quarta-feira, 19 de outubro de 2016

A POLISSEMIA DAS ALFORRIAS: SIGNIFICADOS E DINÂMICAS DAS LIBERTAÇÕES DE ESCRAVOS NAS MINAS GERAIS SETECENTISTAS por Douglas Lima (Transcrição)

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O Conde de Assumar e a tentativa de controle das alforrias 
O contexto histórico em que o registro cartorial de cartas de alforria aparece associado com um requerimento de licença judicial para o ato, coincide com o período do governo de D. Pedro Miguel de Almeida Portugal. Este nobre foi enviado para o Brasil com a missão de ser o governador da Capitania de São Paulo e Minas do Ouro, a qual comandou entre 1717 e 1721. Na história mineira ficou mais conhecido como Conde de Assumar, título que herdou do pai em 1718269. Durante o final do século XIX e o início do século XX, D. Pedro de Almeida ficou conhecido por uma historiografia de cunho nacionalista como um vilão despótico, que ordenou a execução sem julgamento de Felipe dos Santos – personagem que para muitos daqueles historiadores foi uma espécie de “protomártir” da independência brasileira270. Laura de Mello e Souza, concordando com Diogo de Vasconcelos, percebe a administração de Assumar como um momento de inflexão, a partir do qual os aparelhos estatais de poder nas Minas paulatinamente afirmaram sua força frente à influência dos potentados locais271 . Homem afinado com os valores do seu tempo e com as expectativas do seu grupo social, o Conde era capaz conciliar um governo de caráter violento com um pensamento alicerçado na filosofia da Antiguidade clássica. O envolvimento desde muito jovem com as lides da guerra e da burocracia administrativa, não impediu que sua formação lhe facultasse noções de várias áreas do conhecimento272. É este personagem que chega às Minas no final da década de 1710 e encontra um ambiente que, não sua visão, tem “tudo às avessas, e fora de seu lugar”273. Rapidamente, a possível ameaça que escravos e libertos representavam para a segurança da Capitania passou a figurar entre suas maiores preocupações. A obsessão que o Conde tinha pelo assunto é notória na historiografia e patente nos escritos de seu período  como governador274. Repetidas vezes, baixou ordens e bandos com o objetivo de destruir os quilombos que tiravam o sossego do seu governo. Além disso, intentou proibir que negros portassem armas, que fossem padrinhos em batismos e que realizassem cerimônias de coroação de seus reis e rainhas. Parte dessas proibições foi motivada por uma rebelião que o Conde acreditava ter desbaratado antes mesmo de se iniciar. Segundo seu relato, negros de diferentes partes da Capitania tramavam matar os brancos na quinta-feira de endoenças da semana santa de 1719275 . Nas suas correspondências, Assumar não costumava estabelecer diferenciações entre escravos e forros e entre “africanos” e crioulos. Em várias menções a estes grupos, usou a categoria “negros” para englobar a todos indistintamente276. Ainda que o Conde não se preocupasse em categorizar claramente as diferentes “condições” e “qualidades” dos “negros” a que se referia, ao longo desta análise será discutida sua percepção sobre os libertos e as alforrias nas Minas. Após receber de Bernardo Pereira de Gusmão, ouvidor da Comarca do Rio das Velhas, uma carta sobre os “roubos, homicidios e mais insultos que os negros fizerão”, Assumar viuse compelido a tomar medidas severas para tentar contornar a situação. Na resposta de 21 de novembro de 1719, procurou justificar suas decisões e forneceu um interessante quadro interpretativo para as circunstâncias do momento. Sua preocupação com o assunto não era recente, pois afirmou que “Eu ha muito tempo que tenho premeditado que os negros são os que podem pôr em mayor cuidado este Governo”. Também revelou que chegou a propor que se “cortasse húa arteria do pê a todo o [negro] que fogisse”. Mas um dos pontos mais destacados da missiva é a visão do Conde sobre o funcionamento da escravidão nas Minas:
 (...) tenho entendido que sem húa severidade mui recta contra os negros, poderâ suceder que hum dia seja este Governo theatro lastimozo dos seos malefficios e que suceda o mesmo que nos Palmares de Pernambuco; ou muito peyor pella differente Liberdade  que os negros tem neste Governo âs demaes partes da America, sendo certo que não he verdadeira escravidão a forma em que hoje vivem quando com mais propriedade se lhe pode chamar liberdade licencioza277 
Para evitar uma situação catastrófica e frear as agitações, Assumar reeditou um bando de 1717, que interditava “negros” de portarem armas. Fez chegar ao ouvidor Bernardo Pereira de Gusmão seu descontentamento, causado pelo insuficiente empenho das autoridades da Capitania no cumprimento de suas determinações, já que era a terceira vez que repetia a mesma proibição. Tal desobediência tornava suas decisões “ridículas”. Ciente dos maus resultados anteriores e provavelmente com poucas esperanças na eficácia da medida reeditada, o Conde investiu também contra outros alvos: as alforrias e os libertos. O bando de 21 de novembro de 1719 é um documento impressionante, entre outras razões por revelar o impacto que a realidade multifacetada das Minas causou no governador. De acordo com ele, os forros e as possibilidades de se alcançar a alforria em plagas mineiras, estavam no cerne de problemas que tinham extensões bem mais amplas do que “nas demais partes da América”. Ao se libertarem da escravidão, se desvirtuava o sentido para o qual os “negros” foram obrigados a atravessar o Oceano Atlântico: 
E porquanto he muito contra o serviço de Sua Magestade que transportandosse da Costa de Guiné e mais partes de Africa para estas minas os negros para o uso de extrahirem o ouro da terra, se desviem para outros exercicios mui differentes do fim para que são trazidos, o que tem principio das muitas alforrias concedidas por seos senhores aos ditos negros e negras que conseguem a liberdade por meyos ilicitos, cessando por este modo o benefficio publico e utilidade da fazenda real, e fazendosse os ditos negros forros senhores de fazendas e escravos, e tratando e comerciando como se nunca o tivessem sydo, não lhe concedendo o direito tanta liberdade como elles gozão de que se seguindo não só estes incovenientes, mas o mayor de todos que he povoarse este paiz de negros forros que como brutos não conservão a boa ordem na Republica, e viria esta dentro de pouco tempo a ficar em maons dos ditos negros278
 O desconforto de Assumar diante das alforrias e dos libertos, em grande medida se fundamentava nos seus prognósticos de futuro, concebidos a partir de sua análise conjuntural.  Na previsão do governador, chegaria um tempo em que os forros tomariam para si o controle das Minas. Dessas pessoas que se comportavam como se nunca tivessem sido escravos, nasceriam filhos totalmente livres279. Estas constatações justificaram sua determinação de que
                          a nenhum negro cativo, nem negra possão seos senhores daqui em diante passarlhe carta de alforria e liberdade emquanto não houver ordem de Sua Magestade em contrario e que expreçamente derogue esta dispozição, a qual parecendo contra a liberdade tão favorecida em direito se faz preciza pellas cauzas alegadas e o senhor que sem embargo disso der liberdade a negro ou negra perderá para a fazenda real em dobro o valor do dito negro ou negra a quem o der e o escrivão ou Tabalião que lhe fizer a escreptura perdera o officio e o valor do negro, e quando se offereça cazo em que alguã pessoa tenha justa cauza para conceder liberdade a algum escravo seu mo darâ a saber por requerimento para que sendome prezente lhe conceda ou negue a licença para a dita liberdade 280 
Em algumas palavras, Assumar tentou limitar uma das práticas mais características e difundidas nos espaços escravistas ibero-americanos. Ainda que sua decisão aparentemente atentasse “contra a liberdade tão favorecida em direito”, ela se justificava pela experiência cotidiana nas Minas e se oferecia como o antídoto para remediar o mal estado das coisas. O Conde tinha noção do terreno pantanoso em que adentrava e por isso mesmo condicionou seus arroubos legislatórios à autorização do rei. Enquanto a resposta real não chegasse, as alforrias estariam suspensas – salvo as que tivessem “justa causa”, que após a avaliação de seus méritos seriam autorizadas ou indeferidas pelo governador. Nem os tabeliães foram poupados das decisões de Assumar – que aparentemente conhecia muito bem os caminhos para se formalizar uma alforria. Corriam o risco de perderem o ofício, caso registrassem alguma mudança de condição jurídica sem licença. O Conde chegou a enviar para diversas Câmaras da Capitania uma carta, determinando que os oficiais do notariado de cada vila declarassem formalmente ciência da proibição. O conteúdo do bando também deveria ser registrado nos Livros de Notas utilizados pelos tabeliães. Por último, o governador pediu aos oficiais camarários para “observar inviolavelmente a Ley do Livro 5º título 70 no principio, a qual se se tivera cuidado na sua observancia não sucederião tantas dezordens com os negros, que tiverão principio no descuido della”281. A referência feita por Assumar às Ordenações Filipinas pode ser entendida como uma tentativa de demonstrar que suas medidas tinham amparo legal. O título mencionado pelo governador fixa que: 
Nenhum scravo, nem scrava captivo, quer seja branco, quer preto, viva em caza per si; e se seu senhor lho consentir, pague de cada vez dez cruzados (...) e o scravo, ou scrava seja preso, e lhe dem vinte açoutes ao pé do Pelourinho. E nenhum Mourisco, nem negro, que fosse captivo, assi homem como mulher, agasalhe, nem recolha na caza, onde viver, algum scravo, ou scrava captivo, nem dinheiro, nem fato, nem outra couza, que lhe os captivos derem, ou trouxerem a caza; nem lhe compre couza alguma (...)282
Na interpretação do Conde, este trecho da legislação justificava a adoção das rigorosas restrições sobre os “negros” da Capitania. A constatação de que nas Minas os escravos simultaneamente podiam ser proprietários, levou Assumar a determinar que “a nenhum negro cativo, ou negra consentirão seos senhores que tenhão outros negros a que chamem de seos”. Causava estranheza ao governador a aparente indistinção entre os escravos e os libertos da região, que aos seus olhos formavam um único grupo, vivendo e partilhando os mesmos espaços territoriais e simbólicos. Por considerar inadmissível esta situação, também impôs no bando de 21 de novembro de 1719 que:
Nenhum negro forro ou negra poderâ ter escravos a titulo de serviço, e os que se acharem ao prezente com alguns se desfarão logo delles dentro em dous mezes contados da publicação deste bando, e não fazendo assim os perderão e lhe serão confiscados para a fazenda real, e assim mesmo nenhum negro forro, ou negra poderâ ter trato de venda de couzas comestiveis, nem bebidas nem poderâ recolher em sua caza negros cativos nem couza sua na forma que he prohibido pella Ley do Reino, e de baixo das pennas della283  
Com essas medidas, Assumar tinha a pretensão de evitar, ou pelo menos controlar, os efeitos causados pelas alforrias e pelos libertos nas Minas. A “defesa da ordem e da ortodoxia” e ao mesmo tempo a preocupação “em compreender os desvios e subversões da   norma” – facetas que Laura de Mello e Souza destaca entre os traços de personalidade do Conde284 – transparecem no seu bando. Diante de todas as ameaças de punições, é possível perceber na documentação cartorária da época algum efeito prático das proibições do governador? Alguns Livros de Notas dos cartórios do Primeiro e do Segundo Ofícios de Sabará se perderam antes de serem custodiados pelo IPHAN285. Este fato impede o acesso às alforrias que eventualmente foram registradas no intervalo entre 15 de fevereiro de 1719286 e 11 de março de 1720287. Some-se a isto, a falta de muitas folhas em um dos livros restantes, produzidos após a publicação do bando288. Ainda que a documentação consultada possua descontinuidades seriais, pode-se afiançar que as decisões de Assumar não foram plenamente acatadas em Sabará. Os tabeliães da Vila continuaram a registrar escrituras e cartas de alforria, muitas das quais acompanhadas de petições e despachos favoráveis expedidos por um juiz local. No entanto, alguns indícios sugerem que o impacto do bando na formalização de mudanças de estatuto jurídico não foi totalmente nulo. Em outubro de 1720, Francisco Ribeiro Giraldes estava “apurando o seu cabedal”, porque se encontrava às vésperas de se mudar para Portugal. Aparentemente, não desejava deixar nenhuma pendência nas Minas e tratou de colocar todos os seus negócios em dia. Um deles era a alforria da negra Thereza, de nação Mina, “a qual ouve por Tittollo de compra que della fez a Antonio Ribeiro por preso de sento e sincoenta oitavas de ouro com a condição que todas as vezes que a dita sua escrava lhe desse as ditas sento e sincoeta oitavas de ouro [se obrigava] a pasar lhe Carta de Alforria”. Giraldes estava a par do bando de 21 de novembro de 1719 e encaminhou a seguinte petição ao Conde de Assumar:
Excelentisimo senhor, Dis Francisco Ribeiro Giraldes morador na Villa Real de Nossa Senhora da Conceicão que trata de seo negocio que elle Suplicante esta apurando o seo cabedal pera sahir [pera] [Portugal?] com a determinação de não ter nas minas e com elle suplicante entre os mais bens que pesuhe he hua escrava de nação  mina por nome Thereza a qual antes do bando que Vossa Excelencia foi servido mandar publicar sobre forrarem escravos tinha dito ja dado elle suplicante mais da ametade do seo vallor pera se forrar requer elle suplicante comvinha [?] atestando aos bons serviços que lhe tem feito e teve [?] este seus filhos molatinhos a quem por trazer como sua may a duração [?] na auzencia delle suplicante e como elle esta com a determinação hesta de pasar a Portugal quizera alem do seo valor que tem Recebido della fazendo lhe graça de lhe pasar sua Carta de Alforria sendo Vosa Excelencia servido dignase nella conceder a elle suplicante a graça e faculdade de o poder fazer por tanto Pede a Vosa Excelencia seja servido em consideração do referido fazer a graça e merser conceder lhe a dita licença para poder pasar a dita Carta a sua escrava na forma que exporem a Vosa Excelencia289

 Francisco Ribeiro Giraldes, em sua confusa petição, revelou outro motivo além do pagamento em ouro para a alforria de Thereza: a negra seria a mãe de “seus filhos molatinhos”. Alguns anos antes deste episódio, Giraldes já libertara um dos filhos de Thereza. O mulatinho Faustino Ribeiro, que na época tinha “tres mezes pouco mais ou menos”, teve a libertação registrada via escritura, em 29 de maio 1718. No documento não há confissão de paternidade, mas a alforria foi justificada pelo fato do senhor “criar o dito Mulatinho com o Amor Catolico”. Outro aspecto interessante é que no momento em que a escritura de Faustino foi produzida, sua mãe parecia já ser liberta, embora ainda não possuísse um documento comprobatório da sua condição. É o que se infere com a afirmação de que o mulatinho era “filho de huma preta que foi sua escrava por nome Thereza”290. Tudo sugere que Giraldes, conhecedor das ameaças lançadas por Assumar sobre as alforrias e os libertos, quis evitar possíveis problemas. Na sua ausência, Thereza poderia enfrentar dificuldades, caso as medidas previstas no bando fossem observadas pelas autoridades da Capitania. Por ter sido combinada e ajustada antes da divulgação das proibições, a libertação da negra possuía uma “justa causa”. A decisão de peticionar ao governador, esperar pelo despacho favorável, expedido em Vila Rica, em 31 de outubro de 1720, para só então pedir o registro da escritura de alforria na Vila de Sabará, em 6 de novembro, foi uma estratégia do precavido negociante para não deixar dúvidas quanto à legalidade do status de Thereza. 

A alforria de Izabel, de nação Angola, expõe com pormenores algumas questões que sugiram após a divulgação do bando. O proprietário da negra, Antonio Jorge da Cruz, a libertou ao receber 200 oitavas de ouro, em 10 de junho de 1719. A carta não foi registrada imediatamente e quando resolveu formalizá-la, Izabel enfrentou um panorama adverso. Na petição que endereçou ao governador, o antigo senhor da negra justificou sua alforria com a seguinte argumentação:
Excelen[ti]simo Senhor Dis Antonio Jorze da Cruz morador nesta Villa de nosa Senhora da Conceicão de Sabara que elle suplicante de sua propria vontade em des de Junho de mil setesentos e dezanove forou hua sua escrava por nome Izabel de nacão angolla por duzentas oitavas de ouro que a dita escrava deo e como tal vive desde esse tempo em sua liberdade e querendo lansar a dita Carta de liberdade nas notas Recuzão os Tabaliaens Rigestrar lhe para sua segurança em observancia da ordem em contrario de Vosa Excelencia e porque a dita Carta foi pasada antes da Lei e a dita Izabel se quer auzentar das minas para Povoado e não quer que de o dinheiro que tem dado da Liberdade que goza pois a gozava antes da prohibição de Vosa Excelencia // Pede a Vosa Excelencia por Serviço de Deos queira dar Licença pera que qualquer Tabalião posa lancar nas notas a dita Carta visto ser a dita Negra forra antes da prohibição29
  A petição não possui data de redação, mas o despacho favorável aconteceu em 13 de fevereiro de 1721, na Vila do Carmo. Oito dias depois, em 21 de fevereiro, a carta foi registrada pelo tabelião Luis Tenorio de Albuquerque, em Sabará. No documento endereçado ao Conde, Antonio Jorge da Cruz afirmou que Izabel vivia “em sua liberdade” pelo menos desde o momento em que a alforria foi lavrada, em 10 de junho de 1719. Sugeriu também que chegou a propor à negra a devolução das 200 oitavas de ouro que recebera pela libertação, proposta que não foi aceita. O ex-proprietário também revelou que os tabeliães locais, em virtude do bando de 21 de novembro de 1719, se recusavam a registrar a carta. Embora fosse reconhecido socialmente, o status da negra padecia com a insegurança jurídica promovida pelas ordens do governador. Assim como no caso de Thereza, o fato de Izabel ter obtido sua libertação antes da divulgação do bando, justificava uma decisão favorável ao registro da alforria. Mas é provável que a maior motivação para o pedido direcionado a Assumar foi o desejo manifestado pela liberta de se retirar das Minas. Durante seu período de trânsito, e também no cotidiano da nova região em que habitaria, nenhuma dúvida poderia pairar sobre sua condição. Após obter anuência da maior autoridade da Capitania, Izabel ainda encaminharia a um juiz de Sabará uma petição requerendo autorização para registrar a alforria em notas. O cumprimento de todas as formalidades legais tinha o objetivo de evitar eventuais punições e futuros transtornos. Ainda que os tabeliães de Sabará tenham continuado a registrar alforrias em seus Livros de Notas – um desrespeito flagrante às decisões de Assumar –, os casos de Thereza e de Izabel indicam que a tentativa de controle das mudanças de condição jurídico-social produziu interferências no cotidiano de Minas Gerais. O bando de 21 de novembro de 1719 não permaneceu totalmente sem efeito ou sem eficácia, embora sua repercussão aparentemente tenha se restringido a alterações de condição que corriam o risco de sofrer algum tipo de questionamento. Libertos que resolveram se mudar da região onde obtiveram a alforria e libertos cujos ex-senhores se retiraram das Minas, provavelmente foram os maiores interessados em seguir os protocolos estabelecidos pelo Conde. Nessas circunstâncias, as sensações de instabilidade e de insegurança motivavam o pedido endereçado ao governador da Capitania, para que autorizasse o registro notarial das alforrias. As quebras seriais na documentação não permitem acompanhar a trajetória posterior das proibições impostas por Assumar, uma vez que os Livros de Notas produzidos entre 1722 e 1728 se perderam. Buscar informações em outros fundos cartoriais pode ajudar a compreender melhor os efeitos do bando de 21 de novembro de 1719, na Capitania. Na documentação notarial do final da década de 1720, em Sabará, não há mais nenhuma menção ao assunto, uma evidência de que, como o tempo, a imposição de barreiras legais às mudanças de condição revelou-se impraticável. Mas é significativa a constatação de que, por um breve período, alguns tabeliães recusaram-se a registrar alforrias, da mesma forma que alguns libertos e ex-proprietários sentiram-se coagisdos em virtude de determinações governamentais. O bando e suas implicações práticas, apesar da enorme distância que houve entre as decisões do governador e o cumprimento de suas ordens, talvez conformem a tentativa de controle das alforrias mais contundente a ser desencadeada por representantes da coroa portuguesa em solo brasileiro. Há ainda outro elemento a se considerar entre os efeitos decorrentes da legislação baixada pelo Conde de Assumar. As dimensões da mobilidade física e social percebidas nas Minas setecentistas292, não passaram ao largo do atento olhar dos agentes régios portugueses. Ao longo do século XVIII várias autoridades externaram opiniões desabonadoras sobre os libertos, vistos por elas, de acordo com palavras de Eduardo França Paiva, como “agrupamentos sociais que traziam grande incômodo à toda a sociedade ou, pelo menos, à parte mais ordenada dela. Roubavam, matavam, vadiavam, desacatavam as normas e corrompiam o establishment” 293. Em 1732, após consulta do Conselho Ultramarino sobre “os inconvenientes de haver negros forros nessa Capitania” e a “frequência em que se lhe concedem as alforrias”, o então governador de Minas Gerais, André de Mello e Castro, o Conde das Galveas, afirmou que os libertos “ordinariamente são atrevidos, mas no mesmo tempo trabalham todos nas lavras do ouro, nas dos diamantes, nas roças e comumente faiscam para si de que se segue a Vossa Majestade a utilidade de seus quintos”. Ainda que demonstrasse uma visão negativa e estereotipada a respeito dos forros, Mello e Castro, diferentemente do Conde de Assumar, reconheceu sua importância econômica para a Capitania e para a arrecadação da fazenda real294 . Na sociedade mineira setecentista a prova documental de pertencimento a um determinado grupo social, sobretudo entre os ex-escravos, alcançou uma importância muito grande. Libertos que circulavam pela Capitania, envolvidos no comércio e na mineração, dificilmente teriam sossego suficiente caso suas alforrias não estivessem registradas em Livros de Notas, sob a guarda de algum tabelião. A posse de meios e de documentos para comprovação de uma condição jurídico-social tornou-se essencial naquele movimentado território. Desta forma, o bando de Assumar, mesmo que seus parcos resultados imediatos tenham se perdido rapidamente, pode ter potencializado o sentimento entre os forros de que, nas Minas, para viverem em segurança, era necessário registrar a alforria. Ainda que frustradas, as medidas do Conde ajudaram a moldar as “consequências no plano simbólico ou do imaginário” – expressão que António Manuel Hespanha usou para caracterizar outra dimensão de poder, mas que também é aplicável ao contexto ora analisado – da formalização das alforrias em solo mineiro295 . A tensão resultante do choque entre o discurso das autoridades e a prática incontrolável das libertações, contribuiu para elevar a importância social e simbólica da esfera notarial e dos tabeliães na Capitania de Minas Gerais. O registro de uma alforria, por mais que ela já gozasse de respaldo e de reconhecimento entre os membros da comunidade na qual ocorreu, em muitos casos permitiu que os libertos levassem uma vida mais serena e com menos chances de enfrentarem sobressaltos relacionados aos lugares sociais que ocupavam. Além disso, esta estratégia abria outras possibilidades econômicas e profissionais aos forros, que podiam se deslocar mais livremente por outras regiões. Formalizar um novo status seguindo os protocolos legais era um caminho palpável para tentar diminuir a sensação de vulnerabilidade, tanto em relação aos antigos senhores e seus herdeiros, quanto às autoridades, que vendo nos forros e nas alforrias uma forte razão para as “desordens” nas Minas, eventualmente vislumbravam decisões com o anseio de controlá-los.
Fonte: Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em História. Linha de pesquisa: História Social da Cultura Orientador: Eduardo França Paiva http://migre.me/vhw4A pág 02-12

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