quarta-feira, 14 de dezembro de 2016

Parte 1) De São Paulo a Potosí fluxos e conexões no império filipino por José Carlos Vilardaga1

O trabalho apresentado neste VIII Encontro é um pequeno recorte de nossa pesquisa de doutoramento em torno da presença de castelhanos na vila de São Paulo durante o período da União Ibérica (1580-1640). Esta presença é pensada essencialmente em torno da perspectiva das “histórias conectadas”, ou seja, uma história que trabalhe nas conexões, fluxos e cruzamentos entre as diversas áreas do império colonial ibérico. (GRUZINSKI, 2001) Além disso, acreditamos que o período da união das coroas é, por causa das confusas circunstâncias políticas, jurídicas e identitárias, um dos momentos privilegiados para as reflexões em torno deste espaço colonial comum, organizado e conectado, da monarquia católica ibérica. (SCHAUB; 2001) Nesta perspectiva, pretendemos utilizar a análise de trajetórias de indivíduos para compreender melhor os fluxos humanos e econômicos possíveis neste contexto e nestes espaços. Como exemplo destas trajetórias e conexões, iremos apresentar aqui, muito brevemente, o caso do capitão Francisco Benitez, nascido provavelmente na década de 1580. Natural de Vila Rica do Espírito Santo – Província do Paraguai -, portanto criollo, ali viveu praticamente toda sua existência. Filho do peninsular Alonso Benitez, membro da governança da terra, Francisco seria, ele próprio, proeminente membro da comunidade local. Isso não impediu que nosso analisado fosse alvo de graves suspeitas. Vamos aos fatos: No dia 12 de agosto de 1631, o tenente de governador e justiça de Vila Rica, capitão Alonso Riquelme de Guzmán absolvia o capitão Francisco Benitez depois de concluídos os autos de um processo que durou 22 dias. (ANAIS DO MUSEU PAULISTA/AMP, T.I, 1922; 318-353) O perdão soava mais como resignação do que como prova de inocência, pois três dias antes o réu havia sido condenado a viver recluso no interior dos muros da vila. Afinal, diante dos atos praticados pelos “portugueses de São Paulo” que assediavam Vila Rica e andavam pela região atacando aldeias e missões, foi necessário contar com Benitez, potentado local, dono de uma extensa área de terra do outro lado do rio Ivaí e encomendero de diversos índios, ou seja, importante baluarte da defesa da vila. O quanto nossa personagem era confiável para garantir a defesa dos índios contra estes portugueses talvez seja a questão essencial no processo. Os autos giram exatamente em torno de uma suposta facilitação que o capitão propiciou aos paulistas enquanto era o responsável e caudilho da fortificação criada exatamente para barrar o avanço dos assediadores. Na ocasião, Benitez foi acusado de ter abandonado o forte e ter ficado impassível diante de alguns portugueses e tupis que cruzaram as imediações. Primeiro foi preso em sua casa, mas acabou fugindo... depois, foi preso no cárcere da vila, mas fugiu novamente...Teria atravessado correndo o cemitério da matriz e se refugiado em sua chácara, onde fez ouvidos moucos aos bandos e apelos emitidos pelo tenente-governador. Como se não bastassem tais atitudes, ainda se negara a fornecer transporte fluvial para as autoridades que o foram intimar em sua propriedade! As testemunhas de acusação foram unânimes em afirmar que Benitez recebera um bilhete dos portugueses e que depois disso resolvera, segundo o processo, “solo por su gusto”, abandonar o forte. A petição de defesa do capitão é um desfile de supostos mal-entendidos e insinuações de que fora acusado maliciosamente. Confirmou que recebera o bilhete e afirmou que nele constava a promessa dos portugueses de que a missão de Ytupe seria atacada. Diante da ameaça, segundo Benitez, ele foi encontrar o tenente para saber como deveria proceder, bem como conseguir mais mantimentos e armas. Incompreendido em suas ações, segundo ele, fora preso em sua casa, mas diante de enfermidade do irmão e da necessidade de providenciar um escrivão para o testamento, foi até a sua casa, do outro lado da rua. Acusado de ter abandonado a prisão domiciliar, foi encarcerado, mas de lá fugiu por temer o “rigor de la justicia”. Ele afirma ainda que passou ao largo do cemitério e, mais importante, “caminando”. Em sua chácara, não ajudou os que lá foram por não saber quem eram e não ter canoas disponíveis. Quanto à acusação de não ter tomado providências diante dos portugueses e tupis que passaram pela fortificação, Benitez alega ser uma “tan perniciosa declaración mentirosa”. Segundo ele, isto nunca ocorreu e quem o acusava disso era um forasteiro, que não o conhecia. (AMP; T.I, 1922; 318-353) O réu apresenta algumas testemunhas, pouco precisas em seus testemunhos, no que dizia respeito às acusações propriamente ditas, mas unânimes em apontar o passado de Benitez e sua atuação na governança da vila e sua lealdade na “defesa desta terra que es su pátria”. Por fim, acabou condenado a permanecer preso no interior da vila, mas em seguida foi anistiado. (AMP; T.I, 1922; 318-353) A situação emergencial, mas acima de tudo a rede de relações, alianças e o poder do acusado devem ter prevalecido sobre as suspeitas. De qualquer forma, podemos depreender ou comprovar a partir deste processo algum tipo de conexão efetiva de Benitez com os portugueses de São Paulo? A princípio não, apesar de obviamente os autos terem sido feitos para aferir essa acusação. Entretanto, o que pode nos ajudar a compreender melhor esta questão é que, dezesseis anos antes, em 1615, o mesmo Benitez foi preso pela acusação de facilitar a entrada de portugueses pelo caminho do “porto de São Paulo”, cujo trânsito naquela altura estava proibido pela coroa espanhola. (BANDEIRANTES NO PARAGUAI/BP - Documentos Inéditos; 1949; 23-45.) Os autos do processo, levados a cabo entre 1615 e 1616, atingiram não só Benitez, e não ficaram somente em Vila Rica, mas chegaram também a Ciudad Real de Guairá e foram finalizados em Assunção. O objetivo dos processos era descobrir e mapear quem tinha utilizado e/ou facilitado a utilização do caminho do “porto de São Paulo”, mas
também quem havia entrado “sem licença” em Buenos Aires e em outras partes da América espanhola. Ou seja, fazia parte de uma repressão global à presença de gente sem licença, em especial estrangeiros (conceito de complexa definição), nas áreas coloniais de Espanha. (MANGAS, 2001) No processo levado a cabo em Vila Rica do Espírito Santo a nossa conhecida figura de Francisco Benitez, já capitão, se destaca. Segundo a acusação, Benitez fora a São Paulo cerca de dez ou doze anos antes, com “vinho e mercadoria”, e na volta trouxera três portugueses pelo caminho vedado, dois deles estabelecidos na vila desde então e um terceiro que fora morar em Assunção. Além dos três portugueses, as testemunhas falam de um português que chegara sozinho pelo caminho e morara um tempo numa casa abandonada. Depois, partira e nunca mais se soube nada dele. Por fim, um soldado castelhano que junto de mais dois espanhóis e dois portugueses também fizeram o caminho. (BP; 1949; 20-23) A defesa de Benitez é também bastante interessante. Alega que naquele tempo, dez, doze anos antes, o tenente-governador D. Antönio de Añasco se empenhou em descobrir o caminho para São Paulo despachando quatro soldados por ele. O empreendimento teve sucesso como se atesta inclusive nas Atas da Câmara de São Paulo, que noticiaram a presença dos quatro, inclusive um personagem de sobrenome Benitez. Nas Atas da vila planaltina transparecia boas esperanças em relação à abertura do caminho já que naquele momento, em função da união das coroas, eram “todos cristãos e de um rei comum”. (ACVSP; Vol.II, 22/11/1603) No ano seguinte, Alonso Benitez, pai de Francisco e tenente de Vila Rica, enviou mais homens pelo caminho, inclusive o filho, para tratar, dentre outras coisas, de um possível casamento de Francisco com uma das filhas de Josepe de Camargo, castelhano estabelecido em São Paulo desde 1582. Tal casamento deve ter sido tratado na primeira viagem, que como já afirmei, contava com um Benitez. Segundo Francisco, ainda em seu testemunho, ele fora a São Paulo sem saber da proibição e, muito pelo contrário, acreditava que naquele momento a descoberta do caminho e o estabelecimento de relações comerciais entre as duas partes era algo desejado. De fato, o assucenho Hernando Arias de Saavedra, proeminente governador do Rio da Prata e um dos primeiros criollos a assumir um posto de governança de destaque na região, se  tornaria um firme defensor dos monopólios limenhos, combatendo regiamente o comércio por Buenos Aires; por outro lado, se empenhou em encontrar alternativas econômicas para sua região natal, cada vez mais ameaçada pela vila platina. Assim, Hernando Arias, afamado como rígido aplicador das leis imperiais e figura não grata em Buenos Aires, tinha lá também profundos interesses na região paraguaia. Cabe aqui ressaltar, que durante o primeiro governo de Saavedra, entre 1602 e 1609, em São Paulo repercutia as ações do sétimo governador geral, Don Francisco de Souza, que se instalara na vila e havia alimentado projetos minerais ambiciosos no em torno, vislumbrando inclusive uma articulação regional que viabilizasse o desenvolvimento daquele espaço. (CARVALHO FRANCO; 1932) A preocupação de Benitez em sua defesa foi sempre alegar que desconhecia qualquer proibição, que não estimulou os portugueses a acompanhá-lo, mas simplesmente deixou-os vir junto, e que não recebeu prata ou qualquer mercadoria para trazê-los; mas que, muito pelo contrário, por serem muito pobres, ainda teve que alimentá-los. Por fim, alega que os portugueses não pretendiam chegar a Potosí (agravante importante no processo), mas sim permanecer em Vila Rica, onde efetivamente se estabeleceram, casando-se e tornando-se “vecinos”. Ao final, se justificava dizendo que “eram todos vassalos de Sua Majestade”. Em seus depoimentos, os portugueses confirmam as informações e asseveram que não pretendiam atingir as minas, mas ficar em Vila Rica. Segundo um deles, Gonçalo Barbosa, “em São Paulo teve notícia de que esta era boa terra”. Por fim, Benitez acabou absolvido também destas acusações. Contudo, estes processos nos fazem ponderar se as relações de Benitez com São Paulo talvez tenham começado aí e avançado pelos anos futuros, cobrando seu preço maior quando as entradas paulistas efetivamente submeteram a região. De qualquer maneira, estes processos nos permitem inferir algumas coisas: uma delas é que devemos pensar o universo de conexões entre São Paulo e a região do Paraguai no período da União Ibérica em sua heterogeneidade, ou seja, ele não deve ser visto como algo linear e regular no tempo. Esta relação será atravessada por questões locais, regionais e imperiais que tornaram a política sobre ela bastante mutável. A outra é que nos parece possível reconstituir um universo de conexões essencialmente castelhanas que se costurou gradativamente e temporariamente nestes espaços. O caminho terrestre entre o litoral vicentino e a região do Paraguai se confunde com o chamado caminho do Peabiru, suposto caminho indígena que ligava os carijós do litoral aos guaranis do interior. (GOLÇALVES; s/d) Composto de uma infinidade de ramais, ele teria cerca de 1,40 de largura e seria recoberto com gramíneas. Alguns historiadores duvidam da existência dele antes da chegada dos europeus, que efetivamente teriam tornado um caminho único e regular uma teia instável e heterogênea de ramais e caminhos indígenas. (HOLANDA; 1948) Por outro lado, alguns chegam a compreender o caminho como uma espécie de projeto incaico. (MARANHÃO; 2008) Para além do reavivado interesse pela trilha em si, deve-se analisar as relações e os contatos estabelecidos entre o litoral vicentino e a região do Paraguai que poderia ou não se fazer a partir do chamado Peabiru (para isso é necessário tentar reconstituir alguns trajetos). Ao longo principalmente da primeira metade do século XVI, estes caminhos serão percorridos fundamentalmente por aventureiros, conquistadores e jesuítas, numa clara demonstração de que naquele momento, ali era ainda um espaço a ser conquistado, conhecido e/ou catequizado, como revelam os percursos e experiências de Aleixo Garcia, Cabeza de Vaca, Pero Lobo, o jesuíta Antonio Rodrigues, Ulrich Schmidel, dentre outros. Mesmo as disputas de jurisdições estabelecidas entre as coroas espanhola e portuguesa neste espaço denotam o quanto ele era difuso e pouco conhecido. (RUIZ, 2002) É a partir da década de 40 do século XVI, quando um universo de vilas espanholas começa a se estruturar na região do Paraguai (e hoje parte do estado do Paraná), que os contatos entre o litoral vicentino e a região se tornaram mais intensos. Basta lembrar que o conquistador Rui Diaz de Melgarejo, fundador de Ciudad Real (1557), partira de São Vicente, onde permaneceu algum tempo, para a fundação daquele povoado. Melgarejo ainda fundaria Vila Rica do Espírito Santo em 1576. Portanto, foi um momento onde estes espaços do interior da América do Sul começaram a ser definidos e divididos elevando, por conseguinte, o nível das disputas entre as Coroas. Até então, o que se tinha era uma espécie de “história comum luso-castelhana de colonização” (GARCIA,1956; 20) que foi percebida inclusive pelo primeiro governador geral do Brasil, Tomé de Sousa, que chegou a afirmar que “parece por constelação não se poderem os portugueses em nenhuma parte desapegar dos castelhanos”.(GARCIA, 1956, 26) Nesta história comum, obviamente não isenta de conflitos e disputas, foi se construindo um universo de relações cotidianas, de trocas e intercâmbios, que funcionou muitas vezes às margens das várias tentativas de se legislar de maneira proibitiva e demarcatória em relação a esta integração. Era efetivamente um caminho cheio de possibilidades, mas também fonte de tensões. Nele o jesuíta Manoel da Nóbrega, por exemplo, projetava o avanço missionário para o interior. Foi sobre ele que os governadores-gerais Tomé de Souza e Duarte da Costa emitiram regimentos tentando proibir seu uso, sentindo as ameaças dos contatos lusocastelhanos naquele espaço. O quanto estas determinações dos governadores foram efetivamente aplicadas não é tema de discussão neste trabalho, mas com a criação e consolidação da vila de São Paulo e, fundamentalmente com o contexto da União Ibérica no último quartel do século XVI, os contatos entre as vilas castelhanas do Paraguai e a recém fundada vila de Buenos Aires no rio da Prata, com as vilas portuguesas do interior e do litoral vicentino sofrerão mudanças, em especial um “estreitamento das malhas”. Essencialmente, aquele território sentiu os efeitos da política imperial dos filipes (que não deve ser vista como única) e da ambigüidade dos tempos, que por vezes fazia questão de diferenciar o que era português do que era castelhano, e que outras vezes parecia criar, propositadamente, um espaço identitário misturado e confuso. No que tange as relações entre a vila de São Paulo e Buenos Aires no contexto da União - que não será tema de discussão nesta apresentação -, estas parecem ter se limitado às trocas comerciais, como bem prova o testamento de Afonso Sardinha de 1592. (AZEVEDO MARQUES; 1976) Nele surge uma rede de conexões e intermediários comerciais que construía um triângulo comercial entre São Paulo, Angola e Buenos Aires, ligado essencialmente ao fornecimento de escravos negros e a aquisição de couro. Ainda na segunda década do século XVII, Antonio Pedroso de Alvarenga tinha encomendas de algodão direcionadas para a vila platina. (INV&TEST; Vol.44) Entretanto, é no caminho terrestre para o Paraguai que as conexões da vila de São Paulo parecem ficar mais claras. Voltando ao processo de Benitez, lembremos que o primeiro se remetia ao início do século XVII, quando as relações entre São Paulo e a região do Paraguai foram incrementadas e alimentadas inclusive por iniciativa dos governadores. Os proveitos que poderiam ser extraídos do caminho para o Paraguai transpareciam já nas Atas de 1603 (aqui citadas), e os membros da Câmara ainda reforçariam estas vantagens em carta enviada ao donatário, em 1606, onde afirmavam que naquela terra “há grande meneio e trato para Angola e Peru e outras partes.” (RG, Vol II, 1919; Suplemento). Parece ser um momento propício para conexões e relações entre as partes, e neste sentido cabe chamarmos a atenção para a figura de Josepe de Camargo. Castelhano estabelecido em São Paulo e ligado às lavouras de trigo do planalto que estavam em pleno processo de expansão, ele foi bastante envolvido com as pesquisas minerais de Francisco de Souza, mas sobretudo atrelado ao descimento de índios para suas lavouras, prática na qual será seguido pelos filhos. Assim, um casamento entre os Benitez e os Camargo não só atrelavam dois espaços coloniais a partir de uma rede de interesses comerciais, onde a mão de obra indígena era um dos elos – mas não o único -, como este se faria num trânsito essencialmente castelhano. As perspectivas comerciais que o caminho oferecia bem como o acesso à mão de obra indígena ao longo dele seriam mais do que suficientes para garantir interesses em alianças e acordos. Os vínculos de uma parte da população do planalto com gente do Paraguai foi uma constante na história desta região e só tendeu a aumentar durante a União das coroas ibéricas. Os autos feitos em Assunção em 1616 giram em torno de quatro portugueses que chegaram a região via caminho de São Paulo, “proibido entre portugueses espanhóis estrangeiros”. No processo os acusados apontam os “mancebos filhos de Baltazar Godói, natural da dita vila de São Paulo” como os guias em grande parte do caminho, em troca de patacones e roupas. (BP; 1949; 20-23) O castelhano Godói, morador de São Paulo desde o final do século XVI, parece ter, junto com seus filhos, alimentado interesses na região e utilizado o conhecimento das entradas e do chamado sertão para algo mais que “descer índios”. Portanto, mais uma das famílias castelhanas de São Paulo ligava parte de seu destino às relações promissoras entre estas partes. Fonte:Anais Eletrônicos do VIII Encontro Internacional da ANPHLAC Vitória – 2008 ISBN - 978-85-61621-01-8 http://migre.me/vIKgm
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