Associados ao caminho do Peabiru há alguns mitos de cunho religioso, em que se
misturam tanto as crenças indígenas quanto até as cristãs dos primeiros missionários que se
dedicaram à catequese, segundo autores dessas correntes históricas.
O Sumé é o mais antigo, e seria um personagem branco, de grande estatura, origem
desconhecida e poderes sobrenaturais. Entre outros ensinamentos, teria ensinado aos indígenas da
costa brasileira o cultivo da mandioca e, ao tentar introduzir outras crenças religiosas entre eles
foi hostilizado de tal sorte que se retirou para o Oeste, em direção ao Peru. Nessa ocasião, usando
seus extraordinários poderes, à medida que caminhava. à sua frente ia se formando a trilha
demarcada, de oito palmos de largura e dois de profundidade, forrada com uma gramínea fina e
leve. Alguns associam o trajeto do caminho com aspectos astronômicos, visualizando no ziguezague
da trilha a posição de determinadas estrelas de constelações da Via Láctea, visíveis nas
latitudes do hemisfério sul. Conta-se que os primeiros missionários teriam indagado aos
indígenas quem construíra o Peabiru, e ao ouvir o nome Sumé, acreditando que somente forças
sobrenaturais o pudessem faze-lo, entenderam Tomé, ou São Tomé, o Apóstolo de Cristo, que
por aqui teria andado em trabalho de evangelização, quinze séculos antes.
Outro mito é o yvy maraey (a “terra sem mal”) ou yvyju miri (a “terra perfeita”), o paraíso,
que se encontraria além da “grande água” (o mar). Corrente entre os índios Guaranis do Paraguai
e da Argentina, dos grupos Mbya e Nandeva, eles partem em busca desse lugar mítico, e se fixam
nas faixas do litoral atlântico, numa posição aparentemente ambígua: o mar representa tanto um
obstáculo a atravessar para atingir o alvo, como um ponto de chegada e, ao mesmo tempo,
terminal, pois ali a vida vai acabar. Este mito tem sido desenvolvido mais recentemente, por
várias correntes indigenistas, na procura de justificar as migrações desses grupos para o litoral
brasileiro, onde constituíram aldeias de uma a duas centenas de indivíduos, algumas delas
reconhecidas (ou em processo de reconhecimento) como “reservas” ou “terras indígenas” (TIs)
pelos governos federal e alguns estaduais. Hoje, algumas dezenas dessas aldeias se espalham pelo
litoral desde o Rio Grande do Sul até o Espírito Santo8
.
No Estado de São Paulo essas migrações se iniciaram no começo do século XX com os
Guarani-Nandeva e, a partir de 1970 com os Guarani-Mbya, que convivem na maioria das
aldeias, mas hoje os Mbyas superam os primeiros na população total, que está em torno de 1.700
a 1.800 indivíduos9
. Distribuídos em 14 TIs, três se localizam no município da capital do estado,
sendo duas na região sul, no distrito de Parelheiros, próximas entre si, e nas imediações de onde a
Trilha dos Tupiniquins atingia o planalto de Piratininga vinda de São Vicente, e a terceira no Pico do Jaraguá, na região norte. As demais estão localizadas no litoral, sendo seis na região da
Baixada Santista, entre São Vicente e Peruíbe, três no litoral sul (uma em Iguape e duas em
Cananéia) e duas no litoral norte (uma entre Bertioga e São Sebastião e outra em Ubatuba).
Coincidência ou não, a maioria das aldeias dos Guaranis está no percurso, ou nas proximidades,
da Trilha dos Tupiniquins, embora não haja registros da existência desses grupos indígenas no
território à época do início da colonização portuguesa.
Os Carijós foram dados como extintos, no território paulista e nas províncias do Sul antes
do final do século XVII10. Porém, é possível que parte deles tenha se refugiado em matas
inacessíveis entre o Paraguai, a Bolívia e as respectivas fronteiras com o Centro-Oeste brasileiro,
ou mesmo na Argentina. A tradição oral das lendas indígenas, passadas de geração em geração,
poderiam ter chegado aos atuais Guaranis, tanto para a busca da “Terra sem Mal”, quanto para o
percurso pelas trilhas do Peabiru. Quiçá sejam eles os únicos que ainda possam indicar os
vestígios atuais desses antigos caminhos, se ainda existirem.
Santo André, novembro de 2004.
Fonte: O autor é professor e pesquisador universitário, estudioso da colonização, povoamento e desenvolvimento posterior do Estado de São Paulo. http://migre.me/vvo5C