O
Peabiru
O mais famoso desses caminhos, conhecido como
Peabiru, ia do litoral paulista até Assunção (Paraguai), cruzando o atual
estado do Paraná. Na verdade, é provável que o Peabirú consistisse de uma rede
de caminhos interligados colocando em contato o sul/sudeste brasileiro e a
região andina. Acredita-se, por exemplo, que os índios guaianases de
Piratininga mantinham relações contínuas com os habitantes do litoral através
de vias de comunicação terrestres, “abertas e praticadas pelo gentio, pondo em
relações de comércio e amizade as tribos do litoral e suas vizinhanças com as
do mais remoto interior do país” [3].
Algumas evidências e conjecturas fazem supor
que o Peabiru tenha sido uma rota muito antiga, quiçá de origem incaica,
construída no sentido leste-oeste. O arqueólogo André Prous, por exemplo,
menciona o encontro de um machado de cobre em um sítio arqueológico localizado
em Cananéia (SP), cuja análise demonstrou que a matéria prima usada na sua
confecção era proveniente da região da Cordilheira dos Andes [1].
Seu traçado preciso ainda é motivo de
conjecturas, entretanto, com base em diversos trabalhos, pode-se estabelecer um
roteiro geral (e parcial) da malha em território brasileiro: o tronco principal
ia de São Vicente (SP) até São Paulo, daí acompanhava o curso do rio Tietê em
direção a Itu (SP), passando pelos atuais municípios de Santana do Parnaíba e
Pirapora do Bom Jesus; virava a sudoeste, passando por Sorocaba, Araçoiaba da
Serra e Itapetininga, acompanhando então a rota aproximada da atual rodovia SP
258 (Francisco Alves Negrão), passando pelos municípios de Capão Bonito,
Itapeva e Itararé (SP); adentrava o atual estado do Paraná, cruzando Jaguariaíva,
Piraí do Sul e Castro. Nesse ponto, devia encontrar um ramal que vinha desde o
litoral de Santa Catarina, junto à barra do Rio Itapocu, passando pelos
municípios de Jaraguá do Sul (SC), São Bento do Sul (SC), Rio Negro (este já no
estado do Paraná), Lapa, Palmeira e Ponta Grossa.
Um outro ramal, partindo de Castro,
dirigia-se a leste, cruzando os atuais municípios de Açungui (PR), Cerro Azul,
Adrianópolis, Iporanga (já no estado de São Paulo) e Jacupiranga, finalizando
em Cananéia, no litoral sul paulista. Do entroncamento na região de Castro, a
via principal seguiria em direção oeste, através do atual estado do Paraná,
cruzando os atuais municípios de Tibagi, Reserva, Cândido de Abreu e Pitanga;
daí acompanhava aproximadamente o rio Cantu – passando, entre outros, por
Palmital, Laranjal e Campina da Lagoa – até a desembocadura desse no rio
Piquiri, o qual era margeado até sua foz, no rio Paraná, onde existiria a
povoação espanhola de Ciudad Real del Guairá. Da região de Cândido de Abreu, um
ramo do caminho seguiria em direção nordeste, passando por Campo Mourão e
rumando para os lados de Apucarana (PR), de onde acompanhava o rio Pirapó até
sua foz no Paranapanema, na divisa dos atuais estados de São Paulo e Paraná. A
partir desse ponto, devia seguir rumo nordeste, de acordo com um traçado mais
ou menos correspondente ao da atual rodovia SP 425, interceptando uma outra via
do Peabiru, que acompanhava a margem esquerda do rio Tietê, desde sua
desembocadura no rio Paraná, em um trajeto que corresponderia aproximadamente
ao da atual rodovia SP 300 (Marechal Rondon), passando por Botucatu e
interceptando a via principal na região do Itu [4-6].
Aspectos
históricos
Após a chegada dos portugueses, um dos
primeiros centros de penetração foi a capitania de São Vicente (capitania de
São Paulo, a partir de 1681), tendo as vilas de São Vicente e São Paulo como
focos iniciais de irradiação [2].
Nos primórdios do século 16, São Vicente era para os espanhóis o principal
ponto de partida para a via terrestre entre o Atlântico e o Paraguai, e daí
rumo aos altiplanos do Peru, no coração do império incaico recém-conquistado.
No sentido inverso, representaria o caminho mais curto para os que, vindos de
Assunção, demandavam a Europa.
Assim, o Peabiru evitaria, para os espanhóis
que demandavam o Peru, a circunavegação de quase metade da América do Sul, com
todos os riscos associados a uma empreitada dessa magnitude. Naquela época, São
Vicente seria um importante entreposto comercial da costa americana no qual, a
cerca de 500 km do limite meridional estabelecido pelo Tratado de Tordesilhas,
portugueses e espanhóis conviviam à custa do tráfico de índios e
aprovisionamento de embarcações. Entre as expedições que ali fizeram escala de
reabastecimento destacam-se as de Cristóvão Pires (1511), Nuno Dias de Solis
(1515), Fernão de Magalhães (1519) e Sebastião Caboto (1525). Em 1532, Martin
Afonso de Souza, reconhecendo a importância estratégica do povoado, lavraria o
ato formal de seu reconhecimento pela coroa portuguesa. Assim, o “fundador” de
São Vicente não teria encontrado um local bruto e selvagem, mas um porto e uma
vila com um comércio estabelecido e uma história atrás de si. Acredita-se que
esse porto já existiria, mesmo antes do desembarque de Cabral na costa da
Bahia, sob os nomes de Upanema, Maraipion, Tumiaru ou Tumaiaru, e que o Peabiru
seria a razão do rápido florescimento do povoado nos alvores no século 16 [5].
A partir dessa época, ao que parece, Portugal
passaria a ver com desconfiança cada vez maior a presença espanhola em suas
terras, tratando de adotar medidas no sentido de exercer uma maior vigilância e
mesmo coibir (e, mais tarde, proibir) o trânsito pelo Peabiru. Uma das medidas
seria a implantação de povoações no planalto – com o auxilio dos jesuítas,
liderados pelo Pe. Manoel da Nóbrega –, que funcionariam assim como sentinelas
avançadas da colônia portuguesa, cortando a principal via de ligação terrestre
com os territórios pertencentes à coroa espanhola. Basta lembrar a localização
estratégica da vila de São Paulo, em uma acrópole que dominava a várzea do
Peabiru e impedindo assim o avanço espanhol em direção à costa Atlântica [5].
Sugere-se também que um dos motivos que
levaram os jesuítas, em particular Nóbrega, a se interessar pelo Peabiru, teria
sido o desejo de evangelização dos indígenas no oeste, no Paraguai. O então
governador geral do Brasil, Tomé de Souza, por sua vez, viu-se em meio a um
dilema: se liberasse o caminho para os jesuítas, também se sujeitaria ao avanço
castelhano pela mesma via, só que no sentido inverso. Na verdade, um conflito
surdo entre Assunção e São Vicente já se desenhava, tendo em vista, por
exemplo, a exibição em São Vicente, em 1553, de amostras de prata colhida por
vicentinos em território paraguaio. Isso levaria a corte espanhola a tomar
providências no sentido de proteger as minas de eventuais investidas de colonos
portugueses. Esse fato, por sua vez, teria irritado Lisboa, que liberaria o
governador-geral para tomar medidas que protegessem os interesses portugueses e
hostilizassem os castelhanos [5].
Assim, questões político-estratégicas locais, associadas à política de
hostilidades e mútua desconfiança entre as metrópoles (Portugal e Espanha),
levariam Tomé de Souza, em 1553, a lavrar um ato proibindo o trânsito, seja de
portugueses, seja de espanhóis, através do Peabiru. Logo em seguida, em janeiro
de 1554, os jesuítas edificariam nos campos de Piratininga, no planalto, o
prédio que abrigaria o colégio e a capela de São Paulo.
Assim, o comércio e o intercâmbio entre as colônias
– onde a densidade de povoamento mais as aproximava – sofreu um duro golpe,
provavelmente com prejuízos para ambas as partes. Os espanhóis passariam a
acessar o Peabiru a partir de vias situadas mais ao sul, no litoral de Santa
Catarina, à altura da linha divisória oficial entre as possessões espanhola e
portuguesa. Essa foi a rota tomada por Alvar Nunez Cabeza de Vaca que, em 1541,
vindo da Espanha com destino a Assunção, desembarcou em Santa Catarina e
adentrou o continente na altura da barra do rio Itapocu (cerca de 35 km ao sul
de Joinvile), seguindo uma rota no sentido noroeste até interceptar o tronco principal
do Peabiru, na região dos atuais municípios de Ponta Grossa e Castro (PR),
seguindo então rumo ao Paraguai pelo caminho original.
A “redescoberta”
do Peabiru
Evidentemente, a proibição oficial de
circulação pelo velho caminho, não significou seu imediato abandono, como
atestam alguns relatos descritos por Ernani Donato, em seu livro “Sumé e
Peabirú: mistérios maiores do século da descoberta”. Todavia, embora longos
trechos do Peabiru tenham se metamorfoseado em caminhos de tropeiros e,
posteriormente, em estradas e rodovias, o traçado original se perdeu, em muitos
casos de maneira irreversível. Vários pesquisadores, debruçados sobre documentos
antigos, e com o auxílio de modernas técnicas de levantamento
aerofotogramétrico, têm procurado recuperar o traçado e a memória dos velhos
caminhos, tataravôs de muitas das modernas rodovias que cruzam as regiões Sul e
Sudeste do país.
Estudos arqueológicos têm encontrado
vestígios de caminhos antigos, entre eles o Peabiru, que sobreviveu em pequenos
trechos, principalmente no atual estado do Paraná. Os primeiros vestígios foram
encontrados nas proximidades do município de Campina da Lagoa (PR), em 1970,
sendo que, no decorrer das pesquisas, novos trechos do caminho foram sendo
encontrados. De acordo com os pesquisadores, “nos trechos de mata, os vestígios
do caminho eram perfeitamente visíveis. A trilha media 1,40 m de largura por
0,40 m de profundidade. Os seus restos desapareciam completamente nos terrenos
desmatados ou lavrados, para novamente aparecerem nos trechos protegidos pela
vegetação” [7]. Nessa pesquisa, não
foram constatados quaisquer tipos de revestimentos em seu leito, cujo piso
apresentava-se compactado. Ao longo do caminho foram encontrados sítios
arqueológicos, contendo aterros, casas subterrâneas e galeria subterrânea.
Como seria praticável um sistema de caminhos,
como o Peabiru, que atravessava regiões ocupadas – segundo fontes históricas –
por tribos indígenas portadoras de culturas diversas, desde muito antes da
chegada dos europeus? [7].
Ou então: por que indígenas diferenciados em suas culturas iriam construir uma
estrada unindo povos tão distintos? Esse poderia ser um argumento a favor da
pré-existência do caminho, antes mesmo do estabelecimento das tribos. Os
antigos habitantes do Peru (os “incas”) teriam o costume de depositar, ao longo
das estradas, pedras em homenagem aos manes de seus antepassados, o que
acarretava o surgimento de vários montículos de pedrinhas ao lado dessas
estradas [8].
Em um texto do etnólogo Telêmaco Borba, o
autor afirma que: “...em nossas excursões pelos campos e fachinais deste
município (Tibagi – PR), sempre nos despertara a atenção certos montículos de
forma cônica, que encontrávamos nos pontos mais elevados das cochilhas,
principalmente nas imediações das grandes florestas de pinheiros; pela forma,
traziam-nos à memória os túmulos dos caingangues”. O relato prossegue com a
conclusão, baseada em escavações, de que tais montículos seriam realmente
túmulos ou sepulturas “de uma nação ou tribo que usava a cremação de seus
mortos” [7]. Indícios como esse
sugerem uma origem comum de tradições ou costumes de povos de culturas
aparentemente distintas, no caso, os incas e tribos indígenas do Sul e Sudeste
do Brasil. Seria então o Peabiru o elo de ligação entre todos eles?
Fonte: (*) Professor adjunto victorjc@rc.unesp.br,
Departamento de Botânica, Universidade Estadual Paulista Julio de Mesquita
Filho (Rio Claro, SP). Pesquisa realizada no dia 18 de Novembro de 2016. INTERNET.