O fato dominante da história de São Paulo, durante o seiscentismo,
é á expansão das Bandeiras. O reduzido núcleo de povoamento,
que se condensara e consolidara no século XVI, passava a
exercer uma função nova, como centro irradiador das famosas penetrações de sertanistas: função de desbravamento e de conquistá, tão considerável por suas relevantes consequências para a formação territorial e política do Brasil, mas que de modo algum concorreu
para o desenvolvimento urbano, demográfico e econômico da
vila paulistana.
Inicialmente impulsionado pelo Governador-Geral D. Francisco
de Souza (63), ampliou-se espontaneamente o movimento das
Bandeiras, sob a influência de incoercíveis imperativos, sobretudo
econômicos, ativando-se continuamente até fins do seiscentismo.
Movimento assim tão vasto estimulou as melhores iniciativas, absorveu
as energias mais varonis da população válida, atraída pela
miragem do sertão, onde o bandeirante aventuroso esperava descobrir
a sonhada prosperidade, que lhe negavam as limitadas possibilidades
econômicas dos campos de Piratininga.
A partir da Regência do Príncipe D. Pedro de Portugal (1667),
voltou a Corôa, avidamente interessada na descoberta de minas, a
incentivar os sertanistas de São Paulo, mediante a concessão de favores,
títulos e honrarias. E só quando foram localizadas as primeiras
jazidas auríferas, começou a declinar o movimento, ao qual
sucedeu a época da mineração e do povoamento regular das terras
anexadas ao domínio português, em virtude dessa expansão.
Foram predominantemente econômicas as causas do Bandeirismo.
Era notória a pobreza da vila, como atestam os inventários
paulistas da época colonial, paciente e argutamente analisados por
Alcântara Machado (64). Era frisante o contraste entre o escasso
valor das lavouras de São Paulo e a opulência dos engenhos de
açúcar do Nordeste. Daí, na vida paulistana do século XVII, a .
importância do sertão misterioso e ignorado, "por os moradores não
poderem viver sem o sertão", como declararam os Oficiais da Câmara, numa vereança de 1640 (65), ou porque muitos partiam, à
maneira de Afonso Dias, "...a buscar minha vida neste sertão...»,
conforme depõe com simplicidade aquele sertanista, em seu testa
mento (66). Entretanto, nesse traiçoeiro El-Dorado, o bandeirante
muitas vezes encontrou menos a riqueza que os simples meios de
subsistência, não raro achando apenas a miséria ou a morte.
O primeiro móvel econômico das Bandeiras foi a escravização
do indígena . Já existia a escravidão, desde os primórdios do povoamento
em São Vicente. E, em 1548, um observador coevo calculava,
para a Capitania de Martim Afonso de Souza, cerca de 3.000
escravos, numa população em que havia somente 600 brancos (67).
A necessidade de mão-de-obra para as roças e fazendas locais,
a utilização de arcos e flechas para a guerra e a. defesa dos
colonos, mais ainda a procura de braços para os latifúndios açucareiros
do Nordeste, durante o domínio holandês, quando ficou temporariamente
interrompido o tráfico de negros africanos — todas
essas causas determinaram o desenvolvimento das Bandeiras de
apresamento ou de caça ao índio, de "cunho francamente guerreiro"
(68).
Com a decadência do Bandeirismo de apresamento (69), o objetivo
econômico das expedições passou a ser a busca de minas de
ouro e pedras preciosas, que assume maior vulto com a heroica
arrancada de Pernão Dias Pais, no sertão mineiro, a partir de 1673.
Desde então, multiplicaram-se as Bandeiras do ciclo do ouro, no
rumo das Minas-Gerais, desviado depois para Mato Grosso e Goiás,
quando o advento dos Emboabas provocou o interesse por novos
descobertos auríferos.
O elemento humano por excelência das Bandeiras foi o mameluco
paulista do século XVII, audaz, vigoroso e fragueiro, afeito
ao meio geográfico em que se desenrolava sua espantosa aventura.
_Essa gente mestiça — a "raça de gigantes", na consagrada frase de
Saint-Hilaire (70) — produto do cruzamento do português com o
índio, herdara das duas raças geradoras as qualidades típicas do
sertanista, apuradas pela consanguinidade e a endogamia, no isolamento
do planalto (71). Aqueles homens fortes e rudes, que se
lançavam ao continuado devassamento do sertão remoto, tudo empenhavam
— robustez física e energias morais, cabedais e crédito,
na organização da Bandeira.
"Sociedade de capital e indústria", definiu-a Alcântara Machado
(72), na qual o bandeirante (a exemplo do que se verifica
no comércio marítimo) muitas vezes recorria ao "armador", que
lhe fornecia os elementos para a "armação" da entrada: escravos,
correntes, armas, munições de guerra e de boca, e •as famosas couraças
acolchoadas de algodão (73).
Dessa empreitada febril, que assume aspectos de quase migração
desordenada, todos participam — homens feitos, anciões,
adolescentes e até filhos de menor idade, que os pais incluem nas
expedições. A vila ficou, por vezes, despovoada, "despejada pelos
moradores serem idos ao sertão", conforme reza uma Ata municipal
de 1623. E o formidável movimento não se detém nem mesmo
diante dos obstáculos erguidos pela natureza agreste, das ciladas
do bugre hostil, da penosa escassez de alimentos ,do desconforto
e das fadigas de intermináveis jornadas, em suma das mil dificuldades
que o rudimentar aparelhamento das Bandeiras mal podia
vencer (74) .
Surpreende, por isso, que, assim providas de meios tão parcos,
tenham as Bandeiras atingido limites tão extremos, palmilhando
terras do Paraguai e da Argentina, ao devassar o sertão meridional,
no encalço da escravaria indígena, raiando pelo sertão nordestino
e pelo vale do Amazonas em expedições de guerra ao gentio
rebelde, embrenhando-se pelo sertão centro-ocidental, em busca do
ouro.
Essa prodigiosa expansão, que ensejou triplicar o domínio colonial
português, a oeste do meridiano de Tordesilhas, e formar a
imensa base territorial do Brasil hodierno, foi condicionada por fatores
geográficos especiais, a começar pela posição da vila paulistana.
Por sua situação, como centro demográfico isolado no planalto,
era São Paulo o ponto de convergência e partida das vias de
penetração para as regiões do Sul é do Centro-Oeste do país (75).
No rumo do Sul, além das modestas elevações dos terrenos da
série São Roque, abriam-se os caminhos até o vale do Paranapanema
e de seus afluentes da margem esquerda, em demanda das
"missões" mantidas pelos Jesuítas espanhóis, em terras do atual
Estado dó Paraná. O vale do Tietê norteava a penetração para
Oeste, á partir de Araritaguaba (Porto Feliz), permitindo alcançar o rio Paraná e seus tributários da margem direita, em terras.
de Mato Grosso. Ainda no rumo do Brasil Central e facilitado pelas
linhas do relevo, o caminho que levava ao atual Triângulo Mineiro,
passando por Jundiaí, Campinas e Franca, assegurava o acesso
aos planaltos de Goiás e à região de Cuiabá. E o centro montanhoso
de Minas Gerais atingia-se Pelos vales modelados nos contrafortes
ocidentais da Mantiqueira (na atual região de Atibaia e
Bragança), bem como pelo vale do médio Paraíba do Sul, ao qual -
se chegava sem obstáculos, através da região de Mogi das Cruzes,
bastando vencer a linha divisora de águas do Tietê-Paraíba. Estes ustimos caminho, tão bem descrito por Antonil (76), conduzia ao
sopé da Mantiqueira, onde os sertanistas logo descobriram colos
transporníveis, como a garganta de Embaú, nas proximidades do antigo
povoamento de Guiapacaré (atual Lorena). Eméritos pesquisadores (77) esquematizaram admiravelmente essas vias de penetração
e de acesso, fixadas através de caminhos explorados pelas
Bandeiras e traçados conforme a disposição da rede hidrográfica,
que evidentemente as favorecia (78).
Em pleno surto do Bandeirismo, reforçou-se aquele espírito
de autonomia,. que se vinha definindo desde o século XVI. Plenamente
cônscios do vulto de seus arrojados cometimentos, experimentavam
os bandeirantes o sentimento cada vez mais vivo de
uma comunidade paulista, quase inteiramente isolada, no seio do
império português.
Em suas destemerosas empreitadas, os paulistas não recuavam
diante de imposições das autoridades lusitanas, agiam contra as
leis restritivas da escravidão, procediam como régulos nas regiões
senhoreadas pelas Bandeiras (79). Essas manifestações autonomistas,
que culminaram no episódio da tentativa de aclamação de Amador
Bueno como Rei, em 1641, ainda perduraram até fins do seiscentismo
(80) e primeira década do século XVIII (81). Em 1693,
o Governador do Rio de Janeiro, Antônio Pais de Sande, inforrnava o Rei D. Pedro II, a respeito dos paulistas:
"são homens briosos, valentes, impacientes da menor
injúria, ambiciosos de honras, amantíssimos de sua
pátria, benéficos aos forasteiros e adversíssimos a todo
ato servil".
Em meio a essas afirmações de independência, agravou-se o
conflito com os Jesuítas, infatigáveis protetores do gentio, que acabaram
sendo expulsos da vila em 1640, por ação conjunta do povo
e dês autoridades municipais (82). Entrava assim em declínio a antiga -função religiosa, tão decisiva nas origens do primitivo povoado
piratiningano. Restaurados pouco mais tarde, continuariam,
porém, os padres da Companhia de Jesus a desempenhar papel de
.relevo no ensino, em seu tradicional Colégio (83 ).
Fonte: SÃO PAULO NOS TEMPOS COLONIAIS. http://migre.me/vzmSj pág 69/74