferente do que as bandeiras do século anterior. As expedições do século
XVII haviam proporcionado uma infusão de mão-de-obra a essa
economia, o que levou ao aumento de produção e a um desenvolvimento
gradual, enquanto as expedições em busca do ouro ocasionaram um
êxodo de pessoas e de bens. (...) O êxodo de muitos paulistas, inicialmente
com grande número de índios e, depois, com muitos escravos africanos,
resultou em escassez de mão-de-obra em São Paulo.
Esse despovoamento em favor das minas trará novo perfil a São Paulo quando
muitos paulistas voltarem enriquecidos: o aumento do padrão de vida. Bruno (1966:83):
Deve-se assinalar, de outra parte, que a despeito de não ter acusado, esse
povoamento, em termo de áreas territoriais ocupadas, uma escala de
grandes proporções, foi bastante sensível o crescimento de São Paulo
nessa fase de sua formação [a partir do primeiro terço do século dezoito].
E um dos fatores de maior importância nesse crescimento excepcional foi
o retorno dos paulistas que haviam até então emigrado para as zonas de
ouro, e que voltavam para sua terra com as famílias, os agregados e os
escravos, para se dedicarem a atividades de comércio (pois São Paulo se
constituíra, no dizer de um pesquisador, na retaguarda econômica das
minas) ou mesmo de lavoura ou de pastoreio. Não foram poucos os
antigos mineradores que largaram os seus almocafres e os seus carumbés,
nas jazidas esgotadas.
O exame dos inventários da época revela um enorme salto desde as peças mais
triviais aos mobiliários que guarneciam as casas. É o que demonstra Alcântara Machado
(1980:94), descortinando a cornucópia de fartura e vaidade em que tinham se transformado
as até então austeras e parcimoniosas famílias paulistas: senhoras de gargantilhas,
afogadores, cruzes, crucifixos e esgaravatadores de ouro e pedras preciosas, vestidos de
seda, lã, camelão, serafina, purputuana, partudo, milanesa, e homens de casacas forradas de
tafetá, gibões de veludo, capinhas de pano roxo, alamodas de chamalote vermelho, chapéus
pintados a óleo, espadas de vestir, bastões com engastes de prata, desfilam por uma
comunidade ciosa de seu progresso, enfatuada de sua riqueza que alcança até os fâmulos a
princípio:
O descobrimento das minas traz
para todos a fartura, e o luxo deixa de ser um privilégio de escol,
infiltrando-se nas classes inferiores e sobretudo entre as cativas de
estimação. Para impedir escândalo tamanho a ordem régia de 20 de
fevereiro de 1696 proíbe que as escravas ‘de todo esse Estado do Brasil,
em nenhuma das Capitanias dele, possam usar de vestido algum de seda,
nem se sirvam de cambraias ou de holandas, com rendas ou sem elas,
para nenhum uso, nem também de guarnições de ouro ou prata nos
vestidos’.
Quanto ao mobiliário, Bruno (1966:78-9) mostra também a evolução:
Excelentes móveis que seriam (de
acordos com dados que aparecem nos inventários do tempo) bufetes de
jacarandá marchetados de marfim, recobertos de panos de palha.
Escritórios com gavetas e fechaduras. Arquibancos, cadeiras e tamboretes
tauxiados de latão. Espelhos dourados ou de tartaruga, nas paredes. (....)
O mesmo enriquecimento se refletiu nos utensílios de que puderam dispor
em suas casas os moradores de maiores posses. Embora fosse ainda os
mais comuns, na generalidade das casas, os velhos e rústicos vasilhames
de barro da terra, as gamelas de pau e as combucas – nas casas mais ricas
começaram a poder se ostentar, em escala maior, objetos importados da
Europa, notadamente baixelas de prata.
Nessa nova São Paulo, ensoberbecida pelo fausto e pela chegada de novos
portugueses após a Restauração, não havia espaço para uma língua geral a refletir sua
cultura: a língua portuguesa crioulizada começa o caminho inverso em direção ao
superstrato. (Rosa Virgínia Mattos e Silva (2004:154), depois de passear pelas concepções
teoréticas que tentam explicar a diferença entre o português americano e o europeu, termina
por admitir ter havido uma crioulização “leve” no passado brasileiro.)
Um superstrato que demanda explicação. Não se trata, evidentemente, da língua
portuguesa pré-setecentista do conservadorismo de uma vertente lingüística, capitaneada
por Serafim da Silva Neto, cuja metodologia de investigação se funda em princípios da
dialetologia românica tradicional, em que aquele filólogo era reconhecidamente uma
grande autoridade. Aliás, pode-se usar aqui a nomenclatura empregada pela citada Autora
baiana, sem que isso altere a substância do fenômeno: trata-se de um português geral
brasileiro em formação, “que teria como falantes principais os indígenas remanescentes que
se integraram à sociedade nacional” (2004:100). Isto é, local, in casu. O português a que se
dirigem os indígenas é aquele fruto da transmissão lingüística em situação de exclusiva
oralidade e de aquisição imperfeita, o que pressupõe simplificação das formas em cotejo
com o europeu. O português culto não é, portanto, o falado pelos paulistas, como repetidas
vezes tem sido dito aqui, mesmo porque, como novamente adverte Rosa Virgínia Mattos e
Silva (2004:71), ele “só começará a definir-se da segunda metade do século XVIII pra cá,
uma vez que essa variante culta passa necessariamente por questões relativas à
escolarização, ao uso escrito e sua normativização”.
A escolarização é, portanto, o divisor de águas quanto à usualidade do português
culto no Brasil, ainda que se torne uma variante diastrática reduzida a pequenos círculos de letrados. Mas, em São Paulo, a implantação de um planejamento educacional ficou
seriamente comprometida, talvez mais do que em outras Capitanias, com as medidas
pombalinas de expulsão dos jesuítas e decretação da obrigatoriedade do ensino da língua
portuguesa. Aí a situação ficou ao largo de qualquer preocupação governamental, ou seja,
como adverte Banha (1978:27), a Capitania de São Paulo se tornou “a grande ausente neste
plano de implantar o sistema educativo que faria esquecer às populações o método
tradicional de dois séculos, fomentado pela Companhia de Jesus”. Villalta (2002:357),
apoiando-se em Maria Beatriz Nizza da Silva, também descreve um quadro desolador:
As reformas desenvolvidas a partir de Pombal agravaram a situação da
educação escolar ainda mais: na medida em que havia poucas aulas
régias e em que as disciplinas, via de regra, não eram oferecidas em todas
as vilas e cidades, os interessados em instruir-se tinham que se deslocar
por vários locais. Em 1818, quando as reformas já estavam sedimentadas,
apenas 2,5% da população masculina livre, em idade escolar, era atingida
pelas aulas régias em São Paulo, situação que devia ser similar à do
Brasil em geral.
Num artigo de sua especialidade, Maria Luiza Marcilio (2004:261), conhecida por
ter sido uma das pioneiras, no terreno da historiografia brasileira, na utilização do método
quantitativo da demografia, brandindo dados estatísticos, é ainda mais incisiva:
A população da Cidade de São Paulo foi particularmente prejudicada
com a expulsão dos jesuítas em 1759. Seu Colégio, que ocupava o centro
da vida cultural do pequeno burgo, desmantelado, desorganizou o ensino
por várias décadas. Quando o governador, Morgado de Mateus, chegou
na Cidade, em 1765, enfrentou sérias dificuldades para encontrar um
cidadão alfabetizado para cumprir funções administrativas em sua
secretaria de Governo: “Não achei quem tivesse letras, que ao menos por
remédio, pudesse suprir esta falha”, lamentava o governador. A
população da Cidade era quase analfabeta na vida do século XIX. Apenas entre 10% e 20% dos chefes de domicílio podiam assinar seu nome, nos
primeiros anos dos oitocentos.
Um provável reflexo disso se faria sentir por ocasião da criação da Faculdade de
Direito de São Paulo, que inaugura a existência sistemática da literatura em São Paulo,
segundo Antônio Cândido (2002:140 e 147): sua locação sofreu restrição por ocasião dos
debates legislativos, que aconteceram tanto na Assembléia Constituinte em 1823 quanto na
Assembléia Legislativa a partir de 1826, tendo sido argüido pelo Deputado Teixeira de
Gouveia, defendendo a instalação da Faculdade em Minas Gerais, que “é mais apurado o
dialeto que se fala em Minas do que em São Paulo”, informa Alberto Venancio Filho
(1982:18)23. Batendo-se pela universidade única no Rio de Janeiro saiu-se Silva Lisboa,
entre outros argumentos, com “a pureza e pronúncia da língua portuguesa” na Corte,
informam ainda os mesmos Autores. Segundo Lisboa, quanto a São Paulo, “a mocidade do
Brasil, fazendo aí os seus estudos, contrairia pronúncia mui desagradável”, relata José
Honório Rodrigues (1985:47). Houaiss (1992:149) conclui: “O incidente da instalação das
duas faculdades de direito – em Recife e em São Paulo – mostra que havia vigilância de
cúpula quanto ao particular da pronúncia e correção da fala”
Por último, vale lembrar que a população livre de São Paulo, em 1.767, era de 14.760 e a população escrava, de 6.113,
informa Nazzari (2001:34), citando dados demográficos colhidos em Maria Luiz Marcílio. A historiadora norte-americana também
informa (2001:99) a chegada de novos imigrantes portugueses no século XVIII. É ela ainda, nesta última página, que traz um dado
estatístico relevante em relação à segunda metade do século XVIII:
Em 1765, os escravos constituíam menos da terça parte da população da
cidade. Não fora essa a proporção no século anterior. Durante todo o
século XVII, os índios a serviço da elite paulista representavam quatro
quintos dos homens armados de São Paulo. Supondo que a proporção na
população total fosse a mesma que entre os homense armados, e supondo
que homens brancos significasse homens livres e índios significasse
homens não-livres, vemos que a proporção entre livres e não-livres
passara de um livre para quatro não-livres, no século XVII, para duas
pessoas livres por escravo em meados do século XVIII.
Esses dados apontam para a inversão no contingente demográfico da Cidade de
São Paulo no século XVIII em comparação com os séculos anteriores. Além, portanto, do
afluxo de novos imigrantes portugueses, o número de libertos aumentou consideravelmente.
O Alvará de 08 de maio de 1758 tornou os índios absolutamente livres. Isso já não
significava muita coisa para os índios ex-escravos, já imersos na cultura branca, onde,
embora marginalizados na quase totalidade dos casos, aprenderam a assimilar os valores
dela, inclusive quanto à língua. Os novos imigrantes portugueses constituíam a maioria dos
comerciantes, a essa época. Era a classe que havia se tornado os “habitantes mais ricos” de
São Paulo (NAZZARI, 2001:102) e, por não empregarem gente da terra, como informa
uma carta do Marquês de Lavradio citada pela Autora, atraía a vinda de novos portugueses.
Fonte: JOÃO BATISTA DE CASTRO JÚNIOR "A língua geral em São Paulo: instrumentalidade e fins ideológicos. "https://repositorio.ufba.br/ri/bitstream/ri/16201/1/Jo%C3%A3o%20Batista%20de%20Castro%20J%C3%BAnior.pdf