Em 1663, a paulista Maria do Prado ditou em seu testamento: “Declaro que não possuo
escravo algum cativo mas somente possuo como é uso noventa almas do gentio da terra as
quais tratei sempre como filhos e na mesma formalidade as deixo a meus herdeiros.”
Ao procurar resolver o destino dos noventa índios que ficaram sob sua responsabilidade
depois da morte do marido, a viúva de 80 anos tocou de forma explícita em um problema
delicado: a liberdade dos índios. Ponto crucial da legislação colonial, este direito convivia de
maneira precária com os “usos e costumes” dos paulistas. Em meados de 1650, Maria do
Prado e seu marido, Miguel de Almeida de Miranda, chegaram a ter mais de duzentos
índios, capturados, em sua maioria, em expedições bandeirantes nos sertões. A forte
presença da escravidão indígena é bastante reveladora da formação da economia e da
sociedade da época. E as bandeiras ajudam a explicar esse fenômeno.
As expedições para o sertão começam no século XVI e só perdem força e sentido na
segunda metade do século XVIII. A palavra sertão já aparece discretamente na carta de
Pero Vaz de Caminha, como referência a um vasto e desconhecido interior. Com o tempo, o
termo passou a representar mais do que uma simples referência geográfica, também
demarcando um espaço simbólico. A distinção entre o povoado e o sertão marcava o
contraste entre dois universos, um ordenado pela religião católica e pelas leis do Reino, o
outro pautado pela ausência da ordem: “sem fé, nem lei, nem rei”, como rezava o ditado da
época. Nesse mesmo período, começaram a ser conhecidas as suas riquezas: madeiras,
minérios e, sobretudo, populações indígenas. Graças às alianças com esses grupos, os
europeus puderam ocupar efetivamente diferentes pontos do litoral e, no caso excepcional
de Piratininga (São Paulo), no interior do continente.
A semente do sertanismo estava inscrita nestas alianças em dois sentidos importantes.
Primeiro, as lideranças indígenas buscavam aliados portugueses para aumentar seu prestígio
e seu poder de fogo em guerras contra outros grupos, que envolviam expedições para
capturar inimigos e perpetuar a vingança. Em segundo lugar, as uniões entre portugueses e
índias produziram filhos mestiços, os chamados mamelucos. Muitos destes se valeram de
suas raízes nativas e de suas habilidades linguísticas para se tornarem sertanistas
especializados, alimentando a crescente demanda de seus parentes brancos por escravos. Já
as filhas mestiças se casaram com portugueses, dando início a genealogias que instalavam
uma “nobreza da terra” ao mesmo tempo em que apagavam o passado indígena. Na
capitania de São Vicente, a principal aliança deste tipo se deu por meio da relação entre o
náufrago português João Ramalho e Mbcy (ou Bartira), filha do chefe tupi Tibiriçá.
Com a fundação da Vila de São Vicente em 1532 e a introdução da produção açucareira
pouco depois, as guerras entre grupos indígenas passaram a produzir um número crescente
de braços para a nascente economia colonial. No final da década de 1540, segundo um
relato da época, existiam três mil escravos índios no litoral vicentino, ocupados nos seis
engenhos e nas outras propriedades dos europeus.
No entanto, havia um entrave que impedia o florescimento pleno de um sistema
escravista baseado na mão de obra indígena. Os missionários jesuítas, que chegaram ao
Brasil em 1549 e a São Vicente em 1553, entraram em competição direta com os sertanistas
ao direcionar os índios “descidos” do sertão para aldeias missionárias. Eles pressionaram a
Coroa para proibir o cativeiro injusto dos índios. A “Lei sobre a Liberdade dos Gentios”, de
1570, estabeleceu um dos fundamentos da política indigenista portuguesa, declarando livres
todos os índios, salvo aqueles sujeitos à “Guerra Justa” – grupos inimigos que apresentavam
alguma resistência armada.
Outros fatores dificultavam a escravidão dos índios. O contato com os europeus trazia
doenças contagiosas que encontravam neles um “solo virgem”, devido à falta de resistência
imunológica. Uma gripe podia causar a morte de muitos, e doenças graves, como a varíola,
tiveram um impacto ainda mais fulminante. Em algumas partes da América portuguesa,
estas dificuldades favoreceram o crescimento do tráfico transatlântico de escravos
africanos. Mas também estimularam a intensificação das expedições para o sertão, em
busca de novos cativos para substituir as vítimas das epidemias.
Na capitania de São Vicente, com o apoio das autoridades locais, os colonos começaram
a organizar expedições de maior porte para adquirir cativos. Os primeiros grandes
empreendimentos, nas décadas de 1580 e 1590, tomaram a forma de “Guerras Justas”.
Outras expedições, que partiam para o sertão com o pretexto de buscar metais preciosos,
regressavam a São Paulo com números cada vez maiores de índios capturados.
No início do século XVII, as expedições tornaram-se mais frequentes e assumiram
explicitamente o projeto de abastecer as propriedades rurais com a força do trabalho
indígena. Entre 1600 e 1641, as populações carijós (guarani) localizadas no sul e no sudoeste
de São Paulo foram as mais visadas. De língua e cultura muito semelhantes às dos índios
tupis do planalto, os carijós passaram a constituir a maioria da população colonial na região
de São Paulo nesse período. As expedições ganharam feições paramilitares, ao arrepio da
lei e a despeito da voz de protesto dos jesuítas. Este movimento chegou ao seu auge nas
décadas de 1620 e 1630, com as grandes bandeiras sob o comando de Manuel Preto,
Antônio Raposo Tavares, André Fernandes e Fernão Dias Paes, para citar apenas os
maiores. Estas expedições destruíram as reduções jesuíticas de Guairá (no atual Paraná),
causaram grandes estragos nas missões do Tape (no atual Rio Grande do Sul) e criaram um
novo momento de tensões envolvendo paulistas, jesuítas e a Coroa.
Armados pelos jesuítas, os índios das missões do Tape derrotaram duas grandes
expedições de apresamento em batalhas decisivas, primeiro em Caaçapaguaçu (1638) e
depois em Mbororé (1641). Enquanto isso, em São Paulo, os colonos venciam outra batalha:
a luta pelo controle dos índios espalhados entre as propriedades particulares. Expulsaram os
jesuítas em 1640 e negociaram com a Coroa o direito de explorar a mão de obra indígena
que lhes custou tanto sangue e suor para obter. Esta postura foi resumida por um jesuíta
português que visitou São Paulo em 1700: “Estavam tão firmes os moradores daquela Vila
em que os índios eram cativos que ainda que o Padre Eterno viesse do céu com um Cristo
crucificado nas mãos a pregar-lhes que eram livres os índios, o não haviam de crer.” É nos
testamentos dos próprios moradores que se vê com mais clareza a posição assumida. Em
1684, o casal Antônio Domingues e Isabel Fernandes declarava que os índios que possuíam
“são livres pelas leis do Reino e só pelo uso e costume da terra são de serviços obrigatórios”.
A derrota para os índios no sul não significou o fim das expedições de apresamento. Pelo
contrário; apesar de diminuírem em tamanho médio, aumentaram em número, frequência
e distância percorrida. A maioria operava em escala pequena, seja na forma de
empreendimentos familiares, seja por meio de contratos entre “armadores” e sertanistas.
Os armadores forneciam correntes, pólvora e índios sertanistas com a expectativa de
receber metade do “lucro” da expedição, isto é, metade dos índios trazidos do sertão.
Um dos resultados destas mudanças foi o aumento na diversidade étnica e linguística da
população subordinada. Essa diversidade também denunciava as dificuldades que os
sertanistas enfrentavam. Agora eles percorriam sertões mais distantes e menos conhecidos,
trazendo quantidades cada vez menores de cativos. Outro resultado evidente foi a diminuição
da população indígena nas propriedades paulistas. Os inventários do século XVII mostram
que a posse média atingia quase quarenta índios por proprietário em meados do século, um
número que despencou para menos de dez no início do século XVIII.
Ainda assim, os índios eram uma presença constante em todas as propriedades que
deixaram algum vestígio documental do século XVII. Vários inventários arrolam posses
superiores a cem índios, o que levou o historiador Sérgio Buarque de Holanda a observar a
situação paradoxal da “grande propriedade, pequena lavoura”.
Como explicar a necessidade de tantos índios numa área colonial periférica, à margem da
economia do Atlântico? Para muitos autores, os paulistas aprisionavam índios para vender
aos setores mais dinâmicos da Colônia, como as zonas açucareiras do Rio de Janeiro, da
Bahia e de Pernambuco. A documentação, no entanto, aponta para outra versão. A mão de
obra indígena certamente mostrava-se indispensável na lavoura paulista que abastecia uma
parte da América portuguesa. Mas os índios também colaboraram em todas as etapas da
ocupação de terras por europeus. Limpavam os caminhos, abriam as roças, construíam as
casas e as igrejas, transportavam bens e pessoas, participavam das expedições para o sertão.
Proporcionavam uma força de trabalho e uma força militar. Este segundo aspecto tinha um
sentido prático nas disputas entre facções que tanto marcaram a História colonial, mas
também se revestia de sentido simbólico, pois os paulistas comandavam a atenção das
autoridades nos dois lados do Atlântico. Sua imagem era contraditória. Rebeldes e
insubordinados para uns, leais vassalos para outros.
Na segunda metade do século XVII, a Coroa procurou explorar estes laços de vassalagem
ao convocar alguns paulistas “potentados em arcos” para combater indígenas e africanos
rebeldes, sobretudo nas capitanias da Bahia, de Pernambuco e de Rio Grande. Animados
com a perspectiva de aumentar o número de escravos, vários paulistas concordaram em
participar destas campanhas. Mas as guerras no Recôncavo, no rio São Francisco e no Açu
remeteram poucos cativos a São Paulo. E até mesmo os sertanistas deixaram de voltar para
suas terras de origem, buscando aproveitar as grandes dotações de terras que receberam
pelos serviços prestados. Na análise pioneira do historiador Capistrano de Abreu, passaram
de despovoadores a povoadores.
O sertanismo de apresamento já estava com seus dias contados. O golpe mais forte veio
com as grandes descobertas do ouro, entre 1693 e 1722, justamente em lugares
frequentados havia décadas pelas expedições de bandeirantes. Os paulistas em Minas
Gerais, Mato Grosso e Goiás ainda tiveram um papel importante na relação com as
populações indígenas dessas regiões e até ensaiaram reproduzir o sistema de administração
dos índios que tanto lhes rendeu no século anterior. Mas as bandeiras do século XVIII
adquiriram características muito diferentes, menos preocupadas com a transferência dos
índios para as zonas de povoamento colonial e mais voltadas para a destruição dessas
populações.
A história de São Paulo no século XVII se confunde com a história dos povos indígenas.
Por isso, convém reconhecer que os índios não se limitaram ao papel de tábula rasa dos
missionários ou vítimas passivas dos colonizadores. Foram participantes ativos e conscientes
de uma história que foi pouco generosa com eles.
Fonte: História do Brasil para ocupados: os mais importantes historiadores apresentam de um jeito
original os episódios decisivos e os personagens fascinantes que fizeram o nosso país. /
organização Luciano Figueiredo. 1. ed. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2013.
Inclui bibliografia pág 23/27 http://migre.me/vDwVG