Por outro lado, quando chegamos em 1615, novos elementos devem ser trazidos a
baila. Estes processos devem ser inseridos no contexto do aumento do rigor da legislação
que tentava limitar as relações comerciais e os intercâmbios entre as áreas portuguesas e
espanholas na América, em especial no Rio da Prata, mas também no caminho terrestre de
São Paulo. (CANABRAVA, 1984) Portanto, este processo inicial se coaduna com a
tentativa de combater o contrabando platino e de regular o acesso a Potosí.
(MOUTOUKIAS, 1988) Passado as tentativas mais sutis de integração imperial de Filipe II
que trafegou numa certa indefinição dos espaços e jurisdições na América (algumas
alimentadas propositadamente), o século XVII assistiu a uma maior ingerência política dos
outros filipes no Império, mas também um zelo maior pela integridade do que pertencia a
Castela. A unidade imperial espanhola do século XVII se faria na preservação de Castela e
não na sua dissolução. (ELLIOTT, 1998).
Mas não só questões de natureza imperial pesaram nesta política de demarcação de
áreas e interesses em meio a União Ibérica. Como já bem mostrou os estudos de Alice
Canabrava nos anos 50, a política dúbia em relação à Buenos Aires, por exemplo, de
concessão de certas janelas de comércio, passava pelos interesses dos grupos mercantis de
Lima que monopolizavam o comércio com Potosí. Assim a pressão destes grupos impediu
uma política de estímulo para que Buenos Aires se tornasse o porto efetivo daquela região
mineradora; por outro lado, não era possível simplesmente fechar o porto, pois a vila era
importante baluarte na defesa do interior da América. Lembremos que em 1617 o Rio da
Prata e o Paraguai são separados em termos de províncias, o que denota um olhar atento à
região e uma tentativa de aumentar o controle sobre aqueles espaços.
Assim, a política diante do caminho terrestre que ligava São Paulo ao Paraguai,
“corredor de passagem aos que demandam as minas do Peru”, durante a União Ibérica,
passava também pela necessidade de manter a política monopolista e de porto único, ou
seja, o chamado exclusivo, e preservar os interesses de certos grupos comerciais já
estabelecidos. (VENTURA, 2005) Portanto, a questão comercial é que parece prevalecer neste momento. Isto transparece na maneira pela qual a questão da naturalidade dos
investigados é tratada nestes processos. Castelhanos são obviamente processados por
auxiliar portugueses na travessia, mas castelhanos são processados também por utilizar o
caminho. Portanto, tratava-se de barrar o trânsito de qualquer espécie, independentemente
de suas origens. Outro elemento a ser levado em altíssima consideração nesta política em
relação ao caminho é, sem dúvida, a pressão jesuítica sobre a Coroa e sobre as autoridades
locais. Os interesses missioneiros e as ameaças dos conquistadores e encomenderos, tanto
vindos de São Paulo, como vindos da própria região, pesaram decisivamente para que
aquele espaço fosse cada vez mais vetado.
Fosse para o estabelecimento de intercâmbios comerciais, fosse como porta de
entrada para as minas de Potosí, os autos revelam que o caminho foi efetivamente utilizado
apesar das proibições reinóis. Neste último caso - como acesso para Potosí -, seu trânsito
era bastante regular e foi utilizado tanto por paulistas, como Antonio Castanho, que teve
seu testamento lavrado em Potosí (INV&TEST;VOL.6); quanto por forasteiros que
“passavam por aqui (São Paulo) para a Vila Rica frades em trajes de leigos, leigos em trajes
de frades e clérigos, mulheres em trajes de homem...” (ACVSP; Vol. III; 01/04/1623), De
fato, parecia haver uma certa complacência na aplicação das leis em torno do caminho, pois
os efeitos práticos da repressão pareciam quase nulos.
As relações atravessariam uma nova fase quando do segundo processo, o de 1631.
Nele, chama à atenção a recorrente expressão “portugueses de São Paulo”, que demarca
bastante bem as origens da ameaça. Portanto, em determinado momento as relações com os
paulistas deixou de ser desejada para se tornar uma ameaça. O quê pode nos ajudar a
compreender esta mudança? A balança começou a pender decisivamente para o lado
paulista em função de dois fenômenos interligados. Um, o comércio platino efetivamente
prosperava apesar das tentativas de cerceá-lo, portanto, Assunção e grande parte da
Província do Paraguai perderam parte de sua função e importância. Efetivamente as rotas
legais e de contrabando que ligavam o Prata à Potosí passavam ao largo do mundo
paraguaio. De outro lado, a economia paulista atravessava relativa prosperidade em função
de sua articulação ao mercado intra-colonial, essencialmente para o abastecimento de um Nordeste desestabilizado pelas invasões flamengas. (ALENCASTRO, 2000) Esta relativa
prosperidade é que empurrou os paulistas ainda mais para o reservatório de mão de obra
que se tornara as missões jesuíticas estabelecidas na região paraguaia. Portanto, a
articulação passa a atuar no sentido de direcionar a mão de obra indígena para o litoral
vicentino, e não mais para o próprio mundo paraguaio. (MONTEIRO, 1998)
Assim, as renovadas suspeitas sobre Benitez ganham maior coerência e
contextualização. Ele poderia ser um daqueles que apostara nas proveitosas relações
recíprocas do início do século e que percebera que a balança pendera para o lado paulista.
Como exemplo desta relações pendulares, podemos ainda falar da família Fernandes,
célebre na fundação da vila vizinha a São Paulo, a de Santana do Parnaíba. André
Fernandes foi o homem escolhido para acompanhar a esposa do governador da província do
Paraguai, D. Luis de Céspedes e Xeria, nomeado em 1625, até Ciudad Real do Guairá. O
governador optara por chegar ao seu posto pelo caminho terrestre de São Paulo. Antes,
entretanto, ficara no Rio de Janeiro e filiou-se intimamente com a família Sá, casando-se
com uma sobrinha do governador português, Vitória de Sá. (BOXER, 1973) Estas filiações
e um certo prestígio concedido aos portugueses no Paraguai rendeu a Céspedes e Xeria
acusações de se cúmplice e “sócio” dos bandeirantes e “mamelucos” de São Paulo, que não
coincidentemente durante seu governo empreenderam as mais intensas e vorazes entradas
no Guairá. Em 1631, mesmo ano das acusações sobre Benitez, Xeria foi preso. Investigado,
foi condenado em 1636, mas as punições nunca ocorreram. É neste contexto, e fruto destas
ações e cumplicidades, que o Guairá efetivamente foi abandonado pelos castelhanos que
deixaram Ciudad Real e Vila Rica praticamente à mingua.
Foi neste momento também que uma leva importante de castelhanos, ou hispanoparaguaios,
se dirigiram para São Paulo, atrelando definitivamente seu destino à vila
vicentina. E a ponte desta migração foi a família Fernandes, que como os Godói do início
do XVII, estabeleceram intensas relações com o mundo paraguaio. André, Domingos e
Baltazar Fernandes foram não somente bandeirantes afamados, mas também gente com
fortes interesses no Guairá. André fizera seu filho ordenar-se vigário no Paraguai. Baltazar
casara-se em Vila Rica com Maria de Zunega por volta de 1600 – no momento das relações profícuas-, de quem tivera uma filha, Maria de Torales, que se casaria com Gabriel Ponce
de Leon. Portanto, Baltazar construiu vínculos familiares bastante estreitos com o mundo
paraguaio. Foi exatamente entre 1630 e 1634 que todo o ramo hispano-paraguaio da família
abandonou Vila Rica e transmigrou-se para São Paulo, o que comprova que na balança das
relações entre São Paulo e Paraguai, que se mantivera equilibrada até então, o lado paulista
efetivamente pesou a partir deste momento.
Portanto, ao longo do período da chamada União Ibérica as relações entre a vila de
São Paulo e o interior paraguaio atravessaram diversas fases que podem e devem ser vistas
dentro do quadro mais amplo das relações regionais e mesmo imperiais. A vila de São
Paulo é comumente vista como marginal dentro da rede imperial portuguesa, ancorada em
sua teia marítima. Assim, periférica, mesmo fazendo parte da estrutura colonial, a vila foi
vista como tendo uma sociedade basicamente atrelada ao sertão bravio e a esparsas e pouco
proveitosas relações com o litoral. A proposta desta apresentação foi também perceber a
vila atrelada a um sertão que não era somente bravio, mas permeado de vilas castelhanas
organizadas numa rede urbana que, juntamente com as missões, sustentavam a conquista do
interior, fenômeno característico e típico do processo imperial espanhol. Assim, São Paulo
viveu, no contexto da União, os afluxos advindos tanto do modelo imperial português que
se estruturava naquele momento na rede comercial marítima - Rio de Janeiro, Angola e Rio
da Prata -, como no modelo espanhol de rede urbana interiorizada e que servia como
plataforma para a conquista e encomenda dos naturais.
Os movimentos de aproximação sistemática entre São Paulo e o interior paraguaio
que se efetivaram no momento mesmo da união das coroas, quando eram todos “cristãos e
vassalos de um mesmo rei” ocorreram por uma conjunção de motivos e interesses. Corredor
para Potosí, trocas comerciais ou cobiça sobre a mão de obra indígena são os motivos,
laicos, mais explícitos; entretanto, estes objetivos serão atravessados por circunstâncias
regionais. De alguma maneira podemos ver São Paulo como uma vila que esteve situada
entre dois impérios, o português e o espanhol, e esta definição não tange somente a
geografia, mas também a natureza dos processos coloniais e da própria configuração da
população da vila, bastante marcada pela presença castelhana. Alguns trabalhos têm sido produzidos sobre a presença portuguesa na América
espanhola e sobre as redes de solidariedade que estes organizavam nestes territórios, a
maior parte deles articulados ou sobrepostos a interesses comerciais. No caso dos
castelhanos na América portuguesa os trabalhos são praticamente inexistentes, com
raríssimas exceções (AMARAL, 1981); e muito menos pensados em termos de articulações
de interesses. Portanto, ver as tratativas de casamento entre os Benitez de Vila Rica e os
Camargo de São Paulo; bem como a atuação dos Godói, não deve ficar na simples
coincidência, mas como uma construção de uma rede de solidariedade e de articulações que
carregavam também forte sentido identitário, no caso, castelhano. Isso foi ainda mais
intenso, na história da vila de São Paulo, quando dos casamentos de famílias importantes
nos destinos daquela comunidade, como os Buenos com os Camargos ou dos Rendon com
os Buenos; costuras simbolicamente poderosas na quase mítica e suspeita Aclamação de
Amador Bueno, quando da chamada Restauração portuguesa.
Fonte: Anais Eletrônicos do VIII Encontro Internacional da ANPHLAC Vitória – 2008
ISBN - 978-85-61621-01-8http://migre.me/vIKgm