Resumo:
A interiorização da colonização portuguesa no Brasil apenas ocorreu no final século XVII, quando ricos reservatórios de ouro foram descobertos nas futuras Minas Gerais. A penetração se iniciou pelo eixo do Caminho Velho, que ligava o porto de Paraty aos arredores dos Pico do Itacolomi. O movimento de expansão colonial luso-brasileiro do século XVIII representou uma grande ruptura sócio-ambiental na região em função da introdução nesses
‘sertões’ de novos costumes, imaginários, técnicas e bioorganismos. Ainda que a limitação das técnicas tenha minimizado a escala de impactos, as raízes para a destruição massiva dos ecossistemas nativos da região foram plantadas nesse período, especialmente porque as lógicas locais passaram a ser suplantadas pela lógica metropolitana de acumulação de riquezas materiais.
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Sertão:
A idéia de sertão no período colonial está relacionada, mais do que a atributos físicos, a uma percepção sócio-cultural do espaço; os sertões seriam as terras interiores ‘não-civilizadas’, zonas de litígio e conflito, habitadas por selvagens (RIBEIRO, 2008). Nesse sentido, o ambiente do sertão seria caracterizado não necessariamente pelo clima seco e a vegetação rala, mas por uma natureza não-domesticada, hostil. Na visão européia, as florestas densas e exuberantes se enquadravam nessa classificação, não havia animais e plantas familiares aos naturais do Velho Mundo, tudo era novo. Desvinculado do domínio europeu, os sertões seriam os espaços desconhecidos, indomados, habitados por feras e homens ferozes, ‘mundos sem forma’ (WEGNER, 2000).
Mas, assim como a população nativa, vista a partir de uma perspectiva dúbia – fonte de mão-de-obra e conflitos – o sertão embutia também promessas de riqueza: correndo “para o ocidente por um largo espaço [...] sabia-se [...] consistir de terras férteis, nas quais se poderiam instalar lavouras e criação de gados e fundar vilas e cidades. Podia ainda abrigar minas de metais, salitre e pedras preciosas” (SANTOS, 2010, p. 34-35). Cabia à metrópole a incorporação desse sertão ambíguo e movediço que recuava e avançava segundo o movimento da fronteira de colonização luso-brasileira (RODRIGUES, 2003). Os pioneiros paulistas aderiram à vida errante em busca de escravos e terras num primeiro momento, e posteriormente, em busca de ouro. Necessitavam assim se adaptar às condições impostas por uma natureza ‘selvagem’ e dependiam, para isso, de um conhecimento de que apenas os ameríndios dispunham. A cultura ameríndia fornecia as bases técnicas e materiais para que colonos lusos pudessem efetuar suas explorações espaciais: os indivíduos indígenas serviam como guias, decifravam trilhas e apresentavam recursos de sobrevivência no ambiente selvagem; além disso, trabalhavam compulsoriamente nos empreendimentos paulistas ou eram vendidos aos engenhos do nordeste. No início, portanto, os intercursos entre portugueses e nativos, especialmente em termos materiais, foram íntimos e positivos, permitindo o estabelecimento de fortes vínculos entre conquistadores e terra conquistada – ou a conquistar (WEGNER, 2000). O equipamento técnico do Velho Mundo, contudo, não funcionava nesses sertões do ‘Novo Mundo’, implicando em uma reavaliação de hábitos e concepções europeus. A adoção do milho na dieta alimentar, dos pés descalços nas trilhas e do arco e flecha na caça reflete a adaptação dos portugueses às asperezas do meio nesse primeiro momento em que a fronteira exige um constrangimento das heranças externas às tradições indígenas acomodadas previamente àquele ambiente. A penetração do sertão somente foi possível mediante essa nativização/indianização do português bandeirante (DEAN, 1996; WEGNER, 2000) ocorrida além das vilas. Nessas, porém, embora houvesse elementos nativos como a língua e o milho, a relação de dominação do europeu sobre o índio e o mameluco era bastante enfatizada, particularmente através de signos de status como sapatos de couro e velas. Gradualmente em conformidade com a difusão das instituições e estruturas européias que acompanhavam o avanço da fronteira, os mamelucos foram perdendo prestígio, assim como os legados indígenas, não mais necessários após a retomada das tradições do ‘Velho Mundo’. A transposição da cultura européia, então, não acontece de modo pleno, mas de acordo com as demandas cotidianas de um novo ambiente, resultando em uma nova dinâmica entre meio-cultura-sociedade. Os portugueses incorporam práticas da cultura indígena atribuindo-lhe novas lógicas e significados. Os portugueses e seus descendentes culturais luso-brasileiros, na tentativa de reproduzir no Brasil não apenas suas instituições sociais, mas um espaço físico familiar ao ‘Velho Mundo’, impõem sua cultura e ‘natureza’ a um espaço vasto e heterogêneo, importando matérias e imatérias, costumes, animais, plantas, crenças. No decorrer de um século, forças políticas e econômicas concorreram para alterar inteiramente o perfil cultural e ecológico dos sertões de minas: enquanto o sertão dos Cataguases contava no século XVI com uma população escassa (provavelmente em função das viroses trazidas com os navios europeus) e dispersa, predominantemente indígena e mameluca; ao longo setecentos, a região transformou-se numa área populosa com alta concentração demográfica em determinados centros, e com elevado índice de populações africanas, afrodescendentes e brancas – quase inexistentes no século anterior. Há, portanto, uma grande ruptura na dinâmica espacial do interior brasileiro no século XVIII: como esclarece Santos (2008), antes da conquista européia, as relações sócio-ambientais ameríndias eram regidas basicamente por lógicas locais, sendo imprescindível certa continuidade ambiental para manter intactos os ethos indígenas. A chegada dos portugueses, que atuam a partir de imperativos ultraoceânicos, impõe uma nova lógica que se sobrepõe aos interesses locais; para os adventícios, não há necessidade de manter equilíbrio ambiental, pois não há correspondência direta entre os ambientes nativos e os meios de vida coloniais. A metrópole e os colonos visavam apenas explorar as riquezas das minas de maneira rápida sem atentar para questões ecológicas que, direta ou indiretamente, constavam no imaginário ameríndio. Além disso, nem a cultura negra nem a branca haviam sido forjadas na interação com aqueles meios específicos, não há identidade. Apesar da soberania portuguesa, as influências ameríndias impactaram permanentemente as relações entre luso-brasileiros e natureza: nas primeiras décadas de ocupação não-indígena das Minas Gerais, a técnica majoritariamente adotada pelos colonos para cultivo de espécies vegetais originara-se da coivara adaptada, porém a uma lavoura mais intensiva. Mesmo quando em meados do século XVIII, a Coroa tenta incutir métodos sedentários para facilitar a cobrança de impostos, os horticultores relutam em adotar o arado; se por um lado isso revela a importância das raízes indígenas na formação da cultura mineira; por outro, a necessidade de suprir a população nos padrões de base européia, a partir de uma técnica nativa, teria custado, segundo Dean (1996) cerca de seiscentos quilômetros quadrados de floresta secundária anuais ao longo do século XVIII.
A interiorização da colonização portuguesa no Brasil apenas ocorreu no final século XVII, quando ricos reservatórios de ouro foram descobertos nas futuras Minas Gerais. A penetração se iniciou pelo eixo do Caminho Velho, que ligava o porto de Paraty aos arredores dos Pico do Itacolomi. O movimento de expansão colonial luso-brasileiro do século XVIII representou uma grande ruptura sócio-ambiental na região em função da introdução nesses
‘sertões’ de novos costumes, imaginários, técnicas e bioorganismos. Ainda que a limitação das técnicas tenha minimizado a escala de impactos, as raízes para a destruição massiva dos ecossistemas nativos da região foram plantadas nesse período, especialmente porque as lógicas locais passaram a ser suplantadas pela lógica metropolitana de acumulação de riquezas materiais.
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Sertão:
A idéia de sertão no período colonial está relacionada, mais do que a atributos físicos, a uma percepção sócio-cultural do espaço; os sertões seriam as terras interiores ‘não-civilizadas’, zonas de litígio e conflito, habitadas por selvagens (RIBEIRO, 2008). Nesse sentido, o ambiente do sertão seria caracterizado não necessariamente pelo clima seco e a vegetação rala, mas por uma natureza não-domesticada, hostil. Na visão européia, as florestas densas e exuberantes se enquadravam nessa classificação, não havia animais e plantas familiares aos naturais do Velho Mundo, tudo era novo. Desvinculado do domínio europeu, os sertões seriam os espaços desconhecidos, indomados, habitados por feras e homens ferozes, ‘mundos sem forma’ (WEGNER, 2000).
Mas, assim como a população nativa, vista a partir de uma perspectiva dúbia – fonte de mão-de-obra e conflitos – o sertão embutia também promessas de riqueza: correndo “para o ocidente por um largo espaço [...] sabia-se [...] consistir de terras férteis, nas quais se poderiam instalar lavouras e criação de gados e fundar vilas e cidades. Podia ainda abrigar minas de metais, salitre e pedras preciosas” (SANTOS, 2010, p. 34-35). Cabia à metrópole a incorporação desse sertão ambíguo e movediço que recuava e avançava segundo o movimento da fronteira de colonização luso-brasileira (RODRIGUES, 2003). Os pioneiros paulistas aderiram à vida errante em busca de escravos e terras num primeiro momento, e posteriormente, em busca de ouro. Necessitavam assim se adaptar às condições impostas por uma natureza ‘selvagem’ e dependiam, para isso, de um conhecimento de que apenas os ameríndios dispunham. A cultura ameríndia fornecia as bases técnicas e materiais para que colonos lusos pudessem efetuar suas explorações espaciais: os indivíduos indígenas serviam como guias, decifravam trilhas e apresentavam recursos de sobrevivência no ambiente selvagem; além disso, trabalhavam compulsoriamente nos empreendimentos paulistas ou eram vendidos aos engenhos do nordeste. No início, portanto, os intercursos entre portugueses e nativos, especialmente em termos materiais, foram íntimos e positivos, permitindo o estabelecimento de fortes vínculos entre conquistadores e terra conquistada – ou a conquistar (WEGNER, 2000). O equipamento técnico do Velho Mundo, contudo, não funcionava nesses sertões do ‘Novo Mundo’, implicando em uma reavaliação de hábitos e concepções europeus. A adoção do milho na dieta alimentar, dos pés descalços nas trilhas e do arco e flecha na caça reflete a adaptação dos portugueses às asperezas do meio nesse primeiro momento em que a fronteira exige um constrangimento das heranças externas às tradições indígenas acomodadas previamente àquele ambiente. A penetração do sertão somente foi possível mediante essa nativização/indianização do português bandeirante (DEAN, 1996; WEGNER, 2000) ocorrida além das vilas. Nessas, porém, embora houvesse elementos nativos como a língua e o milho, a relação de dominação do europeu sobre o índio e o mameluco era bastante enfatizada, particularmente através de signos de status como sapatos de couro e velas. Gradualmente em conformidade com a difusão das instituições e estruturas européias que acompanhavam o avanço da fronteira, os mamelucos foram perdendo prestígio, assim como os legados indígenas, não mais necessários após a retomada das tradições do ‘Velho Mundo’. A transposição da cultura européia, então, não acontece de modo pleno, mas de acordo com as demandas cotidianas de um novo ambiente, resultando em uma nova dinâmica entre meio-cultura-sociedade. Os portugueses incorporam práticas da cultura indígena atribuindo-lhe novas lógicas e significados. Os portugueses e seus descendentes culturais luso-brasileiros, na tentativa de reproduzir no Brasil não apenas suas instituições sociais, mas um espaço físico familiar ao ‘Velho Mundo’, impõem sua cultura e ‘natureza’ a um espaço vasto e heterogêneo, importando matérias e imatérias, costumes, animais, plantas, crenças. No decorrer de um século, forças políticas e econômicas concorreram para alterar inteiramente o perfil cultural e ecológico dos sertões de minas: enquanto o sertão dos Cataguases contava no século XVI com uma população escassa (provavelmente em função das viroses trazidas com os navios europeus) e dispersa, predominantemente indígena e mameluca; ao longo setecentos, a região transformou-se numa área populosa com alta concentração demográfica em determinados centros, e com elevado índice de populações africanas, afrodescendentes e brancas – quase inexistentes no século anterior. Há, portanto, uma grande ruptura na dinâmica espacial do interior brasileiro no século XVIII: como esclarece Santos (2008), antes da conquista européia, as relações sócio-ambientais ameríndias eram regidas basicamente por lógicas locais, sendo imprescindível certa continuidade ambiental para manter intactos os ethos indígenas. A chegada dos portugueses, que atuam a partir de imperativos ultraoceânicos, impõe uma nova lógica que se sobrepõe aos interesses locais; para os adventícios, não há necessidade de manter equilíbrio ambiental, pois não há correspondência direta entre os ambientes nativos e os meios de vida coloniais. A metrópole e os colonos visavam apenas explorar as riquezas das minas de maneira rápida sem atentar para questões ecológicas que, direta ou indiretamente, constavam no imaginário ameríndio. Além disso, nem a cultura negra nem a branca haviam sido forjadas na interação com aqueles meios específicos, não há identidade. Apesar da soberania portuguesa, as influências ameríndias impactaram permanentemente as relações entre luso-brasileiros e natureza: nas primeiras décadas de ocupação não-indígena das Minas Gerais, a técnica majoritariamente adotada pelos colonos para cultivo de espécies vegetais originara-se da coivara adaptada, porém a uma lavoura mais intensiva. Mesmo quando em meados do século XVIII, a Coroa tenta incutir métodos sedentários para facilitar a cobrança de impostos, os horticultores relutam em adotar o arado; se por um lado isso revela a importância das raízes indígenas na formação da cultura mineira; por outro, a necessidade de suprir a população nos padrões de base européia, a partir de uma técnica nativa, teria custado, segundo Dean (1996) cerca de seiscentos quilômetros quadrados de floresta secundária anuais ao longo do século XVIII.
A Colonização Ecológica do caminho do Ouro: mineração e
devastação no século XVIII.