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O Conde de Assumar e a tentativa de controle das alforrias
O contexto histórico em que o registro cartorial de cartas de alforria aparece associado
com um requerimento de licença judicial para o ato, coincide com o período do governo de D.
Pedro Miguel de Almeida Portugal. Este nobre foi enviado para o Brasil com a missão de ser
o governador da Capitania de São Paulo e Minas do Ouro, a qual comandou entre 1717 e
1721. Na história mineira ficou mais conhecido como Conde de Assumar, título que herdou
do pai em 1718269. Durante o final do século XIX e o início do século XX, D. Pedro de
Almeida ficou conhecido por uma historiografia de cunho nacionalista como um vilão
despótico, que ordenou a execução sem julgamento de Felipe dos Santos – personagem que
para muitos daqueles historiadores foi uma espécie de “protomártir” da independência
brasileira270. Laura de Mello e Souza, concordando com Diogo de Vasconcelos, percebe a
administração de Assumar como um momento de inflexão, a partir do qual os aparelhos
estatais de poder nas Minas paulatinamente afirmaram sua força frente à influência dos
potentados locais271
.
Homem afinado com os valores do seu tempo e com as expectativas do seu grupo
social, o Conde era capaz conciliar um governo de caráter violento com um pensamento
alicerçado na filosofia da Antiguidade clássica. O envolvimento desde muito jovem com as
lides da guerra e da burocracia administrativa, não impediu que sua formação lhe facultasse
noções de várias áreas do conhecimento272. É este personagem que chega às Minas no final da
década de 1710 e encontra um ambiente que, não sua visão, tem “tudo às avessas, e fora de
seu lugar”273. Rapidamente, a possível ameaça que escravos e libertos representavam para a
segurança da Capitania passou a figurar entre suas maiores preocupações. A obsessão que o
Conde tinha pelo assunto é notória na historiografia e patente nos escritos de seu período como governador274. Repetidas vezes, baixou ordens e bandos com o objetivo de destruir os
quilombos que tiravam o sossego do seu governo. Além disso, intentou proibir que negros
portassem armas, que fossem padrinhos em batismos e que realizassem cerimônias de
coroação de seus reis e rainhas. Parte dessas proibições foi motivada por uma rebelião que o
Conde acreditava ter desbaratado antes mesmo de se iniciar. Segundo seu relato, negros de
diferentes partes da Capitania tramavam matar os brancos na quinta-feira de endoenças da
semana santa de 1719275
.
Nas suas correspondências, Assumar não costumava estabelecer diferenciações entre
escravos e forros e entre “africanos” e crioulos. Em várias menções a estes grupos, usou a
categoria “negros” para englobar a todos indistintamente276. Ainda que o Conde não se
preocupasse em categorizar claramente as diferentes “condições” e “qualidades” dos “negros”
a que se referia, ao longo desta análise será discutida sua percepção sobre os libertos e as
alforrias nas Minas.
Após receber de Bernardo Pereira de Gusmão, ouvidor da Comarca do Rio das Velhas,
uma carta sobre os “roubos, homicidios e mais insultos que os negros fizerão”, Assumar viuse
compelido a tomar medidas severas para tentar contornar a situação. Na resposta de 21 de
novembro de 1719, procurou justificar suas decisões e forneceu um interessante quadro
interpretativo para as circunstâncias do momento. Sua preocupação com o assunto não era
recente, pois afirmou que “Eu ha muito tempo que tenho premeditado que os negros são os
que podem pôr em mayor cuidado este Governo”. Também revelou que chegou a propor que
se “cortasse húa arteria do pê a todo o [negro] que fogisse”. Mas um dos pontos mais
destacados da missiva é a visão do Conde sobre o funcionamento da escravidão nas Minas:
(...) tenho entendido que sem húa severidade mui recta contra os
negros, poderâ suceder que hum dia seja este Governo theatro
lastimozo dos seos malefficios e que suceda o mesmo que nos
Palmares de Pernambuco; ou muito peyor pella differente Liberdade que os negros tem neste Governo âs demaes partes da America, sendo
certo que não he verdadeira escravidão a forma em que hoje vivem
quando com mais propriedade se lhe pode chamar liberdade
licencioza277
Para evitar uma situação catastrófica e frear as agitações, Assumar reeditou um bando
de 1717, que interditava “negros” de portarem armas. Fez chegar ao ouvidor Bernardo Pereira
de Gusmão seu descontentamento, causado pelo insuficiente empenho das autoridades da
Capitania no cumprimento de suas determinações, já que era a terceira vez que repetia a
mesma proibição. Tal desobediência tornava suas decisões “ridículas”. Ciente dos maus
resultados anteriores e provavelmente com poucas esperanças na eficácia da medida
reeditada, o Conde investiu também contra outros alvos: as alforrias e os libertos.
O bando de 21 de novembro de 1719 é um documento impressionante, entre outras
razões por revelar o impacto que a realidade multifacetada das Minas causou no governador.
De acordo com ele, os forros e as possibilidades de se alcançar a alforria em plagas mineiras,
estavam no cerne de problemas que tinham extensões bem mais amplas do que “nas demais
partes da América”. Ao se libertarem da escravidão, se desvirtuava o sentido para o qual os
“negros” foram obrigados a atravessar o Oceano Atlântico:
E porquanto he muito contra o serviço de Sua Magestade que
transportandosse da Costa de Guiné e mais partes de Africa para estas
minas os negros para o uso de extrahirem o ouro da terra, se desviem
para outros exercicios mui differentes do fim para que são trazidos, o
que tem principio das muitas alforrias concedidas por seos senhores
aos ditos negros e negras que conseguem a liberdade por meyos
ilicitos, cessando por este modo o benefficio publico e utilidade da
fazenda real, e fazendosse os ditos negros forros senhores de fazendas
e escravos, e tratando e comerciando como se nunca o tivessem sydo,
não lhe concedendo o direito tanta liberdade como elles gozão de que
se seguindo não só estes incovenientes, mas o mayor de todos que he
povoarse este paiz de negros forros que como brutos não conservão a
boa ordem na Republica, e viria esta dentro de pouco tempo a ficar em
maons dos ditos negros278
O desconforto de Assumar diante das alforrias e dos libertos, em grande medida se
fundamentava nos seus prognósticos de futuro, concebidos a partir de sua análise conjuntural. Na previsão do governador, chegaria um tempo em que os forros tomariam para si o controle
das Minas. Dessas pessoas que se comportavam como se nunca tivessem sido escravos,
nasceriam filhos totalmente livres279. Estas constatações justificaram sua determinação de que
a nenhum negro cativo, nem negra possão seos senhores daqui em
diante passarlhe carta de alforria e liberdade emquanto não houver
ordem de Sua Magestade em contrario e que expreçamente derogue
esta dispozição, a qual parecendo contra a liberdade tão favorecida em
direito se faz preciza pellas cauzas alegadas e o senhor que sem
embargo disso der liberdade a negro ou negra perderá para a fazenda
real em dobro o valor do dito negro ou negra a quem o der e o
escrivão ou Tabalião que lhe fizer a escreptura perdera o officio e o
valor do negro, e quando se offereça cazo em que alguã pessoa tenha
justa cauza para conceder liberdade a algum escravo seu mo darâ a
saber por requerimento para que sendome prezente lhe conceda ou
negue a licença para a dita liberdade
280
Em algumas palavras, Assumar tentou limitar uma das práticas mais características e
difundidas nos espaços escravistas ibero-americanos. Ainda que sua decisão aparentemente
atentasse “contra a liberdade tão favorecida em direito”, ela se justificava pela experiência
cotidiana nas Minas e se oferecia como o antídoto para remediar o mal estado das coisas. O
Conde tinha noção do terreno pantanoso em que adentrava e por isso mesmo condicionou
seus arroubos legislatórios à autorização do rei. Enquanto a resposta real não chegasse, as
alforrias estariam suspensas – salvo as que tivessem “justa causa”, que após a avaliação de
seus méritos seriam autorizadas ou indeferidas pelo governador.
Nem os tabeliães foram poupados das decisões de Assumar – que aparentemente
conhecia muito bem os caminhos para se formalizar uma alforria. Corriam o risco de
perderem o ofício, caso registrassem alguma mudança de condição jurídica sem licença. O
Conde chegou a enviar para diversas Câmaras da Capitania uma carta, determinando que os
oficiais do notariado de cada vila declarassem formalmente ciência da proibição. O conteúdo
do bando também deveria ser registrado nos Livros de Notas utilizados pelos tabeliães. Por
último, o governador pediu aos oficiais camarários para “observar inviolavelmente a Ley do
Livro 5º título 70 no principio, a qual se se tivera cuidado na sua observancia não sucederião tantas dezordens com os negros, que tiverão principio no descuido della”281. A referência feita
por Assumar às Ordenações Filipinas pode ser entendida como uma tentativa de demonstrar
que suas medidas tinham amparo legal. O título mencionado pelo governador fixa que:
Nenhum scravo, nem scrava captivo, quer seja branco, quer preto,
viva em caza per si; e se seu senhor lho consentir, pague de cada vez
dez cruzados (...) e o scravo, ou scrava seja preso, e lhe dem vinte
açoutes ao pé do Pelourinho.
E nenhum Mourisco, nem negro, que fosse captivo, assi homem como
mulher, agasalhe, nem recolha na caza, onde viver, algum scravo, ou
scrava captivo, nem dinheiro, nem fato, nem outra couza, que lhe os
captivos derem, ou trouxerem a caza; nem lhe compre couza alguma
(...)282
Na interpretação do Conde, este trecho da legislação justificava a adoção das rigorosas
restrições sobre os “negros” da Capitania. A constatação de que nas Minas os escravos
simultaneamente podiam ser proprietários, levou Assumar a determinar que “a nenhum negro
cativo, ou negra consentirão seos senhores que tenhão outros negros a que chamem de seos”.
Causava estranheza ao governador a aparente indistinção entre os escravos e os libertos da
região, que aos seus olhos formavam um único grupo, vivendo e partilhando os mesmos
espaços territoriais e simbólicos. Por considerar inadmissível esta situação, também impôs no
bando de 21 de novembro de 1719 que:
Nenhum negro forro ou negra poderâ ter escravos a titulo de serviço, e
os que se acharem ao prezente com alguns se desfarão logo delles
dentro em dous mezes contados da publicação deste bando, e não
fazendo assim os perderão e lhe serão confiscados para a fazenda real,
e assim mesmo nenhum negro forro, ou negra poderâ ter trato de
venda de couzas comestiveis, nem bebidas nem poderâ recolher em
sua caza negros cativos nem couza sua na forma que he prohibido
pella Ley do Reino, e de baixo das pennas della283
Com essas medidas, Assumar tinha a pretensão de evitar, ou pelo menos controlar, os
efeitos causados pelas alforrias e pelos libertos nas Minas. A “defesa da ordem e da
ortodoxia” e ao mesmo tempo a preocupação “em compreender os desvios e subversões da norma” – facetas que Laura de Mello e Souza destaca entre os traços de personalidade do
Conde284 – transparecem no seu bando. Diante de todas as ameaças de punições, é possível
perceber na documentação cartorária da época algum efeito prático das proibições do
governador?
Alguns Livros de Notas dos cartórios do Primeiro e do Segundo Ofícios de Sabará se
perderam antes de serem custodiados pelo IPHAN285. Este fato impede o acesso às alforrias
que eventualmente foram registradas no intervalo entre 15 de fevereiro de 1719286 e 11 de
março de 1720287. Some-se a isto, a falta de muitas folhas em um dos livros restantes,
produzidos após a publicação do bando288. Ainda que a documentação consultada possua
descontinuidades seriais, pode-se afiançar que as decisões de Assumar não foram plenamente
acatadas em Sabará. Os tabeliães da Vila continuaram a registrar escrituras e cartas de
alforria, muitas das quais acompanhadas de petições e despachos favoráveis expedidos por um
juiz local. No entanto, alguns indícios sugerem que o impacto do bando na formalização de
mudanças de estatuto jurídico não foi totalmente nulo.
Em outubro de 1720, Francisco Ribeiro Giraldes estava “apurando o seu cabedal”,
porque se encontrava às vésperas de se mudar para Portugal. Aparentemente, não desejava
deixar nenhuma pendência nas Minas e tratou de colocar todos os seus negócios em dia. Um
deles era a alforria da negra Thereza, de nação Mina, “a qual ouve por Tittollo de compra que
della fez a Antonio Ribeiro por preso de sento e sincoenta oitavas de ouro com a condição que
todas as vezes que a dita sua escrava lhe desse as ditas sento e sincoeta oitavas de ouro [se
obrigava] a pasar lhe Carta de Alforria”. Giraldes estava a par do bando de 21 de novembro
de 1719 e encaminhou a seguinte petição ao Conde de Assumar:
Excelentisimo senhor, Dis Francisco Ribeiro Giraldes morador na
Villa Real de Nossa Senhora da Conceicão que trata de seo negocio
que elle Suplicante esta apurando o seo cabedal pera sahir [pera]
[Portugal?] com a determinação de não ter nas minas e com elle
suplicante entre os mais bens que pesuhe he hua escrava de nação mina por nome Thereza a qual antes do bando que Vossa Excelencia
foi servido mandar publicar sobre forrarem escravos tinha dito ja
dado elle suplicante mais da ametade do seo vallor pera se forrar
requer elle suplicante comvinha [?] atestando aos bons serviços que
lhe tem feito e teve [?] este seus filhos molatinhos a quem por trazer
como sua may a duração [?] na auzencia delle suplicante e como elle
esta com a determinação hesta de pasar a Portugal quizera alem do seo
valor que tem Recebido della fazendo lhe graça de lhe pasar sua Carta
de Alforria sendo Vosa Excelencia servido dignase nella conceder a
elle suplicante a graça e faculdade de o poder fazer por tanto Pede a
Vosa Excelencia seja servido em consideração do referido fazer a
graça e merser conceder lhe a dita licença para poder pasar a dita
Carta a sua escrava na forma que exporem a Vosa Excelencia289
Francisco Ribeiro Giraldes, em sua confusa petição, revelou outro motivo além do
pagamento em ouro para a alforria de Thereza: a negra seria a mãe de “seus filhos
molatinhos”. Alguns anos antes deste episódio, Giraldes já libertara um dos filhos de Thereza.
O mulatinho Faustino Ribeiro, que na época tinha “tres mezes pouco mais ou menos”, teve a
libertação registrada via escritura, em 29 de maio 1718. No documento não há confissão de
paternidade, mas a alforria foi justificada pelo fato do senhor “criar o dito Mulatinho com o
Amor Catolico”. Outro aspecto interessante é que no momento em que a escritura de Faustino
foi produzida, sua mãe parecia já ser liberta, embora ainda não possuísse um documento
comprobatório da sua condição. É o que se infere com a afirmação de que o mulatinho era
“filho de huma preta que foi sua escrava por nome Thereza”290. Tudo sugere que Giraldes,
conhecedor das ameaças lançadas por Assumar sobre as alforrias e os libertos, quis evitar
possíveis problemas. Na sua ausência, Thereza poderia enfrentar dificuldades, caso as
medidas previstas no bando fossem observadas pelas autoridades da Capitania. Por ter sido
combinada e ajustada antes da divulgação das proibições, a libertação da negra possuía uma
“justa causa”. A decisão de peticionar ao governador, esperar pelo despacho favorável,
expedido em Vila Rica, em 31 de outubro de 1720, para só então pedir o registro da escritura
de alforria na Vila de Sabará, em 6 de novembro, foi uma estratégia do precavido negociante
para não deixar dúvidas quanto à legalidade do status de Thereza.
A alforria de Izabel, de nação Angola, expõe com pormenores algumas questões que
sugiram após a divulgação do bando. O proprietário da negra, Antonio Jorge da Cruz, a
libertou ao receber 200 oitavas de ouro, em 10 de junho de 1719. A carta não foi registrada
imediatamente e quando resolveu formalizá-la, Izabel enfrentou um panorama adverso. Na
petição que endereçou ao governador, o antigo senhor da negra justificou sua alforria com a
seguinte argumentação:
Excelen[ti]simo Senhor Dis Antonio Jorze da Cruz morador nesta
Villa de nosa Senhora da Conceicão de Sabara que elle suplicante de
sua propria vontade em des de Junho de mil setesentos e dezanove
forou hua sua escrava por nome Izabel de nacão angolla por duzentas
oitavas de ouro que a dita escrava deo e como tal vive desde esse
tempo em sua liberdade e querendo lansar a dita Carta de liberdade
nas notas Recuzão os Tabaliaens Rigestrar lhe para sua segurança em
observancia da ordem em contrario de Vosa Excelencia e porque a
dita Carta foi pasada antes da Lei e a dita Izabel se quer auzentar das
minas para Povoado e não quer que de o dinheiro que tem dado da
Liberdade que goza pois a gozava antes da prohibição de Vosa
Excelencia // Pede a Vosa Excelencia por Serviço de Deos queira dar
Licença pera que qualquer Tabalião posa lancar nas notas a dita Carta
visto ser a dita Negra forra antes da prohibição29
A petição não possui data de redação, mas o despacho favorável aconteceu em 13 de
fevereiro de 1721, na Vila do Carmo. Oito dias depois, em 21 de fevereiro, a carta foi
registrada pelo tabelião Luis Tenorio de Albuquerque, em Sabará. No documento endereçado
ao Conde, Antonio Jorge da Cruz afirmou que Izabel vivia “em sua liberdade” pelo menos
desde o momento em que a alforria foi lavrada, em 10 de junho de 1719. Sugeriu também que
chegou a propor à negra a devolução das 200 oitavas de ouro que recebera pela libertação,
proposta que não foi aceita.
O ex-proprietário também revelou que os tabeliães locais, em virtude do bando de 21
de novembro de 1719, se recusavam a registrar a carta. Embora fosse reconhecido
socialmente, o status da negra padecia com a insegurança jurídica promovida pelas ordens do
governador. Assim como no caso de Thereza, o fato de Izabel ter obtido sua libertação antes
da divulgação do bando, justificava uma decisão favorável ao registro da alforria. Mas é
provável que a maior motivação para o pedido direcionado a Assumar foi o desejo manifestado pela liberta de se retirar das Minas. Durante seu período de trânsito, e também no
cotidiano da nova região em que habitaria, nenhuma dúvida poderia pairar sobre sua
condição. Após obter anuência da maior autoridade da Capitania, Izabel ainda encaminharia a
um juiz de Sabará uma petição requerendo autorização para registrar a alforria em notas. O
cumprimento de todas as formalidades legais tinha o objetivo de evitar eventuais punições e
futuros transtornos.
Ainda que os tabeliães de Sabará tenham continuado a registrar alforrias em seus
Livros de Notas – um desrespeito flagrante às decisões de Assumar –, os casos de Thereza e
de Izabel indicam que a tentativa de controle das mudanças de condição jurídico-social
produziu interferências no cotidiano de Minas Gerais. O bando de 21 de novembro de 1719
não permaneceu totalmente sem efeito ou sem eficácia, embora sua repercussão
aparentemente tenha se restringido a alterações de condição que corriam o risco de sofrer
algum tipo de questionamento. Libertos que resolveram se mudar da região onde obtiveram a
alforria e libertos cujos ex-senhores se retiraram das Minas, provavelmente foram os maiores
interessados em seguir os protocolos estabelecidos pelo Conde. Nessas circunstâncias, as
sensações de instabilidade e de insegurança motivavam o pedido endereçado ao governador
da Capitania, para que autorizasse o registro notarial das alforrias.
As quebras seriais na documentação não permitem acompanhar a trajetória posterior
das proibições impostas por Assumar, uma vez que os Livros de Notas produzidos entre 1722
e 1728 se perderam. Buscar informações em outros fundos cartoriais pode ajudar a
compreender melhor os efeitos do bando de 21 de novembro de 1719, na Capitania. Na
documentação notarial do final da década de 1720, em Sabará, não há mais nenhuma menção
ao assunto, uma evidência de que, como o tempo, a imposição de barreiras legais às mudanças
de condição revelou-se impraticável. Mas é significativa a constatação de que, por um breve
período, alguns tabeliães recusaram-se a registrar alforrias, da mesma forma que alguns
libertos e ex-proprietários sentiram-se coagisdos em virtude de determinações
governamentais. O bando e suas implicações práticas, apesar da enorme distância que houve
entre as decisões do governador e o cumprimento de suas ordens, talvez conformem a
tentativa de controle das alforrias mais contundente a ser desencadeada por representantes da
coroa portuguesa em solo brasileiro.
Há ainda outro elemento a se considerar entre os efeitos decorrentes da legislação
baixada pelo Conde de Assumar. As dimensões da mobilidade física e social percebidas nas Minas setecentistas292, não passaram ao largo do atento olhar dos agentes régios portugueses.
Ao longo do século XVIII várias autoridades externaram opiniões desabonadoras sobre os
libertos, vistos por elas, de acordo com palavras de Eduardo França Paiva, como
“agrupamentos sociais que traziam grande incômodo à toda a sociedade ou, pelo menos, à
parte mais ordenada dela. Roubavam, matavam, vadiavam, desacatavam as normas e
corrompiam o establishment”
293. Em 1732, após consulta do Conselho Ultramarino sobre “os
inconvenientes de haver negros forros nessa Capitania” e a “frequência em que se lhe
concedem as alforrias”, o então governador de Minas Gerais, André de Mello e Castro, o
Conde das Galveas, afirmou que os libertos “ordinariamente são atrevidos, mas no mesmo
tempo trabalham todos nas lavras do ouro, nas dos diamantes, nas roças e comumente faiscam
para si de que se segue a Vossa Majestade a utilidade de seus quintos”. Ainda que
demonstrasse uma visão negativa e estereotipada a respeito dos forros, Mello e Castro,
diferentemente do Conde de Assumar, reconheceu sua importância econômica para a
Capitania e para a arrecadação da fazenda real294
.
Na sociedade mineira setecentista a prova documental de pertencimento a um
determinado grupo social, sobretudo entre os ex-escravos, alcançou uma importância muito
grande. Libertos que circulavam pela Capitania, envolvidos no comércio e na mineração,
dificilmente teriam sossego suficiente caso suas alforrias não estivessem registradas em
Livros de Notas, sob a guarda de algum tabelião. A posse de meios e de documentos para
comprovação de uma condição jurídico-social tornou-se essencial naquele movimentado
território. Desta forma, o bando de Assumar, mesmo que seus parcos resultados imediatos
tenham se perdido rapidamente, pode ter potencializado o sentimento entre os forros de que,
nas Minas, para viverem em segurança, era necessário registrar a alforria. Ainda que
frustradas, as medidas do Conde ajudaram a moldar as “consequências no plano simbólico ou
do imaginário” – expressão que António Manuel Hespanha usou para caracterizar outra dimensão de poder, mas que também é aplicável ao contexto ora analisado – da formalização
das alforrias em solo mineiro295
.
A tensão resultante do choque entre o discurso das autoridades e a prática
incontrolável das libertações, contribuiu para elevar a importância social e simbólica da esfera
notarial e dos tabeliães na Capitania de Minas Gerais. O registro de uma alforria, por mais que
ela já gozasse de respaldo e de reconhecimento entre os membros da comunidade na qual
ocorreu, em muitos casos permitiu que os libertos levassem uma vida mais serena e com
menos chances de enfrentarem sobressaltos relacionados aos lugares sociais que ocupavam.
Além disso, esta estratégia abria outras possibilidades econômicas e profissionais aos forros,
que podiam se deslocar mais livremente por outras regiões. Formalizar um novo status
seguindo os protocolos legais era um caminho palpável para tentar diminuir a sensação de
vulnerabilidade, tanto em relação aos antigos senhores e seus herdeiros, quanto às
autoridades, que vendo nos forros e nas alforrias uma forte razão para as “desordens” nas
Minas, eventualmente vislumbravam decisões com o anseio de controlá-los.
Fonte: Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em História. Linha de pesquisa: História Social da Cultura Orientador: Eduardo França Paiva http://migre.me/vhw4A pág 02-12