4.2 O PADRE MANUEL DA NÓBREGA EM PIRATININGA
Uma das razões por que Nóbrega se decidiu ir para a Capitania de São Vicente foi
por ter enfrentado certa animosidade por parte do Bispo Pedro Fernandes Sardinha
(2000:132-4, 150, 178 e 192; LEITE, 2004-I:17). Especialmente em carta escrita da Bahia a
5 de julho de 1559 (2000:322), ele entremostra sua decepção com o comportamento do
Bispo e com a devassidão e fuga dos deveres dos demais clérigos, para declarar que “vendo
eu isto logo em seu princípio, cuidei de dor perder o siso, e assim como desesperado de
poder na terra nem com os cristãos nem com o gentio fazer fruto, me fui com V.M. a São
Vicente, correndo a costa, desabrindo a mão de tudo”. Um dos pontos da desinteligência
com Bispo dizia respeito à utilização de intérprete na confissão, que, segundo este,
implicava em quebra do sigilo sacramental. Nóbrega empregava esse recurso largamente
em razão da falta de jesuítas-línguas ainda em 1552, quando escreve (2000:131) da Bahia
ao Provincial Simão Rodrigues, em Lisboa:
Contrariou-nos isto muito o Bispo, dizendo que era coisa nova e que na
Igreja de Deus se não costuma. (...) Esta é coisa mui proveitosa e de muita importância nesta terra entretanto que não há muitos Padres que
saibam bem a língua, e parece grande meio para socorrer a almas que
porventura não têm contrição perfeita para serem perdoados e têm
atrição, a qual com a virtude do sacramento se faz contrição: e privá-los
da graça do sacramento por não saberem a língua e da glória por terem
contrição bastante, e outros respeitos que lá bem saberão, devia-se bem
de olhar.
Em nova carta endereçada ao mesmo Provincial, escrita de Salvador em fins de
agosto de 1552, Nóbrega reitera a importância da questão, consultando o que fazer, ou seja,
“se se poderão confessar por intérprete a gente desta terra que não sabe falar nossa língua”.
Decidiu-se ele, então, a ir para a Capitania de S. Vicente, de onde os padres
irradiavam “línguas pelos campos, aldeias a engenhos dos arredores” (LEITE, 2004-I:89),
aonde chegou em 1553, tendo sido precedido, por cerca de três anos, pelo padre Leonardo
Nunes, o Apóstolo de Piratininga, que, fazendo-se acompanhar do Irmão Pero Correa,
como língua, “o único que até então pregava na língua dos índios”, esteve no Campo de
Piratininga.
Aí nesse lugar Nóbrega fundou o núcleo catequético que iria dar lugar à Vila e
posteriormente Cidade de São Paulo, num triângulo de quatro alqueires formado pelos
ribeiros de Tamanduateí e Anhagabaú, centralizando o complexo hidrográfico da região,
além de ser “escala para muitas nações de índios” (LEITE, 2004-I:93). Era, em suma, uma
torre alta de observação e exploração descortinando-se para o Prata e Amazônia, tendo
tamoios ao norte, tupiniquins e guaianases ao centro e guaranis ou carijós ao sul, como
eram chamados aqueles em São Paulo, esclarece Capistrano de Abreu (1963:126).
As razões topográficas que ensejaram a primeira fundação de São Paulo por
Martim Afonso de Sousa, ao dar execução ao plano geopolítico de D. João III, eram as
mesmas agora que guiavam os passos de Nóbrega, “com a única diferença de que, no
primeiro caso, se tratava de uma expansão territorial e econômica e, no segundo, duma
expansão religiosa”, adverte Cortesão (1955:201). É o próprio Nóbrega (2000:190) quem
afirma: “E é por aqui a porta e o caminho mais certo e seguro para entrar nas gerações do
sertão”, ou, nas palavras de Anchieta, em carta escrita de Piratininga em 1554 (1988:48),
“entrada a inúmeras nações, sujeitas ao jugo da razão”. Foi “uma intuição verdadeiramente profética”, como bem diz Sérgio Buarque de Holanda (1978:96), não se podendo deixar de
admitir que não lhe tenha escapado “a alta significação histórica de um esforço
expansionista que outros iriam retomar para dano da Companhia”.
Ao isolamento e guarnecimento pela muralha da Serra do Mar se somava ainda o
distanciamento do contato com portugueses, já que Nóbrega via nisso uma forma de
otimização do plano catequético, como deixa claro em carta escrita de São Vicente, em
1553, ao provincial Simão Rodrigues (2000:154): “E, segundo o nosso parecer e
experiência que temos da terra, esperamos fazer muito fruto, porque temos por certo que
quanto mais apartados dos Brancos, tanto mais crédito nos têm os índios”. Teodoro
Sampaio (1978b:158 e 1978e:236) empresta apoio a esse planejamento ao afirmar que
“assim era preciso, para que sementeira do Evangelho se não perdesse com o degradante
proceder e triste exemplo dos maus cristãos”
Esse isolamento foi instado, portanto, pela impressão desfavorável que a princípio
lhe cunhou João Ramalho, de Santo André da Borda do Campo, embora, posteriormente,
segundo o mesmo Serafim Leite (2004-I: 100-1), “tudo se desanuviou”. Deve-se isso ao
gênio de Nóbrega sempre pensando mais alto em favor dos objetivos missionários. Sua
capacidade de dialogar, transigir e até mesmo recuar na hora certa, para avançar no tempo
adequado, permitia que problemas aparentemente insolúveis fossem equacionados. Sérgio
Buarque de Holanda (1978:96) penetra no móvel dessa atitude de Nóbrega: “Quando
concilia os padres com João Ramalho, pecador e excomungado, não é por simples
condescendência de momento, não é por um fácil oportunismo, mas porque vê em tal
recurso o meio decisivo de converter o gentio, uma das finalidades precípuas de sua
Ordem”. Pesaram, ainda, na decisão do maioral dos jesuítas no Brasil, as turbulências da
proximidade do colono português e seus descendentes mamelucos na Vila de São Vicente.
Capistrano (1963:73) sintetiza tudo isso:
Levaram-nos a este passo a maior abundância de alimentos no planalto, a
presença de tribos próprias à conversão por sua índole mansa, e, além do
afastamento dos portugueses, certas idéias vagas de penetração entre os
índios do Paraná e Paraguai. O nome de S. Paulo, agora ouvido pela
primeira vez, devia ecoar poderosamente no futuro.
Esse distanciamento em relação aos brancos mais se afigurará premente aos jesuítas após o fracasso dos aldeamentos na Bahia, os primeiros do Brasil, que se iniciaram no Recôncavo baiano. Aí o escravismo imposto pelos brancos redundou em insucesso daquele sistema: “analisando este fracasso, os jesuítas tentaram organizar ulteriormente – sobretudo nos ciclos sertanejo e maranhense – as missões em outros termos, procurando afastar os aldeamentos dos centros de colonização, para assim evitar o escravismo colonial”, nota Hoornaert (1997:31). A locação no planalto “foi uma intuição de gênio” (LEITE, 2004-I:93), embora parecesse ir na contramão do roteiro até então seguido, que era de ocupação da costa em primeiro lugar. Bruno (1966:12) chega a estranhar a proibição, feita pelo donatário Martim Afonso de Sousa, de migração de brancos da costa para o planalto:
Esse distanciamento em relação aos brancos mais se afigurará premente aos jesuítas após o fracasso dos aldeamentos na Bahia, os primeiros do Brasil, que se iniciaram no Recôncavo baiano. Aí o escravismo imposto pelos brancos redundou em insucesso daquele sistema: “analisando este fracasso, os jesuítas tentaram organizar ulteriormente – sobretudo nos ciclos sertanejo e maranhense – as missões em outros termos, procurando afastar os aldeamentos dos centros de colonização, para assim evitar o escravismo colonial”, nota Hoornaert (1997:31). A locação no planalto “foi uma intuição de gênio” (LEITE, 2004-I:93), embora parecesse ir na contramão do roteiro até então seguido, que era de ocupação da costa em primeiro lugar. Bruno (1966:12) chega a estranhar a proibição, feita pelo donatário Martim Afonso de Sousa, de migração de brancos da costa para o planalto:
Que havia uma diretiva administrativa que assegurasse o povoamento do litoral
em face da fragilidade de suas defesas, não há dúvida. O trecho seguinte de Gândavo
(1995:4) confirma essa orientação: “Não há pela terra dentro povoações de portugueses por
causa dos índios que não o consentem, e também pelo socorro e tratos do Reino lhes é
necessário estarem juntos ao mar, para terem comunicação das mercadorias. E por este
respeito vivem todos juntos da Costa”. O propósito de Martim Afonso ao fundar uma
povoação no planalto de Piratininga nada tem de conflitante ou excludente dessa política de
povoamento. Ela se situa num plano estratégico que foi muito bem elucidado por Cortesão
(1955).
Nessa protopovoação fundada por Nóbrega foi convidado a morar Tibiriçá, que já
vivia nas imediações – uma de cujas filhas coabitava com João Ramalho; outras duas se consorciaram com Pero Dias e Lopo Dias, informa Taunay (2003:282) –, soberano dos
Tupiniquim cuja aldeia se situava à margem do ribeiro Piratininga, conforme Frei Gaspar
da Madre de Deus (1975:120). Segundo este Autor (p.123-4), o principal dos Tupiniquim
acedeu ao apelo e fixou sua aldeia onde é hoje o Mosteiro de São Bento. Sua importância
axial para os destinos dos inacianos em Piratininga impõe uma breve digressão a seu
respeito, em que fica claro, também, como sua simpatia pela catequese branca deve ter
influenciado os demais índios sob sua orientação: Foi batizado com o nome de Martim
Afonso – nome de batismo igualmente dado a outro importante índio, Araribóia, principal
dos Temiminó, também aliados dos portugueses – tendo exercido relevante papel na defesa
do ideal daqueles loiolistas, até mesmo quando os Tupi, em 1562, se levantaram contra São
Paulo. Tibiriçá conclamou seus índios a que “defendessem a igreja, que os padres haviam
feito para os ensinar a eles e a seus filhos, que Deus lhes daria vitória contra seus inimigos,
que tão sem razão lhes queriam fazer guerra” (LEITE, 2004:104). Entre os sediciosos
estaria um outro principal, irmão de Tibiriçá, Piquerobi, o que é discutível (LEITE, 2004-I:
103), que tentou, sem êxito, persuadi-lo de apoiar os inacianos, como relata Antônio
Alcântara Machado em nota a Cartas... de Anchieta (1998:205), além de seu sobrinho,
Jaguanharó, escreve John Manuel Monteiro (2004:34). Deixou longa descendência
sanguínea no tronco paulista. Sua morte foi lamentada e registrada com pesar numa das
cartas de Anchieta (1988:196-7), ainda porque “foi um dos sustentáculos do Colégio, ao
começo, quando escasseavam as esmolas e ainda não havia portugueses” (LEITE,
2004:104). Por ocasião de sua morte, os jesuítas declararam-no “fundador e conservador da
casa de Piratininga” (ANCHIETA, 1988:197). Foi sucedido, no posto de chefe militar, por
João Ramalho (LEITE, 2004:103), mas não às vésperas do cerco, como quer John Manuel
Monteiro (2004:34).
De igual forma procedeu Caiubi, senhor de Geribatiba. Também foi batizado
pelos jesuítas, tendo ganhado o nome de “João”. “Auxiliou-os na fundação de São Paulo:
Os jesuítas convidaram Caiubi a estabelecer-se nas imediações do sítio escolhido”, diz
Serafim Leite (2004-I: 93), no que é consonante com Frei Gaspar da Madre de Deus
(1975:123-4). Segundo Antônio Alcântara Machado, em nota a Cartas... de Anchieta
(1988:185), Caiubi assentou-se com sua gente ‘no extremo sul, próximo do sítio que
depois se chamou Tabatagoera (hoje Tabatinguera)’, onde tinha ‘sob sua guarda o caminho que do alto do espigão descia para a várzea e tomara para São Vicente por Santo André”.
Nóbrega, no Diálogo sobre a Conversão do Gentio (2000:246), considera Caiubi um
exemplo de fé cristã: “Que direi da fé do grão velho Caiubi, que deixou sua aldeia e suas
roças e se veio morrer de fome em Piratininga por amor de nós, cuja vida e costumes e
obediência amostra bem a fé do coração”.
Para essa povoação foram acorrendo índios de todas as redondezas, o que irá
provocar sentimento de animosidade em João Ramalho, o decano morador do Campo.