O território em que hoje se encontra o Estado do Rio Grande do Sul não estava incluído
naquele inicialmente destinado à Coroa Portuguesa pelo Tratado de Tordesilhas (1494)3
.
Tampouco ficava próximo o suficiente de algum dos dois grandes núcleos do Vice-Reino da
Prata, que a Coroa Espanhola fundara na América em 1542: o mais setentrional no Peru e o
mais meridional em Buenos Aires (originando, em 1776, o Vice-Reino do Rio da Prata). Assim,
o atual território sul-rio-grandense era uma área geográfica sem demarcação precisa, sem
fiscalização ou cuidado, e serviu a muitas finalidades, inclusive para abrigar as missões
jesuíticas que aqui chegaram em 1549. Buenos Aires criava, à época, muares para dar apoio às
minas de prata no Peru, atividade que se valia da mão de obra de indígenas escravizados.
Paralelamente, a criação de gado começou ser uma atividade de interesse, pois a exportação do
couro, muito apreciado na Europa, era muito rendosa. Os próprios padres jesuítas iniciaram
rebanhos de gado vacum, criados soltos na Vacaria do Mar, uma extensa área de terra entre a
Lagoa dos Patos e os rios Negro e Jacuí. Isso atraiu a atenção de toda sorte de exploradores,
tanto portugueses quanto castelhanos (contrabandistas, ladrões, comerciantes...), o que obrigou
os jesuítas a procurar outros campos. Formou-se assim a Vacaria dos Pinhais, espalhando-se
pelo planalto e pelos campos de cima da serra. Como isso interessasse aos portugueses,
Domingos de Filgueiras abriu um caminho na costa para levar o gado desde a Colônia de
Sacramento até Laguna, onde era embarcado. Esse itinerário ficou conhecido como o Caminho
da Praia, em descrição datada de 1703, e foi alterado parcialmente por Souza Farias entre 1727 e 1730: o trajeto final abandonava a costa à altura do Morro dos Conventos e, subindo a serra,
alcançava os “campos das Lagens”, rumando daí a Curitiba e depois a Sorocaba, onde se
instalara a grande feira de animais. O tropeiro Cristóvão Pereira de Abreu pensou num caminho
melhor, enveredando, em 1732, da costa para o continente na altura de Viamão (Santo Antônio
da Patrulha – RS), numa jornada pioneira, em que se uniu “a outros tropeiros, reuniu 3 mil
cavalos e mulas, contratou 130 peões e partiu para São Paulo e Minas Gerais, conduzindo a
primeira tropa registrada na história da colônia” (RIBEIRO, 2006, p. 142), chegando ao fim da
jornada por volta de 1735. Essa iniciativa veio justamente ao encontro da grande necessidade
por animais de tração suscitada com o início do ciclo da mineração no Brasil:
A região das minas não tinha estrutura para receber a grande leva de pessoas,
que se dirigiam para lá. Faltava casa, comida e, sobretudo, meios de
transporte. Os terrenos não eram muito propícios para a agricultura nas regiões
das Minas, além de serem pedregosos, eram muito íngremes. O transporte a
cavalo não era um bom negócio porque este tipo de animal não suportava as
dificuldades de caminhos inóspitos, falta de água. A princípio, o transporte era
feito por escravos, indígenas e africanos. Os indivíduos que para lá se dirigiam
não estavam interessados na agricultura, e sim no ouro. Muitas foram as
pessoas que morreram de fome, por inanição. (PAES, 2001, p. 59)
Este foi, enfim, o fator decisivo para o aumento do ingresso de muares pela província
de São Pedro do Rio Grande, “importados da Espanha ou das colônias hispano-americanas”,
onde já havia uma experiência positiva de utilização deste animal em colônias espanholas de
mineração como Potosí (PAES, 2001, p. 59-60). Em breve se estabeleceram criatórios de mulas,
o que resultou em certo conflito:
O crescente comércio desse animal se deu do Sul para as outras regiões da
colônia e a importação concorreu com os criadores de cavalo da colônia
brasileira. Diante dessa situação, os criadores de cavalo de fazendas do sertão
da Bahia, Pernambuco e Piauí vão reclamar junto a Coroa, a qual resolve
proibir não só a expansão da utilização de muares como a existência do animal
nestas regiões, conforme Carta Régia de 19 de junho de 1761. (PAES, 2001,
p. 60)
A proibição, porém, não durou mais que três anos. Reconhecendo o valor e a
necessidade desses animais, a Coroa Portuguesa estabeleceu algumas condições, mas permitiu
na Carta Régia de 02 de Dezembro de 1764 a retomada da criação de mulas no sul e no centrooeste.
Em Minas Gerais, na Bahia e em outros estados do nordeste brasileiro, a ausência de
bons locais para invernada dificultou a criação de muares, que só veio a se intensificar com o aperfeiçoamento de técnicas específicas no final do século XIX, o que colaborou para suprir as
necessidades sempre crescentes do mercado, como se pode verificar a seguir:
No século XIX, as tropas já faziam parte do cenário histórico e a sua
importância não diminuiu com o declínio da exploração aurífera de Minas
Gerais. Muito pelo contrario, as tropas continuaram responsáveis pelo
transporte de mercadorias e de mão de obra escrava, para locais onde não
existiam vias fluviais navegáveis nem a presença de estradas-de-ferro. Com a
chegada da Família Real Portuguesa e com a política de abertura dos portos,
houve o aumento da produção de açúcar, algodão e café. Os tropeiros tinham
muito que caminhar, levando e trazendo mercadorias e informações, fazendo
transporte comercial, ou vendendo animais, de um ponto a outro do Brasil.
(PAES, 2001, p 66)
De modo geral, nos estados do sul havia uma preferência pela utilização da mula,
enquanto que, de Minas Gerais para o norte, o burro parece, até hoje, ser a melhor opção. De
qualquer modo, é um tema que convive com a própria formação do Brasil, como exemplificado
neste comentário de Sathler (2003, p. 20): “Falar em tropa e tropeiros é falar da história de
Minas Gerais e do Brasil que, em muitos momentos, é uma só.”
É ainda Sathler (2003 p. 21) que comenta: “Muito do que sabemos sobre os tropeiros e
do modo viajante da época nos foi narrado pelos naturalistas europeus: os cronistas do século
XIX.” O comentário corrobora a ideia de que esse é um tema ainda pouco abordado pela
historiografia brasileira, embora a atividade tropeira tenha sido de grande importância para o
surgimento e o desenvolvimento econômico de muitas cidades ao longo dos caminhos por onde
seguiam as tropas. Este talvez seja um dos motivos pelos quais sejam ainda frequentemente
encontradas na linguagem cotidiana fraseologismos ligados a diferentes situações vivenciadas
pelos tropeiros em suas jornadas.
Fonseca (2011, p. 3) lembra que criações fraseológicas são “construções permitidas pela
língua e absorvidas pela comunidade linguística” e que “é preciso que a comunidade autorize o
uso desses fraseologismos e reconheça a base cultural comum para que haja o entendimento”.
A revisão dos dados obtidos e as informações disponíveis sobre o fazer tropeiro permitem
admitir que existe uma base cultural comum percebida pelas comunidades que tiveram ou ainda
têm envolvimento com o tema do tropeirismo. De fato, em publicação que reuniu o fruto de
duas pesquisas realizadas em estados emblemáticos para o tropeirismo, Rio Grande do Sul e
São Paulo, os historiadores Alves e Oliveira (2012, p. 7) concluíram “que o vai e vem das tropas
trouxe e levou usos e costumes de uma região para outra, entre os quais os falares comuns aos gaúchos e paulistas, sofrendo pequenas alterações, mas com o mesmo significado.” É nesse
sentido que Dal Corno e Santos (2014), ao analisarem EIC que têm como tema o tropeirismo,
propõem:
Apesar da amplitude de tempo e espaço envolvida, os tropeiros podem ser
considerados um grupo social, já que, em função da constância do ofício,
compartilharam hábitos, atividades, rotinas, vestimentas e culinária típicas,
além de enraizarem no imaginário social mitos, histórias e ditos que
representam sua história e visões de mundo. (DAL CORNO; SANTOS, 2014,
p. 110)
A cultura tropeira tem sido bastante exaltada nos últimos tempos, com eventos que
procuram resgatar (ou ressignificar) algumas tradições, e até com a instituição de dias ou
semanas comemorativas ao tropeirismo. Em algumas cidades do Rio Grande do Sul e do Paraná,
por exemplo, foram erguidos até monumentos para homenagear a mula4, dada a sua importância
para o desenvolvimento econômico e social das comunidades ao longo das rotas.
O burro e a mula, assim, eram animais presentes no cotidiano do tropeiro, muito mais
do que cavalos ou éguas. No sul, além de meio de transporte dos próprios tropeiros, as mulas
eram também mercadoria (mulas xucras) e, após o encerramento da feira de Sorocaba em 1897,
passaram a ser utilizadas para carregar mercadorias diversas. Isso faz com que Villela (2004, p.
616) problematize: “exaltam-se os tropeiros... mas pouco se referem à figura mais importante
desses acontecimentos, sem a qual talvez não tivesse ocorrido o tropeirismo... ou teria sido tudo
bem diferente.”
Pesquisadores sobre o tropeirismo são unânimes em afirmar que o burro e a mula são
os animais mais frequentemente citados na referência às atividades cotidianas do tropeiro.
Assim, não seria de se estranhar sua grande popularização na forma de expressões idiomáticas,
provérbios e ditados que exploram diversas características desses animais. Pensando nisso,
realizou-se, para o presente trabalho, um levantamento de expressões idiomáticas de matriz
comparativa – EIC – contendo os zoônimos burro e mula.
Fonte: Teimoso como uma mula e mais carregado que burro de mascate: heranças
linguístico-culturais em expressões idiomáticas de matriz comparativa http://migre.me/vzN0V