O processo de conquista de um território é
fundamentado nas relações de força entre o conquistador e o conquistado.
Quando a população originária é vencida pelos invasores, ela fica à
mercê destes. Caso os vencedores optem por não matar os vencidos e
estes, por medo ou por acreditarem que, naquele momento, não possuem
força suficiente para reverter a situação, resolvam obedecer aos
conquistadores, há a formação de uma verdadeira estrutura de dominação. Esta relação de subordinação se desenvolveu durante o período
colonial brasileiro quando, em 1530, D. João III, Rei de Portugal,
enviou uma expedição objetivando a efetivação do processo de colonização
nas terras de além mar. Apesar de ter havido resistência indígena à
colonização portuguesa, os índios muitas vezes se viram subordinados à
vontade dos conquistadores. Nas missões jesuítas, por exemplo, os índios
eram catequizados de acordo crenças religiosas totalmente divergente
das suas. Ademais, os jesuítas não eram contrários à escravidão
indígena, divergiam dos comerciantes portugueses apenas sob o aspecto de
que estes últimos tinham o interesse em explorar a mão de obra escrava
indígena, principalmente na produção do açúcar; enquanto os jesuítas
objetivavam cristianizar os índios. A conquista portuguesa do território brasileiro também se manifestou
no âmbito jurídico. As normas, regras de convivência e costumes
indígenas nunca foram considerados pelos colonizadores como um Direito a
ser seguido. O máximo que a Coroa portuguesa admitiu foi reconhecer o
Direito dos índios como uma experiência costumeira de caráter
secundário. Nas reduções[1],
os jesuítas, para solucionar as causas indígenas, aplicavam os
princípios religiosos e morais do cristianismo, desrespeitando
reiteradamente a cultura dos índios.
Apesar de os índios representarem, neste momento histórico, o povo
dominado, a historiografia geral relata várias situações em que se
percebe a influência da cultura indígena no modus vivendi dos
portugueses residentes no Brasil como, por exemplo, o fato de alguns
portugueses andarem nus pelas terras de além mar no inicio do processo
de colonização. Disto conclui-se que houve, na realidade, a formação de
várias microestruturas de influência e dominação entre os portugueses e
os índios, uns sobre os outros e não apenas uma única estrutura de
subordinação indígena aos portugueses O Direito vigente no Brasil durante a época colonial era fundamentado
basicamente nas Ordenações Reais portuguesas, quais sejam, Ordenações
Afonsinas, Manuelinas e as Filipinas. O modelo jurídico colonial foi
profundamente marcado pelos princípios e normas lusitanas, refletindo
nitidamente a estrutura de dominação portuguesa.
Em 1532, ocorreu a criação das capitanias hereditárias pelo Rei de
Portugal com o objetivo povoar e desenvolver a produção agrária no
Brasil. Assim, a Coroa portuguesa conferiu amplos poderes aos donatários
no domínio de suas terras. Com isso, a aplicação do Direito nas
capitanias era realizada de acordo com os interesses de cada donatário; a
vontade destes era soberana.
Num segundo momento da exploração colonial, por interesses
preponderantemente econômicos da Coroa portuguesa, foram impostas
restrições à utilização da mão de obra indígena e se desenvolveu o
tráfico negreiro de escravos africanos no Brasil. Inicialmente, este
tráfico era administrado pela Coroa que lucrava através da cobrança
pelas concessões conferidas aos particulares para a exploração deste
mercado.
Assim, tendo em vista que o processo de colonização do Brasil nunca foi primordialmente pautado por uma política de povoamento[2],
mas na exploração das terras e riquezas naturais visando lucros
abundantes e fáceis, a alternativa pela mão de obra escrava era a que
melhor se adequava a estes objetivos, pois, além de reduzir os custos no
processo produtivo, ainda gerava lucros através do tráfico negreiro.
Desta feita, a opção pelo trabalho do índio foi descartada. Criou-se
um discurso baseado em supostas características indígenas como a
ociosidade, aversão ao esforço disciplinado, aproximando-os dos padrões
de comportamento da classe nobre. Isto legitimava a liberdade civil
indígena e os distanciava do estigma social ligado à escravidão.
A escravidão foi deste modo peça fundamental na estrutura colonial.
Teve-se a formação de um sistema basicamente composto por três camadas
sociais, quais sejam, os escravos, a elite agrária e a burguesia
metropolitana da qual fazia parte os comerciantes de escravos.
Assim, com o advento do tráfico de escravos, os negros no Brasil
também passaram a ser um grupo dominado pelos colonizadores portugueses.
A resistência dos escravos africanos teve seu momento mais expressivo
na formação dos quilombos[3] durante os séculos XVII e XVIII.
O sistema colonial mercantilista no Brasil abrangeu o período
compreendido entre os séculos XVI e XVIII; possuía como características o
fato de o país, como colônia portuguesa, ser local de consumo para os
produtos metropolitanos e de produção de riquezas para a metrópole. Os
portugueses tinham interesse, por exemplo, em importar do Brasil
produtos naturais típicos do clima tropical visto que estes não podiam
ser produzidos na Europa. Assim, a colônia servia de instrumento de
poder econômico para a metrópole que objetivava, essencialmente, o
fortalecimento do Estado português como potência européia.
Desde a época da colonização, a estrutura institucional brasileira
caracterizou-se por ser desvinculada dos interesses da sociedade como um
todo, tendo um forte caráter patrimonialista[4],
ou seja, o poder público foi utilizado em favor dos interesses das
oligarquias agrárias, da Coroa portuguesa e da burguesia metropolitana.
A aliança formada pelas elites brasileiras com a Coroa possibilitou a
formação de um modelo estatal garantidor do poder político por estes
grupos sociais. Esta estrutura política foi sempre utilizada como meio
de alcançar interesses particulares e não como instrumento para a
realização do bem estar coletivo.
O patrimonialismo e o privatismo da época da colonial gerou reflexos
na própria estrutura jurídica do século XIX. A Constituição de 1824,
primeiro documento normativo relevante do período posterior à
independência, foi baseada nos ideais da Revolução Francesa e consagrava
os direitos à propriedade, à liberdade, à segurança. Porém, os
preceitos constitucionais eram interpretados pelos donos do poder
de forma particularista, sendo alegados apenas para defender os
interesses das elites e não para aprimorar as condições de vida da
sociedade. Havia, assim, uma interpretação política-econômica da
Constituição e não uma interpretação social. É lamentável perceber que
quase dois séculos após, a atual Constituição brasileira continue sendo
interpretada de forma a beneficiar, na maioria das vezes, não a
coletividade, mas os interesses dos pequenos grupos detentores de poder
político.
Predominava, no período colonial, a falácia de que o trabalho manual
era inferior ao trabalho mental, estando este último intimamente ligado à
idéia de inteligência inata e superior. Isto era utilizado como forma
de valorizar a elite frente aos escravos e artesãos. O trabalho mental
era um monopólio particular da nobreza, representava símbolo de
diferenciação e superioridade, não tendo nenhuma aplicabilidade prática
relevante para a sociedade; era um ornamento e não um instrumento de
conhecimento e transformação social. Infelizmente, esta concepção ainda
se encontra arraigada no pensamento atual da nossa sociedade.
Percebe-se que, muitas vezes, o trabalho mental realizado por um
profissional liberal é mais valorizado, tanto financeira como
socialmente, se comparado a um trabalho físico exercido arduamente por
um trabalhador braçal. Este discurso faz parte de uma verdadeira
estrutura de dominação das classes que detém o conhecimento em relação
às classes menos favorecidas.
“A qualidade particular dessa tão admirada inteligência é ser
simplesmente decorativa, que ela existe em função do próprio contraste
com o trabalho físico, por conseguinte não pode supri-lo ou completá-lo.
Corresponde numa sociedade de coloração aristocrática e personalista, à
necessidade que sente cada individuo de se distinguir dos seus
semelhantes por alguma virtude aparentemente congênita e intransferível,
semelhante por esse lado à nobreza de sangue.”
Em sociedades de origens personalistas, há a prevalência da
cooperação criada por laços familiares ou de amizade em detrimento dos
aspectos puramente profissionais, éticos ou morais.
“(...)é possível acompanhar ao longo da história o predomínio
constante das vontades particulares que encontram seu ambiente próprio
em círculos fechados e pouco acessíveis a uma ordenação impessoal.
Dentre estes círculos foi sem dúvida o da família aquele que se exprimiu
com mais força e desenvoltura em nossa sociedade. E um dos efeitos
decisivos da supremacia incontestável, absorvente do núcleo familiar
está em que as relações que se criam na vida doméstica sempre forneceram
o modelo obrigatório de qualquer composição social entre nós”.
Durante o período colonial brasileiro isso podia ser nitidamente
notado, pois eram os filhos de fazendeiros, educados em Universidades da
Europa em profissões liberais, quem monopolizava a política,
elegendo-se ou promovendo a eleição de seus candidatos, dominando as
posições de destaque no governo e legitimando a estabilidade das
instituições ditas democráticas através de uma estrutura de dominação
aparentemente incontestável.
Este estereótipo do burguês alienado para as causas sociais, com
preocupações políticas de cunho meramente individualista foi
brilhantemente descrito por Machado de Assis, no ano de1881, no livro
Memórias Póstumas de Brás Cubas. Em várias passagens desta obra, o
autor revela nitidamente a influência dos laços familiares e de amizade
no âmbito político:
“(...) Segundo parece, e não é improvável, existe entre os fatos da
vida pública e os da vida particular uma certa ação recíproca, regular e
talvez periódica.[7]
(...) Riu-se meu pai e, depois de rir, tornou a falar sério. Era-me
necessária a carreira política dizia ele. (...) Uma parte de mim mesmo
dizia que sim, que uma esposa formosa e uma posição política eram bem
dignos de apreço.[8]
(...) Dutra veio dizer-me, um dia, que esperasse outra aragem, porque
a candidatura de Lobo Neves era apoiada por grandes influências.”[9]
No Brasil vigorava e ainda vigora a idéia de que:
“(...)é desonroso para uma pessoa abandonar seu partido; os que o fazem são estigmatizados como traidores”.[10]
Porém, como ressalta Sergio Buarque de Holanda:
“(...) esse espírito de fidelidade é bom em si, porém mau na
aplicação; um homem não age bem quando deserta de um parente ou amigo,
mas não age mal quando se retira de um partido político: às vezes o mal
está em se apegar a ele.”[11]
Apesar de ainda haver, na esfera política, a vinculação do âmbito
público com o privado, esta idéia é passível de várias críticas tendo em
vista, por exemplo, que o Estado não deve ser entendido como uma
ampliação do círculo familiar sob o risco de este se tornar instrumento
para a realização de interesses meramente individuais como ocorreu
durante a época colonial. O Estado deve representar uma descontinuidade
da esfera privada por ser o grande responsável pela satisfação das mais
variadas demandas sociais no âmbito democrático.
A colonização portuguesa, através dos seus mecanismos políticos e
jurídicos, trouxe para o Brasil o modelo institucional e estatal europeu
que refletiu diretamente sobre as formas de poder e dominação presentes
até hoje em nosso país.
Assim, ainda há fortes resquícios dos preceitos coloniais na forma de
agir e pensar da sociedade brasileira contemporânea, tanto no âmbito
político como social, econômico e jurídico. Por mais que o país tenha se
transformado com o passar dos séculos, algumas características de sua
história continuam intrínsecas no seu momento presente.
Nas palavras de Sérgio Buarque de Holanda: “a democracia no Brasil
foi sempre um lamentável mal-entendido. Uma aristocracia rural e
semifeudal importou-a e tratou de acomodá-la onde fosse possível, aos
seus direitos e privilégios.”[12]
Fonte: http://migre.me/vfZwf