7.5 A LÍNGUA FALADA PELOS BANDEIRANTES
A orientação ex autorictate que se instalou sobre a língua falada pelos
bandeirantes demonstra o difícil equacionamento da questão da língua efetivamente falada
pelos paulistas. Historiadores e lingüistas como Teodoro Sampaio (1987:71), Jaime
Cortesão (1958:360), José Honório Rodrigues (1985:22), Sílvio Elia (1979:153), Sérgio
Buarque de Holanda (2002:122-33), Gladstone Chaves de Melo (1946:33), Aryon
Rodrigues (1986, 102; 1996), Paul Teyssier (2001:94) e Marcos Bagno (2005:90-1)
afirmam que os bandeirantes falavam a língua tupi; Joaquim Ribeiro (1946:117-19) é uma
das poucas vozes em contrário, argumentando que “a linguagem popular era a portuguesa”
e que os desbravadores “falavam com igual facilidade o português e o tupi”, porém o seu
fio argumentativo, fundado na persistência de vocábulos quinhentistas no dialeto caipira,
não é concludente nem convincente, embora Gladstone (1946:33), em nota, considere como
“sérios e ponderosos” esses mesmos argumentos utilizados por Ribeiro na obra Origem da
língua portuguesa.
Essas vertentes doutrinárias dão por uma congenial imiscibilidade das línguas,
ainda que coexistam num mesmo território, algo como água e óleo que não se misturam
nunca, conforme já dito na introdução a este estudo. Condicionantes de ordem social, já
expostas, demonstram, entretanto, o contrário da tese majoritária, apontando para a direção
de que eles, descendentes dos primeiros colonos que primavam pelo uso do português,
falavam já um português crioulizado, embora diafasicamente escrevessem alguns em
escorreito português, ou seja, relativamente simplificado em sua estrutura gramatical, que
certamente pode ser chamado de antecedente histórico do dialeto caipira, em que há
marcada erosão da morfologia flexional, como mostra Amadeu Amaral em sua famosa obra
O dialeto caipira (1920), num processo precedido pela simplificação das formas
gramaticais a exemplo do que ocorreu na passagem da língua tupinambá para o status de
língua geral falada na boca de aloglotas até a ascensão do português motivada pela
institucionalização organizativa, como nota Aryon Rodrigues (1986:105): “As maiores
alterações sofridas pelo Tupinambá no processo de tornar-se Língua Geral resultam de uma
progressiva simplificação das formas gramaticais, acompanhada de reorganização da
construção das frases”.
A deficiência e fragilidade de ambas as posições explicam-se pela ausência de
estudos de línguas em contato entre nós, o que é relativamente recente. Mas só essa
perspectiva é capaz de lançar luzes sobre todo o período que vai da organização política de
São Paulo até o desaparecimento por completo da língua geral. Como se viu, o índio foi
pouco a pouco se convencendo da superioridade bélica do branco, procurando acomodar-se
à sua cultura e civilização, marchando rumo à sua própria maior valorização no tornar-se
‘crioulo’ e ‘ladino’. Outros afluíram para uma economia que, num dado momento, saturouse
da mão-de-obra oferecida, instalando-se nas cercanias da cidade em contato com brancos
também desaquinhoados pelo sistema de concentração econômica já muito visível.
Um outro fato histórico quadra como argumento de difícil superação da tese do
português como língua falada: da Câmara, cujas atas continuavam a ser escritas em
português, continuavam a brotar proibições e restrições quanto ao apresamento de certos
índios. A quem se dirigiam tais ordenações? A apresadores que não falavam a língua das
deliberações? Não consta que elas precisassem da mediação de intérpete para serem
entendidas.
Do ponto de vista lingüístico, portanto, a influência superstratal foi inequívoca,
dirigindo-se o índio rumo à branquização já ideologicamente defendida. Ocorreram,
portanto, dois fenômenos paralelos no panorama lingüístico da história de São Paulo
colonial: os brancos ex-indianizados que vieram da Vila de Santo André da Borda do
Campo, reunidos por Tomé de Sousa, transferiram-se para São Paulo com uma forte carga
lexical do tupi decorrente daquele contato. A utilidade desse inventário lexical era evidente
por si mesma: a sociedade escravista lubrificava suas engrenagens econômicas no contato
ordinário entre índios, traficantes e senhores.
Mas, em concomitância, a língua portuguesa institucionalizada politicamente já
começava a se impor como língua do conquistador, a que se foram alçando os índios de
diversas nações que acorriam, à força, em sua quase totalidade, ao mundo opressivo dos
brancos. Nessa fase, de longa duração, deu-se a crioulização do português que culminará no
processo inverso de descrioulização já adiantado na segunda metade do século XVIII. É
prefigurável que esse crioulo, marcado por numerosas unidades léxicas tupis absolutamente
necessárias, sobretudo quanto ao meio ecológico de espécies vegetais e animais
desconhecidas dos europeus, também fosse utilizado pela maioria da população iletrada Claro que no seu percurso existencial, esse crioulo sofreu gradações que iam de
maior a menor distanciamento do português, ou seja, num arco lingüístico-histórico que vai
do basileto ao acroleto, conceitos que são explicados por Hildo Honório do Couto
(1996:54):
A variedade lingüística mais distante da língua de superstrato, ou
seja, a variedade mais ‘pura’, tradicional, de crioulo é chamada
basileto. A variedade da língua dominante falada na região em
questão é o acroleto. Entre as duas, imbricando-se com elas e entre
si num continuum sem limites definíveis, há vários mesoletos.
É essa fenomenologia crioulizante que explica o famoso episódio do encontro
entre o bandeirante Domingos Jorge Velho e o bispo de Pernambuco em Palmares, em
1697, narrado por Ernesto Ennes em “As guerras dos Palmares”. Autores como Sérgio
Buarque de Holanda (2002:126), e mesmo Serafim da Silva Neto (1963:56), vêem nesse
episódio, apesar da desconfiança que esse relato lhes gera por ter sido feito por um clérigo
já ideologicamente preconcebido contra um inquisidor dos índios, um indício de certa
credibilidade para a afirmação do uso generalizado da língua geral em São Paulo, em
detrimento do português, no fim do século XVII.
Marcos Bagno (2005:91) menciona o episódio e o acolhe sem ressalvas,
abalançando-se, a afirmar, que a língua falada pelos bandeirantes era a “língua geral, língua
brasílica ou nheengatu (sic)”, o que é um equívoco ainda maior, já que a variante
amazônica surge em outro contexto histórico.
John Manuel Monteiro (2005:164) refere-se também a esse incidente coligido por
Ennes, e chega a dizer que se tratava de “um português colonial corrompido pela presença
de barbarismos africanos e indígenas”. Embora Rosa Virgínia Mattos e Silva (2004:80 e
95), no que é secundado por Lucchesi (2006), se refira a essa passagem de Monteiro
afirmando que ela repousa “em documentação arquivística ampla”, não se pode deixar de
assinalar que essa análise do respeitável historiador não tem remissão a nenhum suporte
documental, diferentemente de tantas outras que recheiam a obra. Além disso, a própria
menção a “barbarismos africanos” carece de razoabilidade, sabido que a vida no planalto
piratiningano, até então, era pouco afetada pela escravidão negra. Basta considerar, com
Alcântara Machado (1980:183) em sua minuciosa investigação de inventários paulistas, que
somente “em 1607 que aparece pela primeira vez um negro de Guiné. Estimam-no em
quarenta mil réis, soma exorbitante para a época”. Os tapanhunos, como eram chamados os
negros na língua geral, em oposição aos tapuitingas, gente branca, eram artigo caríssimo na
economia paulista. O próprio John Manuel Monteiro (2005:133) reconhece que os
paulistas, “praticamente sem capital e sem maior acesso a créditos, reconheciam a
impossibilidade de importar escravos africanos em número considerável”. Páginas antes,
ele também assinala que somente após 1640 é que alguns produtores de trigo “já tinham
iniciado a transição para a escravidão negra” (p.119). Ainda assim, a disparidade era grande
mesmo entre esses senhores de escravos, como se vê do plantel da propriedade de
Domingos da Rocha Couto que “em 1661, 24 negros escravos negros trabalhavam ao lado
dos 92 índios da fazenda” (p.119).
A historiadora norte-americana Muriel Nazzari (2001:97), que também fez
judicioso levantamento arquivístico por amostragem, informa o escassíssimo número de
escravos africanos no século XVII em São Paulo. Alfredo Ellis Jr, em A economia paulista, apud Nazzari (2001:314) mostra que “a proporção de africanos para índios em São Paulo
era de um africano para cada 34 índios, no século XVII, e de oito africanos para cada sete
índios, no século XVIII”.
Por outro lado, fora de São Paulo, nas múltiplas expedições de combate a que sua
reputação guerreira era convidada, seu convívio foi, na verdade, com índios, especialmente
no interior do Piauí e Paraíba, na região do Rio Piranhas. Combateu, no século XVII, ao
lado de outros bandeirantes paulistas, os índios tapuias Jaicó, Paiacu, Icó, Sucurus e Janduí,
verdadeiramente ou não acusados de aliança com os holandeses na afamada Guerra dos
Bárbaros. Detinha um plantel de cerca de 1.300 índios e oitenta brancos às vésperas de dar
combate ao Quilombo dos Palmares. “Em Piancó, em 1676, fundou um arraial, destruído
logo pelos cariris, mas que mais tarde reconstruiu, exterminando esses índios”, informa
Francisco Carvalho Franco (1989:429), autor cuja obra John Manuel Monteiro (2005:235)
reputa como “o melhor compêndio das expedições”. Não se vê, portanto, de onde se pode
tirar dado histórico de influência de línguas africanas na linguagem desse bandeirante
paulista que morreu entre 1703 e 1704.
Em suma: se desde os primórdios da colonização já se registra a presença de
negros escravos no Brasil, do que cuida expressamente Gândavo (1997:16), não se pode
falar, entretanto, de nenhuma influência lingüística deles no português na São Paulo dos
Seiscentos, pela exigüidade de sua presença demográfica. Até pelas datas da introdução das
primeiras peças em Piratininga se vê que é impertinente falar na presença de barbarismos
africanos na linguagem dos sertanistas, que, embora tivessem sido chamados a outras
regiões por suas habilidades guerreiras, sempre se faziam servir de contingente indígena em
suas expedições, como o admite o próprio John Manuel Monteiro em outra obra (2004:46),
retornando sempre a seu habitat ou quartel-general, que era São Paulo. Por outro lado, o
exame desse texto mais recente (2004:51) mostra quão confuso é esse enfoque de Monteiro,
que parece acreditar numa concomitância entre um português “salpicado de palavras e
expressões indígenas” ao lado de uma língua brasílica com “adaptações e corrupções pela
presença de outros idiomas no Planalto”, sem acenar para qualquer interação ou
interinfluência.
A análise do emblemático acontecimento, entre o bispo e o bandeirante, sob a
perspectiva crioulística tem explicação satisfatória, acrescendo-se que se o bandeirante era
capaz de falar o português, por haver escritos de seu próprio punho, não deve ter se
esforçado, como usualmente se faz na diafasia da língua escrita, em elevar-se à pureza da
língua aos ouvidos atilados do jesuíta cioso de seu bom português. Dissimulação suficiente
pra isso não faltava ao sertanista, do que se tem um bom exemplo no teor da carta
endereçada à Coroa, em 1694, que Boxer (1977:94) reproduz citando trecho da obra de
Ennes:
Primeiramente nossas tropas com q-êmos à conquista do gentio brabo
desse vestissimo sertão, não he de gente matriculada nos livros de
V.Magde. nem obrigado por soldo, nem pão de munição; são huas
agregaçoens q-fazemos algús de nos, entrando cada hu com os servos de
armas q-tem e juntos ao sertão desta cantinente não a cativar como
alguns hypocondriacos pretendem fazer cre a V. Mag., de senão adqueriu
o Tapuia gentio brabo e comedor de carne humana para o deduzir ao
conhecimento da urbana humanidade e humana sociedade à associação
Racional trato pa pr esse meio chegrem aquella lus de Deos e vao
trabalha quem os quer fazer anjos, antes de fazer homens e desses asse adquiridos, e reduzidos, engrossamos nossas tropas, e com elles
guerreamos aobstinados e renitentes, a se reduzirem: e ao dezpoiz nos
servirmos delles para as nossas lavouras; nenhuma injustiça lhes
fazemos, pois tanto he p às sustentarmos a elles e seus filhos como a nós
e aos nossos: isso bem longe de os cativar, antes se lhes faz hu
irremunerável serviço em os ensinar a saberem labrar, prantar, colher, e
trabalhar p seu sustento, couza q-antes q-os brancos lho ensinem, eles
não sabem fazer.
É sintomático que esse sertanista como disposição de última vontade, num lampejo de seus desatinos já nas vascas da agonia, quando certamente devem ter lhe assomado os demônios do remordimento de consciência, tenha ordenado rezar em seu favor 450 missas..., informa Alcântara Machado (1980:219). Há um outro evento histórico utilizado como argumento dessa usualidade da língua tupi. Trata-se do já citado incidente no âmbito do inventário do inventário de Brás Esteves Leme, dado a conhecer por Sérgio Buarque de Holanda (2002:125-6) em que o juiz de órfãos precisou se valer de um intérprete para tomar as declarações da filha do defunto. Na verdade, esse fato tem que ser tomado sob outra perspectiva: os depoimentos judiciais, por longa tradição que ainda persiste na modernidade, devem ser colhidos escoimados de qualquer ambigüidade ou conteúdo anfibológico. Em se tratando de alguém cuja língua era um crioulo, provavelmente basiletal, a existência de numerosos elementos lexicais do tupi era evidente. Bastam, entretanto, a refutar essa argumentação os documentos trazidos pelo próprio John Manuel Monteiro, e já referidos, que apontam para a facilidade do índio ladino em expressar-se em português por ocasião de tomada de seu depoimento em juízo. Se eram aptos a tanto, tais índios ladinos vivendo na sociedade paulista, é porque aprenderam, em situação de oralidade – claro – a língua portuguesa com o branco falante dela, embora por um processo de aquisição imperfeita. Natural, portanto, que a ouvidos pouco treinados, naquela híbrida realidade lingüística de São Paulo, a comunicação causasse estranheza, tal como aconteceu com Hercules Florence citado por Sérgio Buarque de Holanda em apoio de sua tese, o que, entretanto, se levada às suas últimas conseqüências, significaria que a transição da língua geral para o português se teria dado por saltos, o que contraria uma evidência das ciências sociais e lingüísticas de que língua alguma desaparece como que por encanto da boca de seus falantes. Mas Sérgio Buarque de Holanda (2002:125) parece ele mesmo advertir do risco de generalizar esses registros históricos para toda a sociedade paulista: “Nada impede, com efeito, que esses testemunhos aludissem sobretudo às camadas mais humildes (e naturalmente as mais numerosas) do povo, onde a excessiva mistura e a convivência de índios quase impunham o manejo constante de seu idioma”. Um outro argumento, o da toponímia tupi fixada pelos bandeirantes para além dos domínios paulistas, também não prova a usualidade comunicativa da língua tupi, mas apenas, o que não se nega aqui, a influência lexical da língua nativa no processo de crioulização do português. Um achado historiográfico de John Manuel Monteiro (2005:183), o inventário de Salvador Moreira, de 1697, demonstra ter existido, entre esse indivíduo e um certo Braz Moreira Cabral, um desentendimento pelo descumprimento que este dera ao empréstimo de dois índios “para servir de intérpretes numa expedição de apresamento do capitão Braz Moreira Cabral” (É curioso, entretanto, o que pode ser explicado pela ausência de acuidade lingüística para ter sua atenção chamada para um problema que refoge à linha de pesquisa do Autor, que mesmo diante da evidência dessa informação, Monteiro parece não ter atentado nela ao formar a opinião de que os sertanistas eram “conhecedores da língua geral” (2005:87) Esse documento confirma a hipótese do texto: a crioulização, no caso já acroletal a caminho da descrioulização, produzira uma língua sem aptidão para a intercomunicação entre a sociedade portuguesa e aportuguesada com falantes nativos e exclusivos da língua de base tupi: os índios a serem aprisionados.
É sintomático que esse sertanista como disposição de última vontade, num lampejo de seus desatinos já nas vascas da agonia, quando certamente devem ter lhe assomado os demônios do remordimento de consciência, tenha ordenado rezar em seu favor 450 missas..., informa Alcântara Machado (1980:219). Há um outro evento histórico utilizado como argumento dessa usualidade da língua tupi. Trata-se do já citado incidente no âmbito do inventário do inventário de Brás Esteves Leme, dado a conhecer por Sérgio Buarque de Holanda (2002:125-6) em que o juiz de órfãos precisou se valer de um intérprete para tomar as declarações da filha do defunto. Na verdade, esse fato tem que ser tomado sob outra perspectiva: os depoimentos judiciais, por longa tradição que ainda persiste na modernidade, devem ser colhidos escoimados de qualquer ambigüidade ou conteúdo anfibológico. Em se tratando de alguém cuja língua era um crioulo, provavelmente basiletal, a existência de numerosos elementos lexicais do tupi era evidente. Bastam, entretanto, a refutar essa argumentação os documentos trazidos pelo próprio John Manuel Monteiro, e já referidos, que apontam para a facilidade do índio ladino em expressar-se em português por ocasião de tomada de seu depoimento em juízo. Se eram aptos a tanto, tais índios ladinos vivendo na sociedade paulista, é porque aprenderam, em situação de oralidade – claro – a língua portuguesa com o branco falante dela, embora por um processo de aquisição imperfeita. Natural, portanto, que a ouvidos pouco treinados, naquela híbrida realidade lingüística de São Paulo, a comunicação causasse estranheza, tal como aconteceu com Hercules Florence citado por Sérgio Buarque de Holanda em apoio de sua tese, o que, entretanto, se levada às suas últimas conseqüências, significaria que a transição da língua geral para o português se teria dado por saltos, o que contraria uma evidência das ciências sociais e lingüísticas de que língua alguma desaparece como que por encanto da boca de seus falantes. Mas Sérgio Buarque de Holanda (2002:125) parece ele mesmo advertir do risco de generalizar esses registros históricos para toda a sociedade paulista: “Nada impede, com efeito, que esses testemunhos aludissem sobretudo às camadas mais humildes (e naturalmente as mais numerosas) do povo, onde a excessiva mistura e a convivência de índios quase impunham o manejo constante de seu idioma”. Um outro argumento, o da toponímia tupi fixada pelos bandeirantes para além dos domínios paulistas, também não prova a usualidade comunicativa da língua tupi, mas apenas, o que não se nega aqui, a influência lexical da língua nativa no processo de crioulização do português. Um achado historiográfico de John Manuel Monteiro (2005:183), o inventário de Salvador Moreira, de 1697, demonstra ter existido, entre esse indivíduo e um certo Braz Moreira Cabral, um desentendimento pelo descumprimento que este dera ao empréstimo de dois índios “para servir de intérpretes numa expedição de apresamento do capitão Braz Moreira Cabral” (É curioso, entretanto, o que pode ser explicado pela ausência de acuidade lingüística para ter sua atenção chamada para um problema que refoge à linha de pesquisa do Autor, que mesmo diante da evidência dessa informação, Monteiro parece não ter atentado nela ao formar a opinião de que os sertanistas eram “conhecedores da língua geral” (2005:87) Esse documento confirma a hipótese do texto: a crioulização, no caso já acroletal a caminho da descrioulização, produzira uma língua sem aptidão para a intercomunicação entre a sociedade portuguesa e aportuguesada com falantes nativos e exclusivos da língua de base tupi: os índios a serem aprisionados.
É também pertinente perceber que o desenvolvimento político-econômico daquela
vila vem acompanhado de influências recebidas pelo português aí falado vindas do
espanhol, língua de outro branco conquistador, nos dois primeiros séculos. O fato é que,
ainda que por fogachos intermitentes, a língua castelhana estava sempre presente ali, sendo
considerada superior até mesmo ao português por muitos lusos, muito embora a figura
icônica da literatura espanhola, Cervantes, ao elogiar a língua valenciana, tenha dito: “Con
quien sola la portuguesa puede competir en ser dulce y suave”. Lope de Vega, em
“Descripción de la tapada de Vila Viçosa” escreve: “Así cantando fue la Portuguesa / con
celebrado aplauso larga historia, / a quien por la dulzura que profesa / entrambas
concedieron la victoria”, apud Pilar Vásquez Cuesta (1988:104). (Esse é um assunto que
renderia um novo tema dissertativo. Mas convém ainda acrescer, ainda que para regalo de
um bairrismo lingüístico, o que o poeta francês Lamartine (1790-1869) disse da língua
portuguesa: “langue plus latine et plus belle que l’espagnole”, no que foi seguido pelo poeta
americano Henry Longfellow (1807-1882) que afirmou: “the portuguese is softer and more
musical than the spanish”, apud Gilberto Freyre (1979:62)
Para essa influência do castelhano concorrerá a presença de espanhóis em
Piratininga, que é fato incontestável entre historiadores, especialmente após 1580, com a
unificação das duas coroas em favor de Felipe II. Frei Gaspar da Madre de Deus
(1975:134) chega a ir mais além quanto aos imigrantes que se estabeleceram no planalto:
Não era de admirar que, além dos portugueses, viessem os espanhóis,
holandeses e italianos estabelecer-se num país onde os seus habitantes
desfrutam as comodidades expendidas por Charlevoix; porque El-Rei
Católico nesse tempo era soberano de Espanha, Portugal, Nápoles, Milão
e Países Baixos, e os vassalos deste príncipe podiam habitar em qualquer
parte dos seus Domínios.
Jaime Cortesão (1958:289), a esse respeito, também escreve:
Não faltam
igualmente espanhóis que durante esse período se
fixaram no Brasil, mas estes em número bem menor
que os portugueses e luso-brasileiros na América
Espanhola. Apenas em São Paulo eles constituíram
parte apreciável na população da cidade e devem ter
contribuído para diferenciar o paulista, como
entidade regional na América portuguesa.
Nada autoriza a pensar, entretanto, que esse relacionamento fosse cordial entre
paulistas e espanhóis, como afirma Taunay em São Paulo no século... (2003:370):
Em São Paulo, desde os primeiros anos, vieram numerosos espanhóis
fixar-se, fenômeno muito natural se atendermos à série contínua de
navegações castelhanas dirigidas ao Rio da Prata, a alegria com que
na pequena vila se recebiam os novos moradores, a vida livre que
nela imperava e, afinal, o fato de, de 1580 em diante, serem todos os
iberos súditos do mesmo monarca.
Esse mesmo Autor acrescenta linhas depois, discorrendo inclusive sobre a
influência lingüística (2003:372): “A essa afusão abundante de sangue castelhano atribuem
escritores a gravidade e a reserva reinante entre os antigos paulistas que bastante os
diferenciavam dos demais brasileiros, o sotaque especial característico do seu falar pausado
e uma mentalidade de feição muito sua”. Esse contato foi sempre marcado por oscilações,
em que as desavenças afloravam por causa de conflitos de interesse e disputas bairristas de
antanho. Ainda estava presente na São Paulo do primeiro século, tanto que ela o registrou
nas atas da Câmara em 1585, o episódio em que oitenta portugueses sob as ordens de Pero
de Góis, lugar-tenente do donatário Martim Afonso de Sousa, foram mortos, em 1534, por
um tal Rui Mosquera, remanescente da esquadra de Caboto, como narra Cortesão
(1955:151).
O assunto, apenas abordado superficialmente por Taunay, tem maior
profundidade, inclusive do ponto de vista lingüístico, até porque há registro de que também
“já em 1552 vinha gente do Paraguai e que era freqüente a comunicação entre as duas
colônias, portuguesa e espanhola”, conforme Serafim Leite, apud Sérgio Buarque de
Holanda (1978:94). John Manuel Monteiro (2005:107) também situa entre 1620 e 1640
essa imigração de hispano-paraguaios, “sendo que estes últimos integraram-se às famílias
Bueno, Camargo e Fernandes”. Villalta (2002:344), reproduzindo o que afirma Gabriel
Soares de Sousa, equivocadamente limita essa influência lingüística do castelhano ao
período entre 1580 e 1640, quando teriam acorrido ao Brasil “napolitanos, milaneses,
neerlandeses e espanhóis, provenientes de regiões submetidas aos reis da Espanha”.
No plano metropolitano, de que deve ter havido reflexos no Brasil, existiu, como
se põe a descrever meticulosamente Pilar Vásquez Cuesta (1988), penetração da língua e
cultura castelhanas na corte portuguesa desde 1479 (1988:10, 21-3, 32-3), ou seja muito
antes da instituição da monarquia dualista, como ela mesmo escreve: “Enfim, o cultivo do
castelhano generalizara-se tanto em Portugal por essa época que resulta verdadeiramente
excepcional encontramos escritores que não tenham sucumbido alguma vez à tentação de
usá-lo”. Essa influência estava explícita na obra literária do criador do teatro português, Gil
Vicente. Isso é explicável porque o castelhano era língua da moda, que, como adita a
Autora, “além de distinguir da plebe, podia proporcionar poder e riqueza”. Sérgio Buarque
de Holanda, em artigo intitulado “Teatro Jesuítico”, escrito para a Folha da Manhã em 26
de setembro de 1951, relata:
Nas peças de Gil Vicente, que escrevera bem antes de se acentuar em
Portugal o nacionalismo lingüístico - manifestado mais tarde com
Antonio Ferreira - já se notou que, onde aparece o bilingüismo, o
castelhano surge de preferência na fala das personagens de alta categoria.
E de modo geral a observação serve para se determinar o caráter de peças
inteiras. Não é por acaso, certamente, que na "Trilogia das Barcas", só a
230
da Glória, onde entram o "Papa", o "Cardeal", o "Arcebispo", o
"Imperador", o "Rei", o "Duque" e o "Conde", é toda em espanhol. Ao
passo que nas do "Inferno e Purgatório", em que se figura gente mais
miúda, o vernáculo domina. Isso é bem explicável quando se considere
que, ao tempo de Gil Vicente, era o castelhano, em Portugal, idioma
dignificante e nobre, próprio, por isso, dos homens de prol, sobretudo da
Corte. E assim, os diálogos nessa língua teriam significação em muitos
pontos comparável à dos diálogos em francês de certos romances russos
do século XIX.
No mesmo sentido escreveu Magaldi (1962:18): “Sabemos que, na obra de Gil
Vicente, o emprego do espanhol era conseqüência dos hábitos da corte: as classes elevadas
falavam o castelhano, enquanto o vernáculo era o idioma do povo”. Esse cortejo lingüístico
projetou efeitos prospectivos no Brasil, como se vê das duas peças, “Hay amigo para
amigo” e “Amor, engaños y celos”, do primeiro comediógrafo brasileiro, o baiano Manuel
Botelho de Oliveira (1637-1711), que foram escritas em espanhol, como informa o mesmo
Magaldi (1962:25).
Efetivamente, ao longo da monarquia dualista essa infiltração se fará bem mais
intensa, atravessando todo o período de sessenta anos, durante o qual certas atividades
culturais, como o teatro, eram praticadas exclusivamente em castelhano em Portugal,
continua Cuesta (1988:82-3, 86-9): “É esta a única conseqüência verdadeiramente grave da
invasão de Portugal pelas companhias de comédias espanholas a partir da entrada no Reino
de Filipe II: a quebra da tradição teatral portuguesa, que tardará mais de dois séculos e meio
a recompor-se”.
Prossegue essa Autora afirmando que isso gerou um ‘bilingüismo diglóssico’,
que, não sendo fruto de uma ideologia política (1988:89 e 95), produzirá marcas que
tardarão a desaparecer mesmo depois da Restauração (1988:142-4), até que no século
XVIII o francês passe a exercer um influxo exclusivista, assim como ao barroco sucede a
estética neoclássica. Equivoca-se parcialmente Cortesão (1958:78), que, apoiando-se no
historiador Queiroz Veloso, reproduz a afirmação deste de que “todas as características da
soberania – leis, governo, administração da justiça, moeda, língua – tudo Portugal
conservou”. Na verdade, essas promessas nunca saíram do papel, ou seja, do “Memorial de
las gracias y mercedes que el Rey mi Señor concederá a estes Reinos cuando fuere jurado
por Rey y Señor delles en que se incluyen las que les concedió el Sereníssimo Rey Don
Manuel el año 99 y otras de gran importancia para el bien universal y particular dellos”,
como o demonstra Pilar Vásquez Cuesta (1988: passim).
Apesar da inconformação popular com o cingir Felipe II a coroa portuguesa, até
mesmo porque nunca cumpriu nenhuma de suas promessas, sua resistência se limitou,
durante muito tempo, ao sebastianismo messiânico e providencialista que redimiria
Portugal transformando-o no Quinto Império, segundo anunciariam as coplas do Bandarra,
um sapateiro com supostos poderes divinatórios, e nas quais até o Padre Vieira (1608-1697)
acreditou, prestidigitando seu cumprimento em diversas manipulações argumentativas. Se a
alta burguesia, interessada em expandir-se através do império comercial espanhol, a
nobreza e o alto clero apoiavam a pretensão de Felipe II, não era difícil imaginar que o
processo de deserção e colonização lingüísticas a que foi submetido o português chegasse
também ao Brasil, incluindo Piratininga, onde a ordem religiosa mais atuante era a jesuítica, apoiadora de primeira hora do monarca espanhol, como relata Vásquez Cuesta
(1988:10 e 33).
Entre esses missionários havia muitos espanhóis de origem, a exemplo de João
Azpilcueta Navarro, que veio na primeira expedição, a de 1549, José de Anchieta, canarino,
ambos dominavam o castelhano embora de ascendência basca, e Antônio Blásques, tendo
ambos os últimos integrado a terceira expedição, de 1553, informa Serafim Leite (2004-I:
204). O próprio Nóbrega, português de origem, quando escrevia aos Padres Gerais Inácio
de Loyola e Diego Laynes, fazia-o em espanhol, até porque estudou em Salamanca, embora
se servisse dos amanuenses Antônio Blásques e José de Anchieta para dar acabamento
gramatical às epístolas, como informa Serafim Leite na introdução às Cartas do Brasil e
mais escritos do P. Manuel da Nóbrega (2000:34-5). José de Anchieta, embora falasse
fluentemente o português, não escrevia, diferentemente de Nóbrega, nessa língua, mas sim
em latim, como afirma Serafim Leite (1953b:68).
Assim, a penetração de povos de língua espanhola no planalto efetivamente
existiu, como se vê da incorporação à história de São Paulo de figuras como Francisco
Ramires, sevilhano, que chegou com seu filho Bartolomeu Bueno a São Paulo em 1571;
Baltazar de Godoy e Francisco de Saavedra, genros de Jorge Moreira; Jusepe de Camargo,
Martim Tenório de Aguilar, falecido em 1603, e Bartolomeu de Quadros – todos citados
por Taunay (op.cit., p.371-2). “Os castelhanos e flamengos começam a estabelecer-se aqui.
Os Ordonhez, Laras, Buenos, Ribeira ou Rivera, espanhóis, vêm desde esse tempo, bem
como os Lemes, Góis e depois os Taques eram de procedência flamenga”, escreve Teodoro
Sampaio (1978:168). Este mesmo Autor (p.171) escreve que “as transações com as colônias
espanholas do Rio da Prata começaram a avultar depois da união à coroa de Espanha. O
açúcar, o algodão, as caixas de marmeladas, e até escravos eram artigos de comércio com
Buenos Aires”.
Villalta (2002:344) também se refere a espanhóis que se estabeleceram “de modo
expressivo em São Paulo, [onde] exerceram seus ofícios, galgaram cargos públicos,
tornaram-se ‘homens bons’ e casaram-se, até mesmo com índias, como era costume na
terra”. John Manuel Monteiro (2005:69) também enfrenta a questão:
Se é verdade que os paraguaios e paulistas conseguiram forjar uma
relação harmoniosa nas terras indefinidas – às custas dos Guarani, é claro
–, tal relação foi desestabilizada pelos missionários jesuítas que se
instalaram na região a partir de 1609 (...). Desde o princípio, os jesuítas
cultivaram péssimas relações com os colonos de ambos os lados.
Quanto às relações entre ambos povos ibéricos na América, mesmo no período da
monarquia dual, o que se pode dizer é que foram, em certos momentos, de cautela e
suspeição recíproca. Nóbrega em carta escrita de Salvador em agosto de 1557 confirma isso
ao relatar:
Ajuntava-se a isto parecer-me que estando lá os da Companhia se
apagariam alguns escândalos que os castelhanos têm dos portugueses
e, a meu parecer, com muita razão, porque usaram muito mal com
uns que vieram a São Vicente, que se perderam de uma armada do
Rio da Prata.
Em outros momentos, essa beligerância alternava-se com solidariedade contra o
índio e mesmo contra franceses, como revela Nóbrega em carta escrita da Bahia a 5 de
julho de 1559 (2000:353), em que relata que “o capitão do Paraguai se mandou oferecer por
vezes que sujeitaria os Tupis a São Vicente, se lhe dessem licença, e querem com os
portugueses trato e conversação, e ajudá-los contra o gentio e outros inimigos”.
Efetivamente, entretanto, a influência da língua espanhola existiu sobre a
portuguesa falada em São Paulo nos primeiros dois séculos, para o que concorreu a
ausência de indisposição lingüística dos portugueses e brasileiros que aí habitavam, além
do senso de acomodação dos próprios espanhóis, como se lê da grafia aportuguesada de
muitos de seus nomes, embora a colonização lingüística que teve lugar em Portugal não
tenha se reproduzido de forma especular nas incultas terras dos brasis, especialmente a
paulista, onde o palco de manifestações culturais se limitava ao ingente esforço
dramatúrgico de Anchieta, cujas peças eram vazadas em português, castelhano e tupi,
lembra Francisco Assis Fernandes (1980:82), mostrando o respeito pela convivência
lingüística, em que havia uma influência recíproca, até pela alta consideração e respeito em
que os jesuítas de Portugal eram tidos pelos paraguaios, especialmente Nóbrega, como o
demonstra uma passagem da “Relación Breve”, de Domingos de Irala, em que o
Governador do Paraguai dava a conhecer, em 1556, ao Marquês de Mondejar, “a
conveniência que havia em ganhar-se o favor desse jesuíta ‘por ternerle respecto y
acatamiento los dichos topis ques gente indomita’”, narram Sérgio Buarque de Holanda
(1978:94) e Serafim Leite, este em notas às cartas de Nóbrega (2000:199).
Não parece correto afirmar-se que houve uma concorrência com o espanhol, como
quer Luiz Carlos Villalta (2002:334). Deu-se aí, na verdade, nessa relação de vicinalidade
lingüística, uma situação de adstrato, em que nenhuma das línguas intervenientes
desaparece. No caso de Piratininga, é mais apropriado falar-se, especificamente, em
“adstrato superposto”, que, segundo M. Valkhoff, apud Bassetto (2001:164), “designa a
influência entre duas línguas correntes em territórios limítrofes”, já que não ocupavam
simultaneamente o mesmo território – a não ser em situações interseccionais de caráter
excepcional –, a exemplo do “antigo castelhano e o basco, as línguas da Gália e o latim da
‘Província’, até a conquista de Caio Júlio César (51-50 a.C), as línguas germânicas e o
latim antes das invasões e o dialeto romeno da Transilvânia e o húngaro desde o tempo dos
Habsburgos”, arremata esse Autor.
Num trecho do auto Na Vila de Vitória, Anchieta, apud Magaldi (1962:18),
escreve:
Pergunta o Governo à ‘Villa de Victoria’: ‘pois que sois de Portugal,/
como falais castelhano?’ - ao que a interlocutora responde: ‘Porque
quiero dar sua gloria/ a Felipe, mi señor,/ el cual simpre es vencedor,/ y
por él habré victoria/ de todo perseguidor./ Yo soy suya, sin porfia,/ y él
es mi rey de verdad,/ a quien la suma bondad/ quiere dar la monarquia/
de toda la cristiandad.
Esse passo do teatro anchietano, que foi escrito com passagens em espanhol,
mostra a existência de uma comunidade multilingüe em Piratininga e não deve ser
entendido somente como uma homenagem a Felipe II, monarca das duas coroas, como
pensa Magaldi (1962:18), já que uma leitura de outras partes do mesmo auto entremostra
não existir a exclusividade dessa conexão feita pelo teatrólogo. É de Sérgio Buarque de Holanda a seguinte análise, extraída do artigo intitulado “Teatro Jesuítico”, publicado no
jornal Folha da Manhã, em 26 de setembro de 1951:
Nas obras de Anchieta, que acaba de publicar o Museu Paulista, a
variedade das línguas utilizadas justifica-se por vezes no mesmo texto.
Em "Na Vila de Vitoria" nota-se que "Lúcifer" fala sempre em português
e "Satanaz" - seu servidor - em espanhol. A razão da preferência é dada
pelo próprio personagem,
quando (à pág.29) exclama:
"Esta mano
es mas fuerte que el tirano
para hacer negar a Dios
Per eso mudé de voz:
para hablarle castelhano
y mostarme más feroz".
O que, note-se de passagem, pode servir para mostrar o juízo que dos
castelhanos (ou de sua língua) faziam então os lusitanos, juízo esse
perfilhado mesmo por quem, como Anchieta, nascera em terras de
Espanha”.
Essa ironia também acontecia do outro lado, como narra John Manuel Monteiro
(2005:76) a respeito dos índios Mbororé, que encenaram aos jesuítas das reduções
espanholas uma peça de teatro “na qual era reconstituída a heróica vitória contra os
‘lusitanos’”.
A influência do espanhol, além de matrizes fonéticas que comumente se afirma perceptíveis no sotaque dos paulistas, fezse
sentir no léxico. Em vários documentos examinados para fins historiográficos por John Manuel Monteiro, vê-se a nitidez dessa
influência lexical, a exemplo de trecho do testamento de Inês Pedroso, no século XVII, em que consta, a respeito da alforria das escravas
Generosa e Custódia, que ambas “ficarão forras em obrigação de servidumbre alguma nem o filho nem a filha...” (2005:212). Não é o
único exemplo que se vê da pesquisa arquivística feita por esse Autor: Em seu testamento de 1682, Maria Diniz “referiu-se a ‘um rapagão
por nome Custódio, o qual é forro e livre, e o não poderão obrigar a nenhuma servidumbre...’” (p.169-70, sem grifos no original). A
utilização dessa unidade léxica, que não pertence à etimologia da língua portuguesa, revela essa influência, não percebida por aquele
historiador, até nos escritos oficiais no século XVII, contrastando com o que se vê em documento de igual natureza lavrado já em 1721 na
vila de Itu: “Neste, Micaela Bastarda, que havia sido alforriada em 1703 por Gonçalo de Pedrosa, deixando-a ‘livre de toda a servidão e
administração...’” (idem, p.217). Segundo a atenta observação de Alcântara Machado (1980:216), que, em contraste com a “pobreza
verbal dos documentos quinhentistas”, os escritos testamentários revelam uma “elevação do nível intelectual” porque “em geral, quem
redige a cédula pelo testador é um monge ou clérigo regular”. Sendo assim, mais forte se desenha a presença lingüística do espanhol se
ela é visível até mesmo nos estratos superiores do letramento intelectual.
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