domingo, 25 de dezembro de 2016

7.7 FIM DAS BANDEIRAS DE APRESAMENTO. CREPÚSCULO DA LÍNGUA GERAL (Transcrição)

O século XVII é particularmente importante na dinâmica da escravidão indígena e, por conseguinte, da língua. Em seus meados é que ocorre o refluxo do apresamento bandeirista, devido sobretudo à resistência jesuítica dos inacianos no Paraguai e o distanciamento progressivo das fontes de abastecimento. Esse refluxo, claro, diz respeito ao apresamento sistemático e reiterado, embora muitas dessas expedições vão prosseguir até o final do século, destacando-se delas a de Raposo Tavares, à qual Jaime Cortesão dedica toda uma obra (1958) para provar que sua finalidade, embora tenha levado a efeito o apresamento de índio, tenha sido de caráter geopolítico e, portanto, expansionista. Em seu estudo recentemente publicado, aqui tantas vezes citado, John Manuel Monteiro (2005) discorda desse caráter. Entretanto, sua tese não fica provada do texto produzido, até porque ele mesmo se encarrega de demonstrar que os apresamentos rarearam depois de meados dos Seiscentos porque os habitats dos índios ficaram distantes demais e, por isso, antieconômicos. Se se considerar que a bandeira expansionista de Raposo Tavares partiu “num dos últimos meses do ano de 1947” (CORTESÃO, 1958:354), quando, portanto, já estavam em franco declínio essas expedições pela convicção generalizada de sua contraproducência, tem-se como improvável o fito de mera preação. Eis o texto de Monteiro (2005:81): 
Jaime Cortesão – entre outros – caracterizou esta expedição como ‘a maior bandeira do maior bandeirante’, insistindo nos fundamentos geopolíticos que teriam motivado a exploração portuguesa do interior do continente. Na verdade, Raposo Tavares e seus companheiros, na maioria residentes em Santana de Parnaíba, procuravam, desta vez, investigando a possibilidade de assaltar as missões do Itatim, ao longo do rio Paraguai, reproduzir o êxito obtido nas invasões do Guairá. 
Curioso notar que a obra poética de cunho epopéico de maior projeção universal, Os Lusíadas, não era desconhecida dos rudes paulistas dos Seiscentos, como o demonstra Alcântara Machado (1980:104-5) no minucioso levantamento que fez dos inventários processados de 1578 a 1700 no primeiro cartório de órfãos da capital: 
Há todavia um belo testemunho do quanto é conhecido o poema da raça. Aqui está o inventário de Pero de Araújo, processado em dezembro de 1616, no sertão de Paraupava, a mando do Capitão Antônio Pedroso de Alvarenga. A carência do material de escrita leva o escrivão do arraial Francisco Rodrigues da Guerra a aproveitar o primeiro retalho do papel que se lhe depara. Por uma dessas coincidências esplêndidas em que o destino se compraz, a última folha dos autos tem numa das faces os termos finais do inventário e na outra a cópia manuscrita de algumas estrofes camoneanas. São aquelas, precisamente, em que, depois de terem passado por calmas, tormentas e opressões, e transposto o limite aonde chega o Sol, se aprestam os portugueses a investir o cabo Tormentório.  
Villalta (2002:375), empolgado com essa descoberta, chega a arriscar a seguinte indagação: “Teria o épico camoniano embalado a expansão bandeirante?”. Exageros à parte, vale notar que, dos poucos espólios em que encontrou livros, Alcântara Machado (1980:238) registra que Manuel Preto, o violento bandeirante, “é o único a levar consigo, para distrair-se, um naipe e dois livros velhos”. A corrida às jazidas auríferas descobertas em Minas Gerais (por volta da última década de 1690), as de maior expressão, seguidas pelas de Mato Grosso e Goiás, na segunda década do século XVIII, dará nova configuração populacional (ou depopulacional) a São Paulo. Esse novo ciclo econômico responderá pelo deslocamento em massa dos paulistas, e seus plantéis de índios, rumo à nova “Terra da Promissão”. A capitania sofreu um sério despovoamento. John Manuel Monteiro (2005:210) descreve o cenário dessas migrações coletivas:  
A corrida para as minas aprofundou a crise da escravidão indígena em diversos sentidos. Muitos paulistas, sobretudo aqueles que tinham poucos escravos, migraram para as Gerais, redundando num êxodo considerável de mão-de-obra local, o que se tornou assunto tanto nas reuniões das câmaras municipais quanto na correspondência de funcionários da Coroa. De fato, o que se percebe  na documentação local, sobretudo nos inventários de bens, é um declínio vertiginoso na concentração de mão-de-obra indígena na região.
Nazzari (2001:96) também se deteve na pesquisa documental sobre o assunto: As expedições do século XVIII em busca do ouro afetaram a economia de São Paulo de maneira muito diferente do que as bandeiras do século anterior. As expedições do século XVII haviam proporcionado uma infusão de mão-de-obra a essa economia, o que levou ao aumento de produção e a um desenvolvimento gradual, enquanto as expedições em busca do ouro ocasionaram um êxodo de pessoas e de bens. (...) O êxodo de muitos paulistas, inicialmente com grande número de índios e, depois, com muitos escravos africanos, resultou em escassez de mão-de-obra em São Paulo.  
Esse despovoamento em favor das minas trará novo perfil a São Paulo quando muitos paulistas voltarem enriquecidos: o aumento do padrão de vida. Bruno (1966:83):
Deve-se assinalar, de outra parte, que a despeito de não ter acusado, esse povoamento, em termo de áreas territoriais ocupadas, uma escala de grandes proporções, foi bastante sensível o crescimento de São Paulo nessa fase de sua formação [a partir do primeiro terço do século dezoito]. E um dos fatores de maior importância nesse crescimento excepcional foi o retorno dos paulistas que haviam até então emigrado para as zonas de ouro, e que voltavam para sua terra com as famílias, os agregados e os escravos, para se dedicarem a atividades de comércio (pois São Paulo se constituíra, no dizer de um pesquisador, na retaguarda econômica das minas) ou mesmo de lavoura ou de pastoreio. Não foram poucos os antigos mineradores que largaram os seus almocafres e os seus carumbés, nas jazidas esgotadas. 
O exame dos inventários da época revela um enorme salto desde as peças mais triviais aos mobiliários que guarneciam as casas. É o que demonstra Alcântara Machado (1980:94), descortinando a cornucópia de fartura e vaidade em que tinham se transformado as até então austeras e parcimoniosas famílias paulistas: senhoras de gargantilhas, afogadores, cruzes, crucifixos e esgaravatadores de ouro e pedras preciosas, vestidos de seda, lã, camelão, serafina, purputuana, partudo, milanesa, e homens de casacas forradas de tafetá, gibões de veludo, capinhas de pano roxo, alamodas de chamalote vermelho, chapéus pintados a óleo, espadas de vestir, bastões com engastes de prata, desfilam por uma comunidade ciosa de seu progresso, enfatuada de sua riqueza que alcança até os fâmulos a princípio: 
O descobrimento das minas traz para todos a fartura, e o luxo deixa de ser um privilégio de escol, infiltrando-se nas classes inferiores e sobretudo entre as cativas de estimação. Para impedir escândalo tamanho a ordem régia de 20 de fevereiro de 1696 proíbe que as escravas ‘de todo esse Estado do Brasil, em nenhuma das Capitanias dele, possam usar de vestido algum de seda, nem se sirvam de cambraias ou de holandas, com rendas ou sem elas, para nenhum uso, nem também de guarnições de ouro ou prata nos vestidos’. 

Quanto ao mobiliário, Bruno (1966:78-9) mostra também a evolução: 
Excelentes móveis que seriam (de acordos com dados que aparecem nos inventários do tempo) bufetes de jacarandá marchetados de marfim, recobertos de panos de palha. Escritórios com gavetas e fechaduras. Arquibancos, cadeiras e tamboretes tauxiados de latão. Espelhos dourados ou de tartaruga, nas paredes. (....) 
O mesmo enriquecimento se refletiu nos utensílios de que puderam dispor em suas casas os moradores de maiores posses. Embora fosse ainda os mais comuns, na generalidade das casas, os velhos e rústicos vasilhames de barro da terra, as gamelas de pau e as combucas – nas casas mais ricas começaram a poder se ostentar, em escala maior, objetos importados da Europa, notadamente baixelas de prata.  
Nessa nova São Paulo, ensoberbecida pelo fausto e pela chegada de novos portugueses após a Restauração, não havia espaço para uma língua geral a refletir sua cultura: a língua portuguesa crioulizada começa o caminho inverso em direção ao superstrato. (Rosa Virgínia Mattos e Silva (2004:154), depois de passear pelas concepções teoréticas que tentam explicar a diferença entre o português americano e o europeu, termina por admitir ter havido uma crioulização “leve” no passado brasileiro.) Um superstrato que demanda explicação. Não se trata, evidentemente, da língua portuguesa pré-setecentista do conservadorismo de uma vertente lingüística, capitaneada por Serafim da Silva Neto, cuja metodologia de investigação se funda em princípios da dialetologia românica tradicional, em que aquele filólogo era reconhecidamente uma grande autoridade. Aliás, pode-se usar aqui a nomenclatura empregada pela citada Autora baiana, sem que isso altere a substância do fenômeno: trata-se de um português geral brasileiro em formação, “que teria como falantes principais os indígenas remanescentes que se integraram à sociedade nacional” (2004:100). Isto é, local, in casu. O português a que se dirigem os indígenas é aquele fruto da transmissão lingüística em situação de exclusiva oralidade e de aquisição imperfeita, o que pressupõe simplificação das formas em cotejo com o europeu. O português culto não é, portanto, o falado pelos paulistas, como repetidas vezes tem sido dito aqui, mesmo porque, como novamente adverte Rosa Virgínia Mattos e Silva (2004:71), ele “só começará a definir-se da segunda metade do século XVIII pra cá, uma vez que essa variante culta passa necessariamente por questões relativas à escolarização, ao uso escrito e sua normativização”. A escolarização é, portanto, o divisor de águas quanto à usualidade do português culto no Brasil, ainda que se torne uma variante diastrática reduzida a pequenos círculos de  letrados. Mas, em São Paulo, a implantação de um planejamento educacional ficou seriamente comprometida, talvez mais do que em outras Capitanias, com as medidas pombalinas de expulsão dos jesuítas e decretação da obrigatoriedade do ensino da língua portuguesa. Aí a situação ficou ao largo de qualquer preocupação governamental, ou seja, como adverte Banha (1978:27), a Capitania de São Paulo se tornou “a grande ausente neste plano de implantar o sistema educativo que faria esquecer às populações o método tradicional de dois séculos, fomentado pela Companhia de Jesus”. Villalta (2002:357), apoiando-se em Maria Beatriz Nizza da Silva, também descreve um quadro desolador:
As reformas desenvolvidas a partir de Pombal agravaram a situação da educação escolar ainda mais: na medida em que havia poucas aulas régias e em que as disciplinas, via de regra, não eram oferecidas em todas as vilas e cidades, os interessados em instruir-se tinham que se deslocar por vários locais. Em 1818, quando as reformas já estavam sedimentadas, apenas 2,5% da população masculina livre, em idade escolar, era atingida pelas aulas régias em São Paulo, situação que devia ser similar à do Brasil em geral.
  Num artigo de sua especialidade, Maria Luiza Marcilio (2004:261), conhecida por ter sido uma das pioneiras, no terreno da historiografia brasileira, na utilização do método quantitativo da demografia, brandindo dados estatísticos, é ainda mais incisiva:
A população da Cidade de São Paulo foi particularmente prejudicada com a expulsão dos jesuítas em 1759. Seu Colégio, que ocupava o centro da vida cultural do pequeno burgo, desmantelado, desorganizou o ensino por várias décadas. Quando o governador, Morgado de Mateus, chegou na Cidade, em 1765, enfrentou sérias dificuldades para encontrar um cidadão alfabetizado para cumprir funções administrativas em sua secretaria de Governo: “Não achei quem tivesse letras, que ao menos por remédio, pudesse suprir esta falha”, lamentava o governador. A população da Cidade era quase analfabeta na vida do século XIX. Apenas entre 10% e 20% dos chefes de domicílio podiam assinar seu nome, nos primeiros anos dos oitocentos. Um provável reflexo disso se faria sentir por ocasião da criação da Faculdade de Direito de São Paulo, que inaugura a existência sistemática da literatura em São Paulo, segundo Antônio Cândido (2002:140 e 147): sua locação sofreu restrição por ocasião dos debates legislativos, que aconteceram tanto na Assembléia Constituinte em 1823 quanto na Assembléia Legislativa a partir de 1826, tendo sido argüido pelo Deputado Teixeira de Gouveia, defendendo a instalação da Faculdade em Minas Gerais, que “é mais apurado o dialeto que se fala em Minas do que em São Paulo”, informa Alberto Venancio Filho (1982:18)23. Batendo-se pela universidade única no Rio de Janeiro saiu-se Silva Lisboa, entre outros argumentos, com “a pureza e pronúncia da língua portuguesa” na Corte, informam ainda os mesmos Autores. Segundo Lisboa, quanto a São Paulo, “a mocidade do Brasil, fazendo aí os seus estudos, contrairia pronúncia mui desagradável”, relata José Honório Rodrigues (1985:47). Houaiss (1992:149) conclui: “O incidente da instalação das duas faculdades de direito – em Recife e em São Paulo – mostra que havia vigilância de cúpula quanto ao particular da pronúncia e correção da fala”
Por último, vale lembrar que a população livre de São Paulo, em 1.767, era de 14.760 e a população escrava, de 6.113, informa Nazzari (2001:34), citando dados demográficos colhidos em Maria Luiz Marcílio. A historiadora norte-americana também informa (2001:99) a chegada de novos imigrantes portugueses no século XVIII. É ela ainda, nesta última página, que traz um dado estatístico relevante em relação à segunda metade do século XVIII:
 Em 1765, os escravos constituíam menos da terça parte da população da cidade. Não fora essa a proporção no século anterior. Durante todo o século XVII, os índios a serviço da elite paulista representavam quatro quintos dos homens armados de São Paulo. Supondo que a proporção na população total fosse a mesma que entre os homense armados, e supondo que homens brancos significasse homens livres e índios significasse homens não-livres, vemos que a proporção entre livres e não-livres passara de um livre para quatro não-livres, no século XVII, para duas pessoas livres por escravo em meados do século XVIII.
Esses dados apontam para a inversão no contingente demográfico da Cidade de São Paulo no século XVIII em comparação com os séculos anteriores. Além, portanto, do afluxo de novos imigrantes portugueses, o número de libertos aumentou consideravelmente. O Alvará de 08 de maio de 1758 tornou os índios absolutamente livres. Isso já não significava muita coisa para os índios ex-escravos, já imersos na cultura branca, onde, embora marginalizados na quase totalidade dos casos, aprenderam a assimilar os valores dela, inclusive quanto à língua. Os novos imigrantes portugueses constituíam a maioria dos comerciantes, a essa época. Era a classe que havia se tornado os “habitantes mais ricos” de São Paulo (NAZZARI, 2001:102) e, por não empregarem gente da terra, como informa uma carta do Marquês de Lavradio citada pela Autora, atraía a vinda de novos portugueses. 
Fonte: JOÃO BATISTA DE CASTRO JÚNIOR "A língua geral em São Paulo: instrumentalidade e fins ideológicos. "https://repositorio.ufba.br/ri/bitstream/ri/16201/1/Jo%C3%A3o%20Batista%20de%20Castro%20J%C3%BAnior.pdf

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