Para uma terra de tudo desprovida, imensa, sem esperanças de minas, habitada por indígenas ferozes, para essa terra só viriam homens que o rei mandasse em serviço, ou catequistas-apóstolos, que uma fé ardente arrebatasse para o sacrifício, ou então degredados por força das leis criminais, ou nela ficariam náufragos de expedições ousadas e temerárias, ou desgraçados fugidos de navios, onde a vida era pior que a que eles encontrariam entre os canibais.
Foram poucos, muito poucos, os que vieram habitar o Novo Mundo em princípios do século 16. Alguns nomes aparecem nas Atas das câmaras municipais e nos Inventários e Testamentos, que merecem atenção. E, felizmente, não foram eles fidalgos.
Ao retirar-se para Portugal, nos meados de 1533, Martim Afonso de Souza deixou menos gente, do pessoal de sua frota, do que a que encontrou no porto de S. Vicente, em 1532, ao que suponho.
As terras de S. Vicente nenhum atrativo tinham para reter gente aventureira, sequiosa de se enriquecer e rapidamente.
A região era habitada por um gentio bárbaro, cruel, comedor de carne humana. No litoral, na baixada, os alagadiços, em que mais se formavam mangues que canaviais, poucos e insignificantes engenhos poderiam produzir açúcar, e sem meios de exportação. E não só de açúcar se vive.
Só alguns séculos depois, iria ser ele convertido em bananais.
Na serra, na Paranapiacaba, que se empina asperamente diante do mar, as terras são as piores que constituem o Estado de S. Paulo. Escarpadas, de dificílimo e perigoso acesso, voltadas para o antártico, e, por isto, sujeitas a contínuos nevoeiros, úmidos, garoentos ou chuvosos, açoitadas por frios e devastadores ventos do Sul, essas terras nada produziam.
Não obstante o seu conhecido espírito de vigorosa iniciativa e de perseverante decisão para o trabalho, os paulistas ainda não conseguiram transformar as vertentes de Paranapiacaba em zona de produção e de proveito.
Apesar de todos os esforços, das construções de diversas estradas de diferentes espécies, algumas magníficas, que desde muito tempo, e que atualmente ligam a opulenta capital do Estado ao seu esplêndido porto marítimo, situado em Santos, nessas terras nada existe, a não ser talvez a captação das águas pela companhia Light, continuando todas, mesmo hoje, mais ou menos, como no tempo de Martim Afonso de Souza [1], vestidas de matas ordinárias que à distância, dão a encantadora ilusão de florestas, mas que não se prestam para nenhuma cultura, nem permitem chácaras de recreio, quintas de repouso ou mesmo casas de moradia.
Os donatários de largas sesmarias, concedidas por Martim Afonso durante a sua estada em S. Vicente, aí não se fixaram.
Pero de Goes foi-se logo embora; fez-se donatário da Paraíba do Sul, onde também não foi feliz, e só voltou, para a Bahia, com Tomé de Souza, como seu capitão do mar. De Ruy Pinto e de Francisco Pinto nunca mais se ouviu falar, ou pelo menos, deles só há menção nos documentos coevos para a guerra aos carijós, que, aliás, não fizeram. Só ficaram aí os que já se ocupavam do tráfico de escravos indígenas e alguns poucos mais.
Pode-se considerar porém o povoamento de S. Vicente, oficialmente, com o estabelecimento do primeiro governador do Brasil. Pelo menos é desse tempo que se encontram documentos locais, que o fazem presumir, na correspondência de Tomé de Souza e de seus companheiros com a metrópole, nas cartas dos jesuítas aos seus superiores, nas Atas da Câmara de Santo André e nas de S. Paulo, nos Inventários e Testamentos dos primitivos tempos, nos arquivos dispersos e estragados de algumas ordens religiosas. Difícil é encontrar informações nos arquivos portugueses. Tudo mais desapareceu ou não existiu ou funda-se em lendas e tradições discutíveis.
Todo esse povoamento se fez muito lentamente, muito vagarosamente, chegando mesmo a tal abatimento, que, em certa época – (carta do padre Manuel da Nóbrega ao provincial de Portugal em 1557 – Cartas Jesuíticas do Brasil, vol. 1º, pág. 174), Manuel da Nóbrega escreveu da Bahia que "a capitania de S. Vicente se estava despovoando, pela pouca conta e cuidado que el-rei e Martim Afonso têm"; e lembrou que seria bom ter a Companhia lá um ninho onde se recolhesse, quando de todo S. Vicente se despovoasse, como já disse.
Manuel da Nóbrega estava verificando a pouca conta e cuidado que o rei e o donatário tinham pelo povoamento; e, prevendo o seu abandono completo, previdentemente sugeria que a Companhia de Jesus assegurasse aí, além da catequese, a posse e domínio.
Mas os portugueses, por iniciativa própria, e os mestiços, mamelucos, iam conservar para o Brasil as terras de S. Vicente e os seus sertões, como vamos ver.
Desses que aí já estavam, dos que ficaram, e dos que vieram após 1549, até o fim do segundo governo de d. Francisco de Souza (1612), podem-se respigar algumas poucas e lacunosas informações.
Entre esses há algumas figuras bem interessantes, que estão pedindo melhor e maior estudo, que sem dúvida ainda será feito. Entre eles foi João Ramalho, uma das mais curiosas.
Foram poucos, muito poucos, os que vieram habitar o Novo Mundo em princípios do século 16. Alguns nomes aparecem nas Atas das câmaras municipais e nos Inventários e Testamentos, que merecem atenção. E, felizmente, não foram eles fidalgos.
Ao retirar-se para Portugal, nos meados de 1533, Martim Afonso de Souza deixou menos gente, do pessoal de sua frota, do que a que encontrou no porto de S. Vicente, em 1532, ao que suponho.
As terras de S. Vicente nenhum atrativo tinham para reter gente aventureira, sequiosa de se enriquecer e rapidamente.
A região era habitada por um gentio bárbaro, cruel, comedor de carne humana. No litoral, na baixada, os alagadiços, em que mais se formavam mangues que canaviais, poucos e insignificantes engenhos poderiam produzir açúcar, e sem meios de exportação. E não só de açúcar se vive.
Só alguns séculos depois, iria ser ele convertido em bananais.
Na serra, na Paranapiacaba, que se empina asperamente diante do mar, as terras são as piores que constituem o Estado de S. Paulo. Escarpadas, de dificílimo e perigoso acesso, voltadas para o antártico, e, por isto, sujeitas a contínuos nevoeiros, úmidos, garoentos ou chuvosos, açoitadas por frios e devastadores ventos do Sul, essas terras nada produziam.
Não obstante o seu conhecido espírito de vigorosa iniciativa e de perseverante decisão para o trabalho, os paulistas ainda não conseguiram transformar as vertentes de Paranapiacaba em zona de produção e de proveito.
Apesar de todos os esforços, das construções de diversas estradas de diferentes espécies, algumas magníficas, que desde muito tempo, e que atualmente ligam a opulenta capital do Estado ao seu esplêndido porto marítimo, situado em Santos, nessas terras nada existe, a não ser talvez a captação das águas pela companhia Light, continuando todas, mesmo hoje, mais ou menos, como no tempo de Martim Afonso de Souza [1], vestidas de matas ordinárias que à distância, dão a encantadora ilusão de florestas, mas que não se prestam para nenhuma cultura, nem permitem chácaras de recreio, quintas de repouso ou mesmo casas de moradia.
Os donatários de largas sesmarias, concedidas por Martim Afonso durante a sua estada em S. Vicente, aí não se fixaram.
Pero de Goes foi-se logo embora; fez-se donatário da Paraíba do Sul, onde também não foi feliz, e só voltou, para a Bahia, com Tomé de Souza, como seu capitão do mar. De Ruy Pinto e de Francisco Pinto nunca mais se ouviu falar, ou pelo menos, deles só há menção nos documentos coevos para a guerra aos carijós, que, aliás, não fizeram. Só ficaram aí os que já se ocupavam do tráfico de escravos indígenas e alguns poucos mais.
Pode-se considerar porém o povoamento de S. Vicente, oficialmente, com o estabelecimento do primeiro governador do Brasil. Pelo menos é desse tempo que se encontram documentos locais, que o fazem presumir, na correspondência de Tomé de Souza e de seus companheiros com a metrópole, nas cartas dos jesuítas aos seus superiores, nas Atas da Câmara de Santo André e nas de S. Paulo, nos Inventários e Testamentos dos primitivos tempos, nos arquivos dispersos e estragados de algumas ordens religiosas. Difícil é encontrar informações nos arquivos portugueses. Tudo mais desapareceu ou não existiu ou funda-se em lendas e tradições discutíveis.
Todo esse povoamento se fez muito lentamente, muito vagarosamente, chegando mesmo a tal abatimento, que, em certa época – (carta do padre Manuel da Nóbrega ao provincial de Portugal em 1557 – Cartas Jesuíticas do Brasil, vol. 1º, pág. 174), Manuel da Nóbrega escreveu da Bahia que "a capitania de S. Vicente se estava despovoando, pela pouca conta e cuidado que el-rei e Martim Afonso têm"; e lembrou que seria bom ter a Companhia lá um ninho onde se recolhesse, quando de todo S. Vicente se despovoasse, como já disse.
Manuel da Nóbrega estava verificando a pouca conta e cuidado que o rei e o donatário tinham pelo povoamento; e, prevendo o seu abandono completo, previdentemente sugeria que a Companhia de Jesus assegurasse aí, além da catequese, a posse e domínio.
Mas os portugueses, por iniciativa própria, e os mestiços, mamelucos, iam conservar para o Brasil as terras de S. Vicente e os seus sertões, como vamos ver.
Desses que aí já estavam, dos que ficaram, e dos que vieram após 1549, até o fim do segundo governo de d. Francisco de Souza (1612), podem-se respigar algumas poucas e lacunosas informações.
Entre esses há algumas figuras bem interessantes, que estão pedindo melhor e maior estudo, que sem dúvida ainda será feito. Entre eles foi João Ramalho, uma das mais curiosas.
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§9º - AFONSO SARDINHA
Não se pode afirmar ao certo quando Afonso Sardinha chegou à Capitania de S.
Vicente; mas parece ter sido ele um dos seus mais antigos moradores.
Residiu primeiro em Santos, porque no seu testamento (Azevedo Marques,
Apontamentos) fala, e por vezes, em papéis de crédito que lhe levaram os ingleses, e também de umas casas, que naquela localidade
possuiu, cujos títulos lhe levaram os ingleses.
Esses
ingleses seriam os das armadas de Felton em 1587 ou de Thomaz Cavendish
em 1591-1592. Mas passou depois a morar na vila de S.
Paulo e no seu termo, onde tinha trapiches de açúcar e gado em sua
fazenda, vendia
marmelada, emprestava dinheiro aos capitães-mores de S.
Vicente e alugava casas aos vigários, fazia vir negros da África e
comprava peles em
Buenos Aires. Tudo em pequena quantidade, pois que para a
metrópole só havia uma viagem marítima cada ano, e essa, bem precária.
Mais raras e mais
precárias deveriam ser as viagens para outros pontos.
Lorde Macaulay (Ensaios Históricos,
vol. 1º, pág. 246 em estudo sobre
Lorde Clive) informa que as relações com a Europa eram
infinitamente pouco freqüentes. A viagem para o Cabo de Boa Esperança,
que, em 1860 se
fazia em três meses, consumia normalmente ainda por 1730,
mais de seis meses, num tempo em que a Inglaterra já começava a dominar
os mares e a sua
marinha era superior à portuguesa. Nesse mesmo estudo
sobre Lord Clive, informa ainda que, numa de suas viagens, Lorde Clive
foi obrigado a
aportar no Brasil, onde aprendeu algumas palavras
portuguesas, gastando na sua viagem um tempo imenso, tais os riscos e
dificuldades que as
navegações do Atlântico ofereciam.
José de Anchieta (Cartas Jesuíticas, vol. 3º, pág. 85) reclamava
paciência para as informações enviadas de S. Paulo de Piratininga para a Europa, pois que para lá "de ano em ano parte apenas um navio".
Dada a lentidão das coisas coloniais, o pequeno valor que
elas representavam e a pouca importância que a elas se davam, não é
temerário supor que
em 1583, a comunicação marítima com a metrópole fosse
ainda anual.
Foi ele, entretanto, uma das principais figuras da capitania e dela foi
conquistador e povoador. Era analfabeto e sua assinatura era feita com uma cruz com três hastes.
Afonso Sardinha parece ter sido homem jeitoso; pertencia à classe dos que hoje
são chamados "despistadores", sabendo conduzir-se entre as duas correntes que dividiam a capitania – jesuítas e colonos – agradável a
ambas, sem suscetibilizar nenhuma, para se filiar à vencedora.
Vivia
bem com os jesuítas, e havia resolvido, desde 2 de novembro de 1592,
deixar-lhes por sua morte em testamento público todos os
seus bens, o que se realizou a 9 de julho de 1615 (Azevedo Marques, na
sua Cronologia)
mas votava com os colonos, impedindo que as aldeias fossem entregues aos padres da Companhia de Jesus.
Os jesuítas eram contrários às guerras contra os índios, e influíam sobre o
capitão-mor Jorge Correia, para que as não fizesse (Azevedo Marques, Cronologia – Atas, vol. 1º, págs. 446-8).
Não tomou parte na governança da vila de Santo André, tendo-se em vista que o
seu nome não consta nas atas publicadas.
As
atas da Câmara da vila de S. Paulo começam em 1562 e vão até 1564, e
continuam em 1572, havendo, pois, um hiato de oito anos
nos papéis municipais paulistas. De 1562 a 1564, o nome de Sardinha não
aparece entre os
da governança da terra e nada se pode saber até 16 de
março de 1572, data em que recomeçam as atas.
Em 1572 foi ele eleito vereador e nomeado almotacé em 1575. Foi de novo eleito
vereador em 1576 e em 1590 (Atas da Câmara desses anos, vol. 1º, págs. 46, 59, 89, e 377).
Em abril de 1578, no inventário de Damião Simões, aparece ele se obrigando
pelo pagamento de uma foice de resgate avaliada em 150 réis, arrematada por Bento Frias (Inventários e Testamentos, volume 1º, pág. 8).
Em 20 de abril de 1592, foi nomeado pelo capitão-mor Jorge Correia para
capitão da gente da vila de S. Paulo e seus termos (Registro Geral, vol. 1º, pág. 51).
A Câmara de S. Paulo, composta dos juízes João de Prado e Pedro Álvares, dos
vereadores Fernão Dias e Antônio Preto, a 2 de maio desse ano (Atas,
vol. 1º, págs. 439 e 440), fez objeções e criou dificuldades para
registrar essa nomeação, sob o fundamento de que "a vila
nunca tivera outro capitão senão o capitão da terra". O procurador do
conselho, Alonso
Peres, achou procedente essas razões, mas alegou,
entretanto, que a terra estava ameaçada e que os inimigos estavam a
jornada e meia da vila.
Todos
ficaram concordes a respeito, resolvendo, porém, esperar o capitão-mor,
Jorge Correia, para tratar sobre o assunto, não impedindo,
entretanto, que Afonso Sardinha exercesse as suas funções sem, porém,
mandar registrar
a provisão (Atas, vol. 1º, págs. 439 e 440). A vila de S. Paulo estava com efeito ameaçada de sério ataque por parte dos índios inimigos.
A 23 de agosto de 1592 (Atas, vol. 1º, pág. 445) os oficiais da Câmara
se reuniram para tratar da necessidade de uma entrada ao sertão da capitania "para ver o estado dos nossos inimigos", com os quais estavam
em guerra, havia dois ou três anos (Atas, vol. 1º,
pág. 442), já tendo protestado perante o capitão-mor. Leram, então, e
também aos
moradores da vila que todos foram convocados, o capítulo
de uma carta do capitão Jorge Correia que dizia que "se parecesse bom se
fizesse o
salto", e logo foi deliberado que se fizesse a guerra com o
maior "ímpeto de gente e com toda a brevidade" e que Jorge Correia
mandasse a gente de
Itanhaém e de S. Vicente.
Houve,
porém, sério rebate dos índios contrários, sendo grave a situação e
"estando os nossos atemorizados", Jorge Correia mandou
Afonso Sardinha ao sertão, em seu nome, ver o estado em que estavam os
índios contrários ou
dar-lhes guerra com a maior segurança podendo levar todos
os índios da capitania (30 set. 1592, Reg. Geral, vol. 1º, pág. 59). Queria
contemporizar.
Jorge
Correia ainda quis contemporizar alegando o perigo da guerra no mar com
os piratas estrangeiros, e mais ser necessário pedir
socorro ao Rio de Janeiro. A Câmara, porém, vigorosamente repeliu as
alegações protelatórias.
Essa entrada se fez, pois que no inventário de Catarina Unhate, em 1613, foi
avaliado o índio Francisco, "Pés Largos", da viagem de Afonso Sardinha (Inv. e Test.,
vol. 1º pág. 270). Dada a forma vaga com que eram
feitos os inventários, a cativação do índio Francisco
poderia ter sido feita, entretanto, antes ou depois desse ano e por
Afonso Sardinha, o
moço, pois que ambos entraram ao sertão em diversas épocas. O padre Manuel da Fonseca, porém, na Biografia do Padre Belchior de Pontes,
a qual foi escrita em 1752, narra que a aldeia de
Carapicuíba fora povoada por índios trazidos do sertão por indústria de
Afonso Sardinha, que por
sua morte os deixou ao Colégio de S. Paulo (pág. 118).
Quando
foi nomeado capitão para entrar ao sertão, em 1592, Afonso Sardinha, o
velho, fez o seu extenso testamento lavrado por tabelião, a
2 de novembro desse ano, e nele declara que do seu casamento com Maria
Gonçalves (vide
Azevedo Marques, Cronologia, Testamento de Afonso Sardinha, o velho) não houve filhos, não tendo ele herdeiros forçados, pois que
Afonso Sardinha, o moço, seu filho, foi havido na constância do matrimônio. Era portanto adulterino, sem direito a herdar.
Casado
com Maria Gonçalves, deixou-a herdeira de toda a sua fazenda "a portas
fechadas" e, de combinação com ela, todos os bens do
casal, após a morte de ambos, ficariam aos jesuítas. Nomeou-a
testamenteira juntamente com o
irmão Baltasar Gonçalves, seu cunhado, morador de S.
Paulo. Não morreu nessa entrada, durou até proximamente 1616.
Conhecidas a escassez feminina européia e a facilidade dos
costumes indígenas, Afonso Sardinha, o moço, deveria ter sido um mameluco. Aliás, essas ligações, de que resultavam os mamelucos, eram
comuns na Capitania de S. Vicente, e os Inventários e Testamentos
referem sempre muitos bastardos, palavra que naquele tempo chegou a
significar filho de branco com índia, segundo diz o padre
Manuel da Fonseca, na biografia do padre Belchior de Pontes
[6].
Os
cronistas antigos de S. Paulo, dada a identidade de nomes, confundem os
feitos dos dois Sardinhas, atribuindo os do pai ao filho e
vice-versa, o que sucede, como já notei, com muitos outros colonos.
Pela narração feita
não se pode saber com certeza o que pertence ao velho e o
que pertence ao moço.
O próprio Azevedo Marques, nos seus Apontamentos, verbo Afonso
Sardinha, quando reproduziu o que escreveu Taques,
sobre esses dois colonos, declara (págs. 2 e 3 em nota) expressamente
que esse genealogista
confundiu os dois Afonso Sardinha. Apesar de reconhecer a
confusão, não a esclareceu e ao contrário a manteve.
O autor dos Apontamentos informa que Pedro Taques, na Nobiliarquia
das principais famílias da Capitania de S. Vicente, diz a
respeito de Afonso Sardinha o seguinte: "Foi o primeiro descobridor das
minas de ouro,
prata, ferro e aço em todo o Brasil pelos anos de 1589 em
as serras seguintes: na de Jaguamimbaba, que ao presente tempo se conhece com o
nome de Mantiqueira; no sítio que agora se diz Lagoas Velhas do Geraldo, distrito da freguesia da Conceição dos Guarulhos, termo da
cidade de S. Paulo; na de "Jaraguá, onde fez o seu estabelecimento minerando, e aí faleceu" etc.
Não diz Az. Marques de que Título da Nobiliarquia extraiu essa
informação. Na obra, porém, do genealogista paulistano no Título Taques Pompeu (Rev. do Inst. Hist. Geogr. Bras.,
vol. 33, primeira
parte, pág. 93) se lê a respeito de Afonso Sardinha: "o
afamado paulista, primeiro descobridor de minas de ouro em todo o Estado
do Brasil, em S.
Paulo nas serras de Iguamimbaba, que agora se chama Mantaguyra, na de Jaraguá, termo de S. Paulo, na de Vuturuna,
termo de Parnahyba, na de Hybiraçoyaba, termo de Sorocaba".
Da mesma forma no seu trabalho, sob a epígrafe Informação sobre as minas de
S. Paulo, publicado também pela R. I. H. G. B. (vol. 64, págs. 5 e 6), Pedro Taques diz textualmente que "Afonso Sardinha, e seu filho
do mesmo nome, foram os que tiveram a glória de descobrir ouro de lavagem nas serras de Jaguamimbaba e de Jaraguá (em S. Paulo) e na
de Ivuturuna (em Parnahyba) na de Biraçoyaba (Sertão de Sorocaba) ouro, prata e ferro pelos anos de 1599".
Nesses
dois trabalhos, principalmente no segundo, que é especial sobre as
minas de S. Paulo, para o qual os seus cuidados seriam
maiores, Pedro Taques, não escreveu que Afonso Sardinha, na "Serra de Jaraguá
tivesse feito o seu estabelecimento minerando, e aí tivesse falecido."
Azevedo Marques resumiu mal a notícia de Taques, no Título Pompeu;
e,
nesse caso, deve o seu resumo ser recebido com reserva,
salvo se outra tivesse sido a fonte de informação, que o autor dos Apontamentos
transmitiu, a qual não encontrei para ser analisada.
Esse resumo infiel de Azevedo Marques tem induzido a erros todos os estudiosos
que se têm ocupado do assunto, sem, entretanto, ir às fontes originais.
Depois da publicação das Atas e
Registro Geral da Câmara da Vila de S. Paulo e dos Inventários e Testamentos
pelo arquivo do Estado de S. Paulo, todas as
informações dos velhos cronistas devem ser afiladas por
esses documentos. Os antigos cronistas muito exageraram sobre a
fidalguia e riqueza dos
primeiros colonos. De boa-fé, sem dúvida, com o intuito de
elevar os seus antepassados.
***
O
descobrimento de minas de ouro,
prata e outros metais, nesse tempo, não dava ao
descobridor a propriedade das terras em que estivessem elas situadas,
ainda mesmo que fossem
devolutas. Mesmo que o descobrimento de minas fosse feito
em terras do próprio descobridor, não se tornavam essas minas sua
propriedade, pois que
tais minas, desde d. Manuel e seus sucessores até os
Filipes de Espanha e até os Braganças restaurados, o direito sobre as
minas era regulado
pelas Ordenações Manuelinas, compreendidas e compiladas no Código Felipino.
Este Código, na Ord. l. 2º, títs. 26 e 28, § 16, acolhendo a
Ord. Manuelina do l. 2º, Tít. 20, §15, declarava que
os veeiros e minas de ouro e prata, ou qualquer outro metal, eram
direitos reais, isto é,
pertenciam ao domínio real. Os descobridores dessas minas
estavam sujeitos às regras da Ord. Felipina, l. 2º, tít. 34 e
seus parágrafos,
que reproduziam disposições dos tempos de d. Sebastião e
do cardeal rei d. Henrique. Os descobridores deveriam manifestar os
descobrimentos e
registrá-los perante determinadas autoridades, recebendo
depois nelas demarcações precisas, para exploração, com tempos fixados,
inteiramente à
sua custa, sob pena de as perderem. Para as minas
descobertas eram nomeados provedores, guardas-mores, etc., que davam as
demarcações ao
descobridor e a outras pessoas, pagando todos a quinta
parte do ouro extraído à Fazenda Real (os célebres quintos) "em salvo de todos os
custos".
A
aquisição da propriedade das terras nas costas do Brasil,
originariamente
dada por alvarás ou cartas régias, foi delegada primeiro
aos donatários das capitanias hereditárias e depois aos governadores
gerais e aos
conselhos municipais, que em regra as faziam, aqueles por
cartas de sesmarias, e estes por datas nos rossios das vilas, quando,
nos seus forais,
houvesse para isso autorização.
D. Francisco de Sousa, governador geral do Brasil, se achou em S. Paulo desde
16 de maio de 1599, por causa dos negócios das minas, como se dirá mais minuciosamente adiante.
A
19 de julho de 1601, no regimento dado a Diogo Gonçalves Lasso,
determinou-lhe "que não consentisse que pessoa alguma
possa por ora ir às minas descobertas nem tratem de descobrir outras,
salvo Afonso Sardinha,
o velho, e Afonso Sardinha, o moço, aos quais deixo ordem do que neste particular poderão fazer, que vos mostrarão, por serem os
ditos descobridores pessoas que bem o entendem" (Reg. Geral, vol. 1º, fls. 123 a 125).
Em
1601 o representante do rei absoluto – governador geral do Brasil –
proibiu
a ida de qualquer pessoa às minas descobertas e as por
descobrir. E, se permitiu a ida aos dois Sardinhas, deve-se concluir que
também a eles
podia proibir. Permitiu a ida dos Sardinhas às minas, não
porque fossem eles delas proprietárias, mas porque eram descobridores e
entendiam de
minas.
Pelo
direito, então em vigor, e pela aplicação que dele fazia o governador
geral do Brasil, nos regimentos expedidos, há que concluir
que os dois Sardinhas não podiam ser proprietários das minas do Jaraguá
ou de quaisquer
outras na capitania de S. Vicente.
Também
não possuíram datas ou sesmarias que lhes dessem a propriedade de
terras no Jaraguá. Pelo menos nada consta a esse respeito
nos arquivos locais, que consultei e estão publicados, encontrando-se,
porém, documentos
que os fazem proprietários de terras em outros lugares.
No seu testamento minucioso, feito a 2 de novembro de 1592, publicado por
Azevedo Marques nos seus Apontamentos e já aqui referido, Afonso Sardinha declara que por seu filho natural, Afonso Sardinha, o moço,
já havia feito o que devia, dando-lhe 500 cruzados nos
quais entravam "as terras em que ele estava, em Amboaçava, as quais se
estenderá da ribeira
da aguada dos índios do forte até outra ribeira, que vem
para Amboaçava, entrando pela mata adentro ali onde fiz minha
demarcação".
As terras doadas a Afonso Sardinha, o moço, estavam, pois, em Amboaçava e
confrontavam com as do doador seu pai.
De fato, nesse lugar estavam, como se vê na carta de data concedida a Estêvão
Ribeiro, o moço, em 1609, cujas terras na Embiaçava, partiam da tapera de Afonso Sardinha, o moço, até a borda da capoeira de
Afonso Sardinha, o velho, ao longo de uma lagoa que está correndo para o caminho do forte (Registro Geral, vol. 1º, pág. 162).
Cumprindo o prometido no testamento, Afonso Sardinha e sua mulher, em 15 de
julho de 1615, fizeram doação de todos os seus bens à Companhia de Jesus, segundo a Cronologia de Azevedo Marques, o que está confirmado na
escritura pública dessa data, publicada no vol. 44, fls. 360 dos Documentos Interessantes.
Depois da expulsão dos jesuítas, em 1759, no tempo do marquês de Pombal, todos
os bens da Companhia foram confiscados pela Fazenda Real.
O
conde de Bobadela, capitão general do Rio de Janeiro e de S. Paulo,
cumprindo ordens do rei, e por carta de 13 de setembro de
1762, mandou fazer o seqüestro desses bens em S. Paulo, como se pode ver
no volume 44
dos Documentos Interessantes do Arquivo do Estado de S. Paulo, e no auto de seqüestro e confisco consta:
"ALDEIA DE CARAPICUÍBA"
"Affonso Sardinha e sua mulher Maria Gonsalves fizeram
doação de 'toda a sua fazenda' à Capela de N. Snra.
da Graça do Colégio e Igreja de S. Paulo, a qual o seu teor é o
seguinte: Saibam
quantos de escritura e doação virem que no ano do
nascimento de N. S. J. C. de 1615 aos 9 dias do mês de Julho, etc."
(vol. cit; pág. 360).
Essa escritura mostra que a doação abrangeu
toda a "sua fazenda, moveis e de Rais, peças escravas
de Guiné e da terra, terras, casas e gado, e da mais fazenda e
benfeitoria que possuião e
tinham de seu nesta vila de S. Paulo e todo o mais que em
qualquer parte que estivessem e se soubesse ser sua e por algum modo lhe
pertencesse
tirando o que tinham dado por dotes ou esmolas a saber
quinhentas braças de terras que tinham dado a Pero da Silva
[7] as quais lhe tinham prometido em dote de casamentos" (idem, pág. 361)... "As
terras desta doação de Afonso Sardinha são as em que se
acha situada a Aldeia vulgarmente chamada 'Carapicuíba' no
distrito de S. Paulo na qual se acham os Índios administrados que foram
dos ditos
padres e de que reza a doação retro"... (idem, pág. 363)... "Algumas terras mais pertencem a esta doação como há uma sesmaria de terras em
Ybatata até a Embuapava, como consta dos títulos dela..." (idem, pág. 367)
[8].
Por
esse auto de seqüestro feito nos bens da Companhia de Jesus, vê-se que
todos os bens que possuía Afonso Sardinha, e que haviam
sido doados aos jesuítas, passaram à Fazenda Real, aí se declarando
inequivocamente, onde,
em S. Paulo, estavam eles situados. Nele não se encontra a
menor referência a terras no Jaraguá.
Além disso, outros documentos, também oficiais, vêm confirmar a localização
das terras de Sardinha, em outros lugares.
Assim, no volume 1º de Sesmarias,
publicado pelo
Arquivo do Est. de S. Paulo (págs. 35 e 36) está
registrada a data de terra de Afonso Sardinha, a 3 de novembro de 1607,
na qual, alegando ser
morador antigo na vila de S. Paulo e na capitania de S.
Vicente, que sempre prestara serviços a S. Majestade, em bem da terra, tendo fazenda e
trapiches de açúcar no rio Jerobatiba, pedia que lhe fossem dados os alagadiços que estão ao longo desse rio, dum lado e doutro, o que lhe foi
concedido pelo capitão-mor Gaspar Conquero. Nesse mesmo livro de Sesmarias está o auto de posse da data concedida (págs. 37 e 38) no qual
consta que o capitão-mor Gaspar Conquero "estando no termo da vila de S. Paulo, no lugar que se diz Ubat...
[9] onde mora Afonso Sardinha, no ano de 1607 deu a este posse dos alagadiços e campos conteúdos na data concedida".
Esses dois documentos estão estragados pelas traças, mas se completam, e são
ainda completados por outro (ainda no mesmo livro I de Sesmarias,
fls. 42 a 44) em o que capitão-mor Gaspar Conquero, a 22 de janeiro de
1609, concede a Fernão Dias, a Pero Dias e a outros uma
data de terras nas cabeceiras que tem Afonso Sardinha, sobejos das
terras que foram de
Domingos Luís Grou, partindo de Carapicuíba até a barra de
Jerobatiba.
Na sua Genealogia Paulista (vol. 6º, pág. 18 a 19 em nota), Silva Leme
informara que Afonso Sardinha morava em Ubatãtã, e cita manuscritos de Pedro Taques como fontes dessa informação.
Essa
moradia se encontra confirmada na vereação de 9 de setembro de 1623, na
qual os oficiais da Câmara, reconhecendo a danificação dos
caminhos e serventias da vila, mandam consertar a ponte que está na
fazenda, da que foi
de Afonso Sardinha, onde chama Ibatãtã (Atas, vol. 3º, pág. 51).
Ora, com esses documentos, ora citados e examinados, como
sejam: a) o testamento de Sardinha, o velho, dando a seu filho terras em Amboaçava partindo com as suas; b) a escritura de doação feita
pelo Sardinha, o velho, aos jesuítas, de todos os
seus bens, em qualquer lugar em que se achassem; c) o arrolamento desses
bens confiscados
aos jesuítas no qual se encontra a doação de toda a sua
fazenda e em que estava a aldeia de Carapicuíba, mas em que não há
referência sequer a
posse ou domínio no Jaraguá; d) a concessão de sesmaria de
Ibatãtã em Embuapava; e) a concessão de terras e o auto de posse das
mesmas ao longo do
rio Jerobatiba dum lado e doutro; f) a confrontação
indicada na sesmaria de Fernão Dias, Pero Dias e Estêvão Ribeiro e de
outros, cabeceiras que
tem Afonso Sardinha, sobejos de Domingos Luís Grou,
partindo de Carapicuíba; g) a indicação da morada do velho Afonso
Sardinha em Ubatãtã, todos
esses documentos, repito, publicados e que podem ser
examinados e criticados, mostram que a moradia e a fazenda de Afonso
Sardinha, o velho,
estavam situadas em terras que partiam em Amboaçava,
abrangiam a aldeia de Carapicuíba, ao longo do rio Jurubatuba em ambos
os lados, e o Ibatãtã,
onde ele morava [10]. A sesmaria de terras que ele obteve em Ibatãtã até Embuapava nada
rendia (Documentos Interessantes, vol. 44, pág. 367).
Esses
lugares Carapicuíba, Emboaçava, Butãtã ao longo do Rio Pinheiros,
antigo
Jerobatiba, até a sua barra, estão à margem esquerda do
rio Tietê (antigo Anhembi), e não abrangem o Jaraguá, que está situado à
margem direita do
Anhembi, do Tietê, do tradicional rio paulista.
É provável que os Sardinhas tivessem minerado em Jaraguá; mas não eram
possuidores de terras no Jaraguá, nem lá se enriqueceram. As minas do Jaraguá foram sempre escassas, como se sabe.
Descrevendo
a extrema pobreza dos habitantes da vila de S. Paulo, e se
referindo a d. Francisco de Sousa, nessa vila estante de
1599 a 1602, frei Vicente do Salvador narra que o governador "entretinha
o tempo que
lhe restava do trabalho das minas, que era mui grande, e
mui maior não ser sempre de proveito porque como é ouro de lavagem umas
vezes se lavrara
pouco ou nenhum, mas outras se acharam grãos de peso e de
que ele enfiou um rosário, assim como saíam redondos, quadrados ou
compridos que enviou
a Sua Majestade" (frei Vicente do Salvador, História do Brasil, pg. 382).
Frei
Vicente do Salvador, que foi contemporâneo de d. Francisco de Sousa e
que, segundo parece, esteve com ele em S. Paulo conforme
alguns escritores, mostra que bem pouca coisa em ouro se tirou em todas
as minas dos
arredores de S. Paulo.
A vila de S. Paulo, nessa época era paupérrima, assim nota frei Vicente do
Salvador, na sua História do Brasil. E era verdade. A casa de morada de Afonso Sardinha, o velho, deveria ser pobríssima como então
eram todas, como se vê nos inventários feitos nessa época.
Em 2 de agosto de 1584, época quase contemporânea do descobrimento do ouro em
Jaraguá (do descobrimento, não da exploração) os oficiais da Câmara e os homens bons da terra se reuniram nas pousadas de Jorge Moreira "por
não haver casa do conselho porque a que havia estava caída
da cobertura, mandaram ajuntar o povo e com o parecer de todos logo
todos a uma voz
disseram que era bom e lhe parecia bem que se fizesse uma
casa do conselho nova e coberta de telhas" (Atas, vol. 1º, pág. 244).
Aos 19 de julho de 1583, muitos meses antes, já a Câmara funcionava nas
pousadas de Baltasar Gonçalves, por não haver casa de conselho, e notava a necessidade de consertar "a
cadeia, porque a sua cobertura quebrou e
o telhado de palhas caiu sobre as paredes e eles não
ousavam tirar a palha e descobrir as paredes, porque sendo estas de
taipa, dariam consigo no
chão". Isso fora verificado em 30 de dezembro de 1583,
"e não fora consertado, porque o conselho era pobre não tendo dinheiro
para consertar"
(Atas, vol. 1º, págs. 225 e 226).
Os
edifícios principais da vila –
Cadeia e Casa do Conselho - estavam nesse estado miserável
pela pobreza e, acrescente-se, pela negligência de seus habitantes. Por
esse estado de
ruína é lícito avaliar as condições das casas dos
habitantes da vila e seu termo.
***
Os dois Sardinhas eram sertanistas e
fizeram entradas ao sertão. Das entradas do velho já aqui se encontra referência; das do moço, além das referidas nas Atas
(volume 2º, fls. 47 e 150), informa Azevedo Marques na sua Cronologia, que "em 1604, Afonso Sardinha, o moço,
fez testamento no
sertão escrito pelo padre João Alves, e nele declarou
'possuir 80.000 cruzados em ouro em pó, que o tinha enterrado em
botelhas de barro'".
Em 1604 o padre João Alvres
[11]
estava realmente no sertão, e na bandeira de Nicolau
Barreto, da qual ele e o padre Diogo Moreira eram capelães conforme
expressamente declaram
essas qualidades por escrito na quitação, que passam, por
missas cantadas e rezadas por alma de Manuel de Chaves, aí morto por uma
flechada que
lhe deram os Tupiães (Testamento de Manuel de Chaves, Inv. e Test., vol. 1º, págs. 461 e 489). Se Sardinha, o moço,
fez testamento
no sertão em 1604, parece que lá não morreu. Não consta
que tivesse sido feito lá inventário dos bens de pessoa declarada tão
rica. Segundo se
pode deduzir do testamento de seu filho, Pero Sardinha, em
1615, ele provavelmente ainda vivia, já tendo, porém, morrido em 1616,
quando foi feito
o inventário desse filho em São Paulo, porque é ao avô que
o juiz do inventário manda perguntar se quer nele herdar.
A extrema miséria, em que morreu Pero Sardinha, mostra que ele nada herdou de
seu pai Afonso Sardinha, o moço. Este, como todos
os moradores de S. Paulo, nessa época, era pobríssimo. Nada teria ele
deixado a seus
filhos; se tivesse deixado, Pero Sardinha no testamento
não iria implorar ao avô a compra do filho da escrava Esperança. Ao
contrário, declara ele
que nada possui, e, na falta de seu avô, é à sua irmã que
implora a libertação da criança que ele tinha por seu filho, do mesmo
nome que seu pai e
seu avô.
O
fato, que relata Azevedo Marques, sobre os 80.000 cruzados, pode ser
verdadeiro. Mas a quantidade de ouro em pó, enterrado em
botelhas de barro, é, sem dúvida alguma, muito exagerada. Evidentemente
80.000 cruzados
em todas as espécies, mas somente em ouro em pó, nessa
época em que um boi valia 1$500 e uma vaca 1$200, um sítio em Pinheiros
se avaliava por
16$000 e uma casa na vila com seu quintal por 10$000 (vide
inventários do tempo) e o capitão-mor-loco-tenente e ouvidor do
donatário ganhava 50
mil réis anuais, e pagos pelas rendas da capitania, a quantia de oitenta mil cruzados é quantia fabulosa (vide livro nº 54 da Câmara de S.
Paulo, numeração antiga de 1602. O traslado no vol. 1º do Registro Geral, pág. 39 está incompleto). Mas ainda em 1607 o capitão-mor ganhava
50$000 (Registro Geral, vol. 1º, pág. 143).
Capistrano de Abreu também já achava exagerada tal quantidade de ouro, dizendo
que deveria haver muito ogó no monte (Capítulos de História Colonial, pág. 193, edição da Casa Capistrano, por Capistrano de Abreu – 1928).
E
torna-se mais acentuado o exagero dessa quantidade de
ouro, se se levar em conta que, na vila de S. Paulo,
paupérrima e atrasadíssima, e, nesse tempo, com pouquíssimos e
ignorantes habitantes
[12]
um bastardo, cujo pai em 1592 declara em testamento ter
"por ele já feito o que devia dando-lhe 500 cruzados", pudesse ter
guardado, doze anos
depois, 80.000 cruzados em ouro em pó e os tivesse
enterrado sem que ninguém o soubesse. É de notar ainda que Afonso
Sardinha, por mais hábil
sertanista que fosse, e entendedor de minas, não poderia
ter conhecimentos especializados para exploração, como o declarava d.
Francisco de Sousa.
As
grandes minas gerais só foram descobertas no século 18.
Os processos de mineração eram então grosseiros,
rudimentares, e consistiam na bateia que exigia numeroso pessoal e
imenso tempo, dando o ouro de
lavagem, que não poderia ser feito às escondidas dos
moradores da vila
[13].
D. Francisco de Sousa, no regimento já referido
[14],
dado em 1601 a Diogo Gls. Lasso, menciona, como motivo da proibição da ida às minas, descobertas e por descobrir, a "falta de mineiros"
para o respectivo benefício, mineiros que mandara vir e os estava esperando, a fim de que as achassem intactas e vissem que se falou
verdade a S. M. (Reg. Geral, vol. 1º, pág. 124).
Intactas deviam, ainda em 1601, ficar as minas, era a ordem do
governador geral, e se os Sardinhas foram autorizados a lá ir e a descobrir outras, não podiam explorá-las.
As chamadas minas do Jaraguá, Bituruna, foram também descobertas por Clemente
Álvares (Atas, vol. 2º, pág. 172) que as manifestou em 1606, procurando-as, segundo disse, desde 14 anos, época mais ou menos em que também
as descobriram os Sardinhas, nada produziam ainda, dois anos depois do testamento de Afonso Sardinha, o moço,
no sertão. E nada tinham
produzido, porque o próprio Clemente Álvares pede que se
registre o seu descobrimento em Jaraguá para "não perder o seu direito,
vindo oficiais e
ensaiadores que o entendam, por ele não o entender senão
por notícia e bom engenho". No tempo em que as manifestou, em 1606, as
minas de Jaraguá
ainda esperavam os mineiros e ensaiadores.
Não
tinha ainda havido exploração, estavam ainda intactas, conforme
determinara d. Francisco de Sousa. Se houvesse produção, o
Fisco, curioso e ávido, não teria deixado de arrecadar os quintos
para receber
as porcentagens. As penas para quem guardasse ouro em pó
eram severíssimas, e importavam em confisco desse metal, em multas
pecuniárias, açoites
nas ruas públicas, degredo para Angola, devendo todos
reduzir o ouro a barras, depois de quintado (Reg. Geral, vol. 1º, págs. 93 e
94).
De 19 de julho de 1601, data em que o governador geral do Brasil em atividade
febril em S. Vicente para descobrimento de ouro, declarava intactas as minas de S. Paulo (regto. dado a Diogo Gonçalves Lasso, no
Registro Geral, vol. 1º, págs. 123 a 126) até setembro de 1602, época provável da partida da bandeira de Nicolau Barreto para o sertão, na
qual tomaram parte Afonso Sardinha, o moço, e o padre João Alvres, redator este do testamento do dito Sardinha (Inventários e
Testamentos, vol. 1º, pág. 489 e vol. 11, pág. 17), em
um ano e dois meses, portanto, não poderia esse bandeirante, em terra
muito pequena e
muito pesquisada, ter extraído das escassas minas 80.000
cruzados em ouro em pó, e muito menos ainda, enterrá-los em botelhas de
barro.
Deve haver na informação referida por Azevedo Marques, quanto à quantidade de
ouro, ou erro de impressão ou de cópia, ou de escrita do padre João Alvres ou do ditado de Afonso Sardinha, o moço. Afonso Sardinha, o
velho, teria morrido em 1616, segundo Azevedo Marques (Cronologia).
Afonso Sardinha, o moço,
teve pelo menos dois filhos, Thereza que se
casou com Pero da Silva, a quem o velho Sardinha fez
doação de 500 braças de terra, e um filho que se chamou Pedro Sardinha.
Este morreu no sertão dos Carijós na bandeira de Lázaro da Costa em 8 de
dezembro de 1615. Silva Leme, na Genealogia Paulistana
(vol. 6º, pág. 186, em nota, e vol. 1º, pág. 76) dá a descendência de
uma filha de
Afonso Sardinha, que ele chama de Luzia. A notícia desta
descendência está confusa, a começar pelo nome da filha de Afonso
Sardinha,o moço,
casada com Pero da Silva, que se chamava Tereza e não Luzia, como se vê no testamento de seu irmão Pero Sardinha (Inv. e Test., vol. 3º,
pág. 397).
Pero Silva, casado com Tereza Sardinha, foi inventariante dos mesquinhos bens
do bandeirante, seu cunhado, conforme se vê no seu inventário feito em São Paulo, em 10 de abril de 1616 (Inv. e Test., vol. 3º, pág. 397).
Quando
recentemente demolida, 1896-97, a Igreja do Colégio da Companhia de
Jesus, em São Paulo, foi encontrada a pedra tumular, que
marcava o lugar em que foram sepultados Afonso Sardinha, o velho, e sua mulher.
Dessa pedra foram tiradas fotografias, publicadas no nº 1 da revista São Paulo Antigo e São Paulo Moderno, pelos editores Vanorden & Cia.
Essa pedra está hoje no Museu Paulista.
Pelo
estudo feito neste parágrafo, baseado nos documentos autênticos locais,
deve-se concluir que nenhum dos Afonsos Sardinhas teve
propriedade em Jaraguá; que a fazenda de Afonso Sardinha, o velho,
onde ele morava e
tinha trapiches de açúcar, estava nas margens do Rio
Jerobativa, hoje Rio Pinheiros, e mais que a sesmaria que obtivera em
1607 no Butantã nada
rendia e que todos os seus bens foram doados à Companhia
de Jesus e confiscados pela Fazenda Real em 1762 em São Paulo. Se casa
nesta sesmaria
houvesse, deveria ser obra dos jesuítas.
Pelo mesmo estudo se conclui que Afonso Sardinha, o moço, em 1609 ainda
tinha a sua tapera em Embuaçava, terras doadas por seu pai. Não poderia ter 80.000 cruzados em ouro em pó, enterrados em botelhas de barro.
Quem possuísse tal fortuna não faria entradas no sertão descaroável nem deixaria seus filhos na miséria.
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