domingo, 25 de dezembro de 2016

7.5 A LÍNGUA FALADA PELOS BANDEIRANTES (Transcrição)

7.5 A LÍNGUA FALADA PELOS BANDEIRANTES A orientação ex autorictate que se instalou sobre a língua falada pelos bandeirantes demonstra o difícil equacionamento da questão da língua efetivamente falada pelos paulistas. Historiadores e lingüistas como Teodoro Sampaio (1987:71), Jaime Cortesão (1958:360), José Honório Rodrigues (1985:22), Sílvio Elia (1979:153), Sérgio Buarque de Holanda (2002:122-33), Gladstone Chaves de Melo (1946:33), Aryon Rodrigues (1986, 102; 1996), Paul Teyssier (2001:94) e Marcos Bagno (2005:90-1) afirmam que os bandeirantes falavam a língua tupi; Joaquim Ribeiro (1946:117-19) é uma das poucas vozes em contrário, argumentando que “a linguagem popular era a portuguesa” e que os desbravadores “falavam com igual facilidade o português e o tupi”, porém o seu fio argumentativo, fundado na persistência de vocábulos quinhentistas no dialeto caipira, não é concludente nem convincente, embora Gladstone (1946:33), em nota, considere como “sérios e ponderosos” esses mesmos argumentos utilizados por Ribeiro na obra Origem da língua portuguesa. 
Essas vertentes doutrinárias dão por uma congenial imiscibilidade das línguas, ainda que coexistam num mesmo território, algo como água e óleo que não se misturam nunca, conforme já dito na introdução a este estudo. Condicionantes de ordem social, já expostas, demonstram, entretanto, o contrário da tese majoritária, apontando para a direção de que eles, descendentes dos primeiros colonos que primavam pelo uso do português, falavam já um português crioulizado, embora diafasicamente escrevessem alguns em escorreito português, ou seja, relativamente simplificado em sua estrutura gramatical, que certamente pode ser chamado de antecedente histórico do dialeto caipira, em que há marcada erosão da morfologia flexional, como mostra Amadeu Amaral em sua famosa obra O dialeto caipira (1920), num processo precedido pela simplificação das formas gramaticais a exemplo do que ocorreu na passagem da língua tupinambá para o status de língua geral falada na boca de aloglotas até a ascensão do português motivada pela institucionalização organizativa, como nota Aryon Rodrigues (1986:105): “As maiores alterações sofridas pelo Tupinambá no processo de tornar-se Língua Geral resultam de uma progressiva simplificação das formas gramaticais, acompanhada de reorganização da construção das frases”. A deficiência e fragilidade de ambas as posições explicam-se pela ausência de estudos de línguas em contato entre nós, o que é relativamente recente. Mas só essa perspectiva é capaz de lançar luzes sobre todo o período que vai da organização política de São Paulo até o desaparecimento por completo da língua geral. Como se viu, o índio foi pouco a pouco se convencendo da superioridade bélica do branco, procurando acomodar-se à sua cultura e civilização, marchando rumo à sua própria maior valorização no tornar-se ‘crioulo’ e ‘ladino’. Outros afluíram para uma economia que, num dado momento, saturouse da mão-de-obra oferecida, instalando-se nas cercanias da cidade em contato com brancos também desaquinhoados pelo sistema de concentração econômica já muito visível. Um outro fato histórico quadra como argumento de difícil superação da tese do português como língua falada: da Câmara, cujas atas continuavam a ser escritas em português, continuavam a brotar proibições e restrições quanto ao apresamento de certos índios. A quem se dirigiam tais ordenações? A apresadores que não falavam a língua das deliberações? Não consta que elas precisassem da mediação de intérpete para serem entendidas. Do ponto de vista lingüístico, portanto, a influência superstratal foi inequívoca, dirigindo-se o índio rumo à branquização já ideologicamente defendida. Ocorreram, portanto, dois fenômenos paralelos no panorama lingüístico da história de São Paulo colonial: os brancos ex-indianizados que vieram da Vila de Santo André da Borda do Campo, reunidos por Tomé de Sousa, transferiram-se para São Paulo com uma forte carga lexical do tupi decorrente daquele contato. A utilidade desse inventário lexical era evidente por si mesma: a sociedade escravista lubrificava suas engrenagens econômicas no contato ordinário entre índios, traficantes e senhores. Mas, em concomitância, a língua portuguesa institucionalizada politicamente já começava a se impor como língua do conquistador, a que se foram alçando os índios de diversas nações que acorriam, à força, em sua quase totalidade, ao mundo opressivo dos brancos. Nessa fase, de longa duração, deu-se a crioulização do português que culminará no processo inverso de descrioulização já adiantado na segunda metade do século XVIII. É prefigurável que esse crioulo, marcado por numerosas unidades léxicas tupis absolutamente necessárias, sobretudo quanto ao meio ecológico de espécies vegetais e animais desconhecidas dos europeus, também fosse utilizado pela maioria da população iletrada Claro que no seu percurso existencial, esse crioulo sofreu gradações que iam de maior a menor distanciamento do português, ou seja, num arco lingüístico-histórico que vai do basileto ao acroleto, conceitos que são explicados por Hildo Honório do Couto (1996:54):
A variedade lingüística mais distante da língua de superstrato, ou seja, a variedade mais ‘pura’, tradicional, de crioulo é chamada basileto. A variedade da língua dominante falada na região em questão é o acroleto. Entre as duas, imbricando-se com elas e entre si num continuum sem limites definíveis, há vários mesoletos.  
É essa fenomenologia crioulizante que explica o famoso episódio do encontro entre o bandeirante Domingos Jorge Velho e o bispo de Pernambuco em Palmares, em 1697, narrado por Ernesto Ennes em “As guerras dos Palmares”. Autores como Sérgio Buarque de Holanda (2002:126), e mesmo Serafim da Silva Neto (1963:56), vêem nesse episódio, apesar da desconfiança que esse relato lhes gera por ter sido feito por um clérigo já ideologicamente preconcebido contra um inquisidor dos índios, um indício de certa credibilidade para a afirmação do uso generalizado da língua geral em São Paulo, em detrimento do português, no fim do século XVII. Marcos Bagno (2005:91) menciona o episódio e o acolhe sem ressalvas, abalançando-se, a afirmar, que a língua falada pelos bandeirantes era a “língua geral, língua brasílica ou nheengatu (sic)”, o que é um equívoco ainda maior, já que a variante amazônica surge em outro contexto histórico. John Manuel Monteiro (2005:164) refere-se também a esse incidente coligido por Ennes, e chega a dizer que se tratava de “um português colonial corrompido pela presença de barbarismos africanos e indígenas”. Embora Rosa Virgínia Mattos e Silva (2004:80 e 95), no que é secundado por Lucchesi (2006), se refira a essa passagem de Monteiro afirmando que ela repousa “em documentação arquivística ampla”, não se pode deixar de assinalar que essa análise do respeitável historiador não tem remissão a nenhum suporte documental, diferentemente de tantas outras que recheiam a obra. Além disso, a própria menção a “barbarismos africanos” carece de razoabilidade, sabido que a vida no planalto piratiningano, até então, era pouco afetada pela escravidão negra. Basta considerar, com Alcântara Machado (1980:183) em sua minuciosa investigação de inventários paulistas, que somente “em 1607 que aparece pela primeira vez um negro de Guiné. Estimam-no em quarenta mil réis, soma exorbitante para a época”. Os tapanhunos, como eram chamados os negros na língua geral, em oposição aos tapuitingas, gente branca, eram artigo caríssimo na economia paulista. O próprio John Manuel Monteiro (2005:133) reconhece que os paulistas, “praticamente sem capital e sem maior acesso a créditos, reconheciam a impossibilidade de importar escravos africanos em número considerável”. Páginas antes, ele também assinala que somente após 1640 é que alguns produtores de trigo “já tinham iniciado a transição para a escravidão negra” (p.119). Ainda assim, a disparidade era grande mesmo entre esses senhores de escravos, como se vê do plantel da propriedade de Domingos da Rocha Couto que “em 1661, 24 negros escravos negros trabalhavam ao lado dos 92 índios da fazenda” (p.119). A historiadora norte-americana Muriel Nazzari (2001:97), que também fez judicioso levantamento arquivístico por amostragem, informa o escassíssimo número de escravos africanos no século XVII em São Paulo. Alfredo Ellis Jr, em A economia paulista,  apud Nazzari (2001:314) mostra que “a proporção de africanos para índios em São Paulo era de um africano para cada 34 índios, no século XVII, e de oito africanos para cada sete índios, no século XVIII”. Por outro lado, fora de São Paulo, nas múltiplas expedições de combate a que sua reputação guerreira era convidada, seu convívio foi, na verdade, com índios, especialmente no interior do Piauí e Paraíba, na região do Rio Piranhas. Combateu, no século XVII, ao lado de outros bandeirantes paulistas, os índios tapuias Jaicó, Paiacu, Icó, Sucurus e Janduí, verdadeiramente ou não acusados de aliança com os holandeses na afamada Guerra dos Bárbaros. Detinha um plantel de cerca de 1.300 índios e oitenta brancos às vésperas de dar combate ao Quilombo dos Palmares. “Em Piancó, em 1676, fundou um arraial, destruído logo pelos cariris, mas que mais tarde reconstruiu, exterminando esses índios”, informa Francisco Carvalho Franco (1989:429), autor cuja obra John Manuel Monteiro (2005:235) reputa como “o melhor compêndio das expedições”. Não se vê, portanto, de onde se pode tirar dado histórico de influência de línguas africanas na linguagem desse bandeirante paulista que morreu entre 1703 e 1704. Em suma: se desde os primórdios da colonização já se registra a presença de negros escravos no Brasil, do que cuida expressamente Gândavo (1997:16), não se pode falar, entretanto, de nenhuma influência lingüística deles no português na São Paulo dos Seiscentos, pela exigüidade de sua presença demográfica. Até pelas datas da introdução das primeiras peças em Piratininga se vê que é impertinente falar na presença de barbarismos africanos na linguagem dos sertanistas, que, embora tivessem sido chamados a outras regiões por suas habilidades guerreiras, sempre se faziam servir de contingente indígena em suas expedições, como o admite o próprio John Manuel Monteiro em outra obra (2004:46), retornando sempre a seu habitat ou quartel-general, que era São Paulo. Por outro lado, o exame desse texto mais recente (2004:51) mostra quão confuso é esse enfoque de Monteiro, que parece acreditar numa concomitância entre um português “salpicado de palavras e expressões indígenas” ao lado de uma língua brasílica com “adaptações e corrupções pela presença de outros idiomas no Planalto”, sem acenar para qualquer interação ou interinfluência. A análise do emblemático acontecimento, entre o bispo e o bandeirante, sob a perspectiva crioulística tem explicação satisfatória, acrescendo-se que se o bandeirante era capaz de falar o português, por haver escritos de seu próprio punho, não deve ter se esforçado, como usualmente se faz na diafasia da língua escrita, em elevar-se à pureza da língua aos ouvidos atilados do jesuíta cioso de seu bom português. Dissimulação suficiente pra isso não faltava ao sertanista, do que se tem um bom exemplo no teor da carta endereçada à Coroa, em 1694, que Boxer (1977:94) reproduz citando trecho da obra de Ennes: 
Primeiramente nossas tropas com q-êmos à conquista do gentio brabo desse vestissimo sertão, não he de gente matriculada nos livros de V.Magde. nem obrigado por soldo, nem pão de munição; são huas agregaçoens q-fazemos algús de nos, entrando cada hu com os servos de armas q-tem e juntos ao sertão desta cantinente não a cativar como alguns hypocondriacos pretendem fazer cre a V. Mag., de senão adqueriu o Tapuia gentio brabo e comedor de carne humana para o deduzir ao conhecimento da urbana humanidade e humana sociedade à associação Racional trato pa pr esse meio chegrem aquella lus de Deos e vao trabalha quem os quer fazer anjos, antes de fazer homens e desses asse  adquiridos, e reduzidos, engrossamos nossas tropas, e com elles guerreamos aobstinados e renitentes, a se reduzirem: e ao dezpoiz nos servirmos delles para as nossas lavouras; nenhuma injustiça lhes fazemos, pois tanto he p às sustentarmos a elles e seus filhos como a nós e aos nossos: isso bem longe de os cativar, antes se lhes faz hu irremunerável serviço em os ensinar a saberem labrar, prantar, colher, e trabalhar p seu sustento, couza q-antes q-os brancos lho ensinem, eles não sabem fazer.
 
É sintomático que esse sertanista como disposição de última vontade, num lampejo de seus desatinos já nas vascas da agonia, quando certamente devem ter lhe assomado os demônios do remordimento de consciência, tenha ordenado rezar em seu favor 450 missas..., informa Alcântara Machado (1980:219). Há um outro evento histórico utilizado como argumento dessa usualidade da língua tupi. Trata-se do já citado incidente no âmbito do inventário do inventário de Brás Esteves Leme, dado a conhecer por Sérgio Buarque de Holanda (2002:125-6) em que o juiz de órfãos precisou se valer de um intérprete para tomar as declarações da filha do defunto. Na verdade, esse fato tem que ser tomado sob outra perspectiva: os depoimentos judiciais, por longa tradição que ainda persiste na modernidade, devem ser colhidos escoimados de qualquer ambigüidade ou conteúdo anfibológico. Em se tratando de alguém cuja língua era um crioulo, provavelmente basiletal, a existência de numerosos elementos lexicais do tupi era evidente. Bastam, entretanto, a refutar essa argumentação os documentos trazidos pelo próprio John Manuel Monteiro, e já referidos, que apontam para a facilidade do índio ladino em expressar-se em português por ocasião de tomada de seu depoimento em juízo. Se eram aptos a tanto, tais índios ladinos vivendo na sociedade paulista, é porque aprenderam, em situação de oralidade – claro – a língua portuguesa com o branco falante dela, embora por um processo de aquisição imperfeita. Natural, portanto, que a ouvidos pouco treinados, naquela híbrida realidade lingüística de São Paulo, a comunicação causasse estranheza, tal como aconteceu com Hercules Florence citado por Sérgio Buarque de Holanda em apoio de sua tese, o que, entretanto, se levada às suas últimas conseqüências, significaria que a transição da língua geral para o português se teria dado por saltos, o que contraria uma evidência das ciências sociais e lingüísticas de que língua alguma desaparece como que por encanto da boca de seus falantes. Mas Sérgio Buarque de Holanda (2002:125) parece ele mesmo advertir do risco de generalizar esses registros históricos para toda a sociedade paulista: “Nada impede, com efeito, que esses testemunhos aludissem sobretudo às camadas mais humildes (e naturalmente as mais numerosas) do povo, onde a excessiva mistura e a convivência de índios quase impunham o manejo constante de seu idioma”. Um outro argumento, o da toponímia tupi fixada pelos bandeirantes para além dos domínios paulistas, também não prova a usualidade comunicativa da língua tupi, mas apenas, o que não se nega aqui, a influência lexical da língua nativa no processo de crioulização do português. Um achado historiográfico de John Manuel Monteiro (2005:183), o inventário de Salvador Moreira, de 1697, demonstra ter existido, entre esse indivíduo e um certo Braz Moreira Cabral, um desentendimento pelo descumprimento que este dera ao empréstimo de dois índios “para servir de intérpretes numa expedição de apresamento do capitão Braz Moreira Cabral” (É curioso, entretanto, o que pode ser explicado pela ausência de acuidade lingüística para ter sua atenção chamada para um problema que refoge à linha de pesquisa do Autor, que mesmo diante da evidência dessa informação, Monteiro parece não ter atentado nela ao formar a opinião de que os sertanistas eram “conhecedores da língua geral” (2005:87) Esse documento confirma a hipótese do texto: a crioulização, no caso já acroletal a caminho da descrioulização, produzira uma língua sem aptidão para a intercomunicação entre a sociedade portuguesa e aportuguesada com falantes nativos e exclusivos da língua de base tupi: os índios a serem aprisionados.
É também pertinente perceber que o desenvolvimento político-econômico daquela vila vem acompanhado de influências recebidas pelo português aí falado vindas do espanhol, língua de outro branco conquistador, nos dois primeiros séculos. O fato é que, ainda que por fogachos intermitentes, a língua castelhana estava sempre presente ali, sendo considerada superior até mesmo ao português por muitos lusos, muito embora a figura icônica da literatura espanhola, Cervantes, ao elogiar a língua valenciana, tenha dito: “Con quien sola la portuguesa puede competir en ser dulce y suave”. Lope de Vega, em “Descripción de la tapada de Vila Viçosa” escreve: “Así cantando fue la Portuguesa / con celebrado aplauso larga historia, / a quien por la dulzura que profesa / entrambas concedieron la victoria”, apud Pilar Vásquez Cuesta (1988:104). (Esse é um assunto que renderia um novo tema dissertativo. Mas convém ainda acrescer, ainda que para regalo de um bairrismo lingüístico, o que o poeta francês Lamartine (1790-1869) disse da língua portuguesa: “langue plus latine et plus belle que l’espagnole”, no que foi seguido pelo poeta americano Henry Longfellow (1807-1882) que afirmou: “the portuguese is softer and more musical than the spanish”, apud Gilberto Freyre (1979:62) Para essa influência do castelhano concorrerá a presença de espanhóis em Piratininga, que é fato incontestável entre historiadores, especialmente após 1580, com a unificação das duas coroas em favor de Felipe II. Frei Gaspar da Madre de Deus (1975:134) chega a ir mais além quanto aos imigrantes que se estabeleceram no planalto: 
Não era de admirar que, além dos portugueses, viessem os espanhóis, holandeses e italianos estabelecer-se num país onde os seus habitantes desfrutam as comodidades expendidas por Charlevoix; porque El-Rei Católico nesse tempo era soberano de Espanha, Portugal, Nápoles, Milão e Países Baixos, e os vassalos deste príncipe podiam habitar em qualquer parte dos seus Domínios. 
Jaime Cortesão (1958:289), a esse respeito, também escreve:
Não faltam igualmente espanhóis que durante esse período se fixaram no Brasil, mas estes em número bem menor que os portugueses e luso-brasileiros na América Espanhola. Apenas em São Paulo eles constituíram parte apreciável na população da cidade e devem ter contribuído para diferenciar o paulista, como entidade regional na América portuguesa. Nada autoriza a pensar, entretanto, que esse relacionamento fosse cordial entre paulistas e espanhóis, como afirma Taunay em São Paulo no século... (2003:370): 
Em São Paulo, desde os primeiros anos, vieram numerosos espanhóis fixar-se, fenômeno muito natural se atendermos à série contínua de navegações castelhanas dirigidas ao Rio da Prata, a alegria com que na pequena vila se recebiam os novos moradores, a vida livre que nela imperava e, afinal, o fato de, de 1580 em diante, serem todos os iberos súditos do mesmo monarca.  
Esse mesmo Autor acrescenta linhas depois, discorrendo inclusive sobre a influência lingüística (2003:372): “A essa afusão abundante de sangue castelhano atribuem escritores a gravidade e a reserva reinante entre os antigos paulistas que bastante os diferenciavam dos demais brasileiros, o sotaque especial característico do seu falar pausado e uma mentalidade de feição muito sua”. Esse contato foi sempre marcado por oscilações, em que as desavenças afloravam por causa de conflitos de interesse e disputas bairristas de antanho. Ainda estava presente na São Paulo do primeiro século, tanto que ela o registrou nas atas da Câmara em 1585, o episódio em que oitenta portugueses sob as ordens de Pero de Góis, lugar-tenente do donatário Martim Afonso de Sousa, foram mortos, em 1534, por um tal Rui Mosquera, remanescente da esquadra de Caboto, como narra Cortesão (1955:151). O assunto, apenas abordado superficialmente por Taunay, tem maior profundidade, inclusive do ponto de vista lingüístico, até porque há registro de que também “já em 1552 vinha gente do Paraguai e que era freqüente a comunicação entre as duas colônias, portuguesa e espanhola”, conforme Serafim Leite, apud Sérgio Buarque de Holanda (1978:94). John Manuel Monteiro (2005:107) também situa entre 1620 e 1640 essa imigração de hispano-paraguaios, “sendo que estes últimos integraram-se às famílias Bueno, Camargo e Fernandes”. Villalta (2002:344), reproduzindo o que afirma Gabriel Soares de Sousa, equivocadamente limita essa influência lingüística do castelhano ao período entre 1580 e 1640, quando teriam acorrido ao Brasil “napolitanos, milaneses, neerlandeses e espanhóis, provenientes de regiões submetidas aos reis da Espanha”. No plano metropolitano, de que deve ter havido reflexos no Brasil, existiu, como se põe a descrever meticulosamente Pilar Vásquez Cuesta (1988), penetração da língua e cultura castelhanas na corte portuguesa desde 1479 (1988:10, 21-3, 32-3), ou seja muito antes da instituição da monarquia dualista, como ela mesmo escreve: “Enfim, o cultivo do castelhano generalizara-se tanto em Portugal por essa época que resulta verdadeiramente excepcional encontramos escritores que não tenham sucumbido alguma vez à tentação de usá-lo”. Essa influência estava explícita na obra literária do criador do teatro português, Gil Vicente. Isso é explicável porque o castelhano era língua da moda, que, como adita a Autora, “além de distinguir da plebe, podia proporcionar poder e riqueza”. Sérgio Buarque de Holanda, em artigo intitulado “Teatro Jesuítico”, escrito para a Folha da Manhã em 26 de setembro de 1951, relata:  
Nas peças de Gil Vicente, que escrevera bem antes de se acentuar em Portugal o nacionalismo lingüístico - manifestado mais tarde com Antonio Ferreira - já se notou que, onde aparece o bilingüismo, o castelhano surge de preferência na fala das personagens de alta categoria. E de modo geral a observação serve para se determinar o caráter de peças inteiras. Não é por acaso, certamente, que na "Trilogia das Barcas", só a 230 da Glória, onde entram o "Papa", o "Cardeal", o "Arcebispo", o "Imperador", o "Rei", o "Duque" e o "Conde", é toda em espanhol. Ao passo que nas do "Inferno e Purgatório", em que se figura gente mais miúda, o vernáculo domina. Isso é bem explicável quando se considere que, ao tempo de Gil Vicente, era o castelhano, em Portugal, idioma dignificante e nobre, próprio, por isso, dos homens de prol, sobretudo da Corte. E assim, os diálogos nessa língua teriam significação em muitos pontos comparável à dos diálogos em francês de certos romances russos do século XIX. 
No mesmo sentido escreveu Magaldi (1962:18): “Sabemos que, na obra de Gil Vicente, o emprego do espanhol era conseqüência dos hábitos da corte: as classes elevadas falavam o castelhano, enquanto o vernáculo era o idioma do povo”. Esse cortejo lingüístico projetou efeitos prospectivos no Brasil, como se vê das duas peças, “Hay amigo para amigo” e “Amor, engaños y celos”, do primeiro comediógrafo brasileiro, o baiano Manuel Botelho de Oliveira (1637-1711), que foram escritas em espanhol, como informa o mesmo Magaldi (1962:25). Efetivamente, ao longo da monarquia dualista essa infiltração se fará bem mais intensa, atravessando todo o período de sessenta anos, durante o qual certas atividades culturais, como o teatro, eram praticadas exclusivamente em castelhano em Portugal, continua Cuesta (1988:82-3, 86-9): “É esta a única conseqüência verdadeiramente grave da invasão de Portugal pelas companhias de comédias espanholas a partir da entrada no Reino de Filipe II: a quebra da tradição teatral portuguesa, que tardará mais de dois séculos e meio a recompor-se”. Prossegue essa Autora afirmando que isso gerou um ‘bilingüismo diglóssico’, que, não sendo fruto de uma ideologia política (1988:89 e 95), produzirá marcas que tardarão a desaparecer mesmo depois da Restauração (1988:142-4), até que no século XVIII o francês passe a exercer um influxo exclusivista, assim como ao barroco sucede a estética neoclássica. Equivoca-se parcialmente Cortesão (1958:78), que, apoiando-se no historiador Queiroz Veloso, reproduz a afirmação deste de que “todas as características da soberania – leis, governo, administração da justiça, moeda, língua – tudo Portugal conservou”. Na verdade, essas promessas nunca saíram do papel, ou seja, do “Memorial de las gracias y mercedes que el Rey mi Señor concederá a estes Reinos cuando fuere jurado por Rey y Señor delles en que se incluyen las que les concedió el Sereníssimo Rey Don Manuel el año 99 y otras de gran importancia para el bien universal y particular dellos”, como o demonstra Pilar Vásquez Cuesta (1988: passim). Apesar da inconformação popular com o cingir Felipe II a coroa portuguesa, até mesmo porque nunca cumpriu nenhuma de suas promessas, sua resistência se limitou, durante muito tempo, ao sebastianismo messiânico e providencialista que redimiria Portugal transformando-o no Quinto Império, segundo anunciariam as coplas do Bandarra, um sapateiro com supostos poderes divinatórios, e nas quais até o Padre Vieira (1608-1697) acreditou, prestidigitando seu cumprimento em diversas manipulações argumentativas. Se a alta burguesia, interessada em expandir-se através do império comercial espanhol, a nobreza e o alto clero apoiavam a pretensão de Felipe II, não era difícil imaginar que o processo de deserção e colonização lingüísticas a que foi submetido o português chegasse também ao Brasil, incluindo Piratininga, onde a ordem religiosa mais atuante era a jesuítica, apoiadora de primeira hora do monarca espanhol, como relata Vásquez Cuesta (1988:10 e 33). Entre esses missionários havia muitos espanhóis de origem, a exemplo de João Azpilcueta Navarro, que veio na primeira expedição, a de 1549, José de Anchieta, canarino, ambos dominavam o castelhano embora de ascendência basca, e Antônio Blásques, tendo ambos os últimos integrado a terceira expedição, de 1553, informa Serafim Leite (2004-I: 204). O próprio Nóbrega, português de origem, quando escrevia aos Padres Gerais Inácio de Loyola e Diego Laynes, fazia-o em espanhol, até porque estudou em Salamanca, embora se servisse dos amanuenses Antônio Blásques e José de Anchieta para dar acabamento gramatical às epístolas, como informa Serafim Leite na introdução às Cartas do Brasil e mais escritos do P. Manuel da Nóbrega (2000:34-5). José de Anchieta, embora falasse fluentemente o português, não escrevia, diferentemente de Nóbrega, nessa língua, mas sim em latim, como afirma Serafim Leite (1953b:68). Assim, a penetração de povos de língua espanhola no planalto efetivamente existiu, como se vê da incorporação à história de São Paulo de figuras como Francisco Ramires, sevilhano, que chegou com seu filho Bartolomeu Bueno a São Paulo em 1571; Baltazar de Godoy e Francisco de Saavedra, genros de Jorge Moreira; Jusepe de Camargo, Martim Tenório de Aguilar, falecido em 1603, e Bartolomeu de Quadros – todos citados por Taunay (op.cit., p.371-2). “Os castelhanos e flamengos começam a estabelecer-se aqui. Os Ordonhez, Laras, Buenos, Ribeira ou Rivera, espanhóis, vêm desde esse tempo, bem como os Lemes, Góis e depois os Taques eram de procedência flamenga”, escreve Teodoro Sampaio (1978:168). Este mesmo Autor (p.171) escreve que “as transações com as colônias espanholas do Rio da Prata começaram a avultar depois da união à coroa de Espanha. O açúcar, o algodão, as caixas de marmeladas, e até escravos eram artigos de comércio com Buenos Aires”. Villalta (2002:344) também se refere a espanhóis que se estabeleceram “de modo expressivo em São Paulo, [onde] exerceram seus ofícios, galgaram cargos públicos, tornaram-se ‘homens bons’ e casaram-se, até mesmo com índias, como era costume na terra”. John Manuel Monteiro (2005:69) também enfrenta a questão:
 Se é verdade que os paraguaios e paulistas conseguiram forjar uma relação harmoniosa nas terras indefinidas – às custas dos Guarani, é claro –, tal relação foi desestabilizada pelos missionários jesuítas que se instalaram na região a partir de 1609 (...). Desde o princípio, os jesuítas cultivaram péssimas relações com os colonos de ambos os lados.
Quanto às relações entre ambos povos ibéricos na América, mesmo no período da monarquia dual, o que se pode dizer é que foram, em certos momentos, de cautela e suspeição recíproca. Nóbrega em carta escrita de Salvador em agosto de 1557 confirma isso ao relatar:  
Ajuntava-se a isto parecer-me que estando lá os da Companhia se apagariam alguns escândalos que os castelhanos têm dos portugueses e, a meu parecer, com muita razão, porque usaram muito mal com uns que vieram a São Vicente, que se perderam de uma armada do Rio da Prata. 
Em outros momentos, essa beligerância alternava-se com solidariedade contra o índio e mesmo contra franceses, como revela Nóbrega em carta escrita da Bahia a 5 de julho de 1559 (2000:353), em que relata que “o capitão do Paraguai se mandou oferecer por vezes que sujeitaria os Tupis a São Vicente, se lhe dessem licença, e querem com os portugueses trato e conversação, e ajudá-los contra o gentio e outros inimigos”. Efetivamente, entretanto, a influência da língua espanhola existiu sobre a portuguesa falada em São Paulo nos primeiros dois séculos, para o que concorreu a ausência de indisposição lingüística dos portugueses e brasileiros que aí habitavam, além do senso de acomodação dos próprios espanhóis, como se lê da grafia aportuguesada de muitos de seus nomes, embora a colonização lingüística que teve lugar em Portugal não tenha se reproduzido de forma especular nas incultas terras dos brasis, especialmente a paulista, onde o palco de manifestações culturais se limitava ao ingente esforço dramatúrgico de Anchieta, cujas peças eram vazadas em português, castelhano e tupi, lembra Francisco Assis Fernandes (1980:82), mostrando o respeito pela convivência lingüística, em que havia uma influência recíproca, até pela alta consideração e respeito em que os jesuítas de Portugal eram tidos pelos paraguaios, especialmente Nóbrega, como o demonstra uma passagem da “Relación Breve”, de Domingos de Irala, em que o Governador do Paraguai dava a conhecer, em 1556, ao Marquês de Mondejar, “a conveniência que havia em ganhar-se o favor desse jesuíta ‘por ternerle respecto y acatamiento los dichos topis ques gente indomita’”, narram Sérgio Buarque de Holanda (1978:94) e Serafim Leite, este em notas às cartas de Nóbrega (2000:199). Não parece correto afirmar-se que houve uma concorrência com o espanhol, como quer Luiz Carlos Villalta (2002:334). Deu-se aí, na verdade, nessa relação de vicinalidade lingüística, uma situação de adstrato, em que nenhuma das línguas intervenientes desaparece. No caso de Piratininga, é mais apropriado falar-se, especificamente, em “adstrato superposto”, que, segundo M. Valkhoff, apud Bassetto (2001:164), “designa a influência entre duas línguas correntes em territórios limítrofes”, já que não ocupavam simultaneamente o mesmo território – a não ser em situações interseccionais de caráter excepcional –, a exemplo do “antigo castelhano e o basco, as línguas da Gália e o latim da ‘Província’, até a conquista de Caio Júlio César (51-50 a.C), as línguas germânicas e o latim antes das invasões e o dialeto romeno da Transilvânia e o húngaro desde o tempo dos Habsburgos”, arremata esse Autor. Num trecho do auto Na Vila de Vitória, Anchieta, apud Magaldi (1962:18), escreve:  
Pergunta o Governo à ‘Villa de Victoria’: ‘pois que sois de Portugal,/ como falais castelhano?’ - ao que a interlocutora responde: ‘Porque quiero dar sua gloria/ a Felipe, mi señor,/ el cual simpre es vencedor,/ y por él habré victoria/ de todo perseguidor./ Yo soy suya, sin porfia,/ y él es mi rey de verdad,/ a quien la suma bondad/ quiere dar la monarquia/ de toda la cristiandad.  
Esse passo do teatro anchietano, que foi escrito com passagens em espanhol, mostra a existência de uma comunidade multilingüe em Piratininga e não deve ser entendido somente como uma homenagem a Felipe II, monarca das duas coroas, como pensa Magaldi (1962:18), já que uma leitura de outras partes do mesmo auto entremostra não existir a exclusividade dessa conexão feita pelo teatrólogo. É de Sérgio Buarque de  Holanda a seguinte análise, extraída do artigo intitulado “Teatro Jesuítico”, publicado no jornal Folha da Manhã, em 26 de setembro de 1951:
Nas obras de Anchieta, que acaba de publicar o Museu Paulista, a variedade das línguas utilizadas justifica-se por vezes no mesmo texto. Em "Na Vila de Vitoria" nota-se que "Lúcifer" fala sempre em português e "Satanaz" - seu servidor - em espanhol. A razão da preferência é dada pelo próprio personagem, quando (à pág.29) exclama: "Esta mano es mas fuerte que el tirano para hacer negar a Dios Per eso mudé de voz: para hablarle castelhano y mostarme más feroz". O que, note-se de passagem, pode servir para mostrar o juízo que dos castelhanos (ou de sua língua) faziam então os lusitanos, juízo esse perfilhado mesmo por quem, como Anchieta, nascera em terras de Espanha”.  

 Essa ironia também acontecia do outro lado, como narra John Manuel Monteiro (2005:76) a respeito dos índios Mbororé, que encenaram aos jesuítas das reduções espanholas uma peça de teatro “na qual era reconstituída a heróica vitória contra os ‘lusitanos’”. A influência do espanhol, além de matrizes fonéticas que comumente se afirma perceptíveis no sotaque dos paulistas, fezse sentir no léxico. Em vários documentos examinados para fins historiográficos por John Manuel Monteiro, vê-se a nitidez dessa influência lexical, a exemplo de trecho do testamento de Inês Pedroso, no século XVII, em que consta, a respeito da alforria das escravas Generosa e Custódia, que ambas “ficarão forras em obrigação de servidumbre alguma nem o filho nem a filha...” (2005:212). Não é o único exemplo que se vê da pesquisa arquivística feita por esse Autor: Em seu testamento de 1682, Maria Diniz “referiu-se a ‘um rapagão por nome Custódio, o qual é forro e livre, e o não poderão obrigar a nenhuma servidumbre...’” (p.169-70, sem grifos no original). A utilização dessa unidade léxica, que não pertence à etimologia da língua portuguesa, revela essa influência, não percebida por aquele historiador, até nos escritos oficiais no século XVII, contrastando com o que se vê em documento de igual natureza lavrado já em 1721 na vila de Itu: “Neste, Micaela Bastarda, que havia sido alforriada em 1703 por Gonçalo de Pedrosa, deixando-a ‘livre de toda a servidão e administração...’” (idem, p.217). Segundo a atenta observação de Alcântara Machado (1980:216), que, em contraste com a “pobreza verbal dos documentos quinhentistas”, os escritos testamentários revelam uma “elevação do nível intelectual” porque “em geral, quem redige a cédula pelo testador é um monge ou clérigo regular”. Sendo assim, mais forte se desenha a presença lingüística do espanhol se ela é visível até mesmo nos estratos superiores do letramento intelectual.  

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